Capital in the Twenty First Century – PIKETTY (NE-C)

PIKETTY, Thomas. Capital in the Twenty First Century. Trad. Arthur Goldhammer. Cambridge: Harvard University Press, 2014. Resenha de: RUGITSKY, Fernando. Diagnóstico Capital: O Capital no Século XXI. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.99, Jul, 2014.

Em certa passagem de seu livro, ao examinar a evolução da desigualdade na França ao longo do século XX, Thomas Piketty afirma que “[d]esigualdades socioeconômicas – disparidades de renda e riqueza entre grupos sociais – são sempre tanto causa quanto efeito de outros desenvolvimentos em outras esferas. Todas essas dimensões são indissociavelmente entrelaçadas”. E conclui: “Assim, a história da distribuição da riqueza é uma das maneiras de interpretar a história mais geral de um país”1. Qual é a natureza de O capital no século XXI, este livro de recepção estrondosa? Na pletora de comentários, resenhas e críticas, é possível encontrar quem pretenda interpretar o livro seguindo a pista do trecho acima. Nessa leitura, Piketty partiria da história da distribuição da riqueza e da renda nos países ricos, ao longo dos últimos três séculos, mas terminaria propondo uma reinterpretação histórica abrangente. O livro, segundo Mike Konczal, seria “uma grande façanha da história econômica”2. Há também aqueles que veem o livro como uma contribuição à teoria econômica. Nesse caso, as várias séries históricas a que Piketty recorre não seriam senão instrumentos para questionar hipóteses teóricas dominantes e fundamentar um “modelo” alternativo. Suas duas “leis fundamentais do capitalismo”, em conjunto com a “contradição central” que ele identifica, são interpretadas como elementos de uma formulação teórica que representa, nas palavras de Branko Milanovic, “uma combinação da teoria do crescimento com as teorias da distribuição funcional e pessoal da renda e, assim, uma descrição abrangente da economia capitalista”3. Não há dúvida de que ambas as leituras dão conta de parte do livro de Piketty. Mas a sua contribuição não se esgota aí. Para usar uma expressão cara à teoria crítica, o que ele realizou no livro, com suas ousadias e seus limites, foi um diagnóstico do tempo presente4 . Debruçado sobre o capitalismo do início do século XXI, Piketty buscou apreender sua estrutura e sua dinâmica, apontando as tendências de desenvolvimento visíveis e as alternativas possíveis. Para tanto, recorreu a um primoroso e inestimável esforço coletivo de coleta e organização de séries estatísticas que lhe permitiram colocar o presente em perspectiva histórica e jogar nova luz sobre os últimos três séculos. Todavia, o resultado essencial da análise é a descrição do momento atual como uma bifurcação, explicitando os termos dos conflitos que estão e seguirão sendo travados no século atual. Como indica, aliás, o próprio título do livro, trata-se de examinar o capital no século XXI.

A DESIGUALDADE DO VELHO AO NOVO MUNDO

O diagnóstico de Piketty baseia-se em um contraste entre duas trajetórias estruturalmente diferentes de aumento da desigualdade: a que caracteriza a realidade europeia e a dos Estados Unidos5. São, para tomar emprestado o título de um dos capítulos do livro, “dois mundos” distintos6. O ponto essencial do diagnóstico, contudo, é sugerir a possibilidade de tal contraste estar se tornando uma característica do passado. A convergência do pior dos dois mundos poderia criar, no século XXI, um padrão de desigualdade inédito e, segundo Piketty, “aterrorizante”7 . Seria a emergência de um “novo capitalismo patrimonial”8.

Comecemos pela trajetória da Europa. Uma das variáveis que organizam o argumento de Piketty é a razão capital/renda. A sua pouco usual definição do capital de um país inclui sob essa rubrica propriedades rurais, imóveis residenciais, o capital das firmas e das organizações governamentais (incluindo imóveis, máquinas, computadores, patentes) e ativos líquidos detidos no resto do mundo (isto é, os ativos detidos por residentes menos os ativos no país detidos por estrangeiros)9. Assim, quando ele afirma que tanto na Inglaterra como na França a razão capital/renda era aproximadamente 7 ao longo dos séculos XVIII e XIX, isso quer dizer que o capital acumulado era cerca de 7 vezes maior do que a renda gerada nesses dois países a cada ano10.

Na França e na Inglaterra, a razão capital/renda apresentou uma trajetória muito similar. Após a mencionada estabilidade nos séculos XVIII e XIX, tal razão cai de aproximadamente 7 para menos de 3 entre o começo do século XX e o ano de 1950. Essa queda vertiginosa é, então, seguida de uma recuperação gradual. Em 2010, a razão capital/renda estava entre 5 e 6 na Inglaterra e havia superado 6 na França11 . Os dados para a Alemanha estão disponíveis apenas a partir do processo de unificação do país, na década de 1870. Mas a trajetória é semelhante: a razão capital/renda cai de cerca de 6,5 em 1910 para pouco mais de 2 em 1950 e a partir daí recupera-se gradualmente12.

A questão essencial a explicar, tendo em vista tal paralelismo, é a queda observada na primeira metade do século XX13. Dentre as razões plausíveis, seria possível incluir as destruições físicas do capital durante as duas guerras mundiais, especialmente na Europa continental. Piketty argumenta, no entanto, que essa não é a explicação principal. Ele atribui uma importância substancial ao virtual desaparecimento dos patrimônios europeus (líquidos) detidos no resto do mundo, devido tanto a expropriações (empréstimos ao governo russo que foram repudiados pela revolução de 1917, a nacionalização do canal de Suez etc. ) como ao processo de descolonização. Além disso, o entreguerras foi marcado por crescimento baixo e pelo colapso da Grande Depressão, o que afetou particularmente a renda dos mais ricos. Visando manter o seu padrão de vida, eles reduziram substancialmente sua poupança (e em muitos casos até se desfizeram de parte do patrimônio) e assistiram à diminuição de seu capital. Piketty afirma que tais desdobramentos “provaram-se mais destrutivos para o capital do que o próprio combate”14. Finalmente, parte da queda da razão capital/renda deve ser atribuída a “escolhas políticas deliberadas” do pós-guerra, isto é, a políticas de controle de aluguéis, regulação financeira e tributação de dividendos e lucros que levaram a uma redução dos preços dos imóveis e das ações negociadas em bolsa. Nas palavras de Piketty, “o declínio da razão capital/renda entre 1913 e 1950 é a história do suicídio da Europa e, em particular, da eutanásia dos capitalistas europeus”15.

Nas últimas quatro décadas, no entanto, a razão capital/renda aumentou de modo marcante nos países ricos (inclusive fora da Europa), aproximando-se dos valores observados na belle époque (quando, nas palavras dele, “o capital reinava”16). Sua explicação para esse desenvolvimento é o fato de que as taxas de poupança recuperaram-se após a crise da primeira metade do século XX e permitiram uma aceleração da acumulação de capital, ao passo que o crescimento da renda nacional desacelerou17. A isso se deve adicionar ainda uma recuperação dos preços dos imóveis e das ações negociadas em bolsa, fruto das desregulamentações observadas no período, “em um contexto político que era em geral mais favorável à riqueza privada do que aquele do imediato pós-guerra”18.

Mas como essas trajetórias relacionam-se com o padrão de desigualdade observado na Europa? A resposta dele pode ser dividida em três partes. Em primeiro lugar, um valor elevado da razão capital/renda é, por si só, um indicativo do poder político e social dos proprietários. Assim, a tendência de essa razão retornar a valores observados às vésperas da Primeira Guerra Mundial aponta para o restabelecimento de um nível de desigualdade que não foi observado, nos países ricos, ao longo de todo o século XX. Em segundo lugarPiketty argumenta que a elevação da razão capital/renda pode ser acompanhada da elevação do percentual das rendas do capital na renda nacional e, como as rendas do capital são sempre mais concentradas do que as rendas do trabalho, essa última elevação se reflete automaticamente em uma maior desigualdade19. Em terceiro lugar, o aumento da razão capital/renda, por uma decomposição contábil, eleva o percentual do fluxo de heranças na renda naciona20. Assim, a importância crescente da riqueza acumulada tende a resultar no predomínio das heranças sobre o esforço individual, no que concerne à obtenção da renda, colocando em xeque a retórica meritocrática das sociedades contemporâneas: “o passado tende a devorar o futuro”21.

A ênfase na razão capital/renda como uma das raízes da desigualdade é uma das inovações mais importantes do livro de Piketty, uma vez que o debate sobre desigualdade tem se concentrado há algum tempo quase que exclusivamente nas disparidades salariais22. Segundo ele, esse foco desconsidera um dos principais determinantes do aumento recente da desigualdade. É necessário, assim, voltar a examinar a riqueza acumulada e sua distribuição. A trajetória da razão capital/renda explica boa parte da trajetória da desigualdade na Europa ao longo do século XX: do violento declínio entre 1913 e 1950 ao aumento expressivo a partir da década de 1970.

O mesmo não é verdade, no entanto, para os Estados Unidos. Não apenas porque lá a razão capital/renda foi muito mais estável do que nos países europeus, mas também porque o principal determinante do aumento recente da desigualdade norte-americana é a explosão dos salários elevados dos executivos das grandes empresas23. Tendo se estabelecido essencialmente a partir de intensos fluxos migratórios, é compreensível que a riqueza acumulada tenha desempenhado um papel muito distinto nos Estados Unidos ao longo do século XIX. Enquanto os imigrantes traziam consigo muito pouco capital acumulado, do outro lado do Atlântico a economia capitalista escorou-se nas riquezas herdadas do Ancien Régime24. Além disso, o impacto destrutivo das duas guerras mundiais foi muito menor para o capital norte-americano.

Levando em consideração essa estabilidade maior da razão capital/renda e o fato de que, apesar dela, a desigualdade nos Estados Unidos trilhou uma trajetória similar à europeia (reduzindo-se substancialmente na primeira metade do século XX e recuperando-se a partir da década de 1970), conclui-se que a desigualdade salarial desempenhou um papel importante. Piketty passa, então, a descrever com detalhes a “ascensão dos superexecutivos”, um fenômeno característico dos Estados Unidos, mas que também pode ser observado, em algum grau, nos demais países anglo-saxões25. Segundo ele, deve-se atribuir predominantemente aos tais supersalários o fato de que atualmente a desigualdade na economia norte-americana tenha atingido um nível semelhante àquele observado na Europa do início do século XX, no qual o percentil dos mais ricos (que ocupa um “lugar proeminente na paisagem social e não apenas na distribuição de renda”26) apropria-se de um quinto de toda a renda gerada anualmente no país, a mesma quantia que é dividida pela metade mais pobre da população27.

TEORIA E HISTÓRIA

Tendo em vista, por um lado, que a razão capital/renda está aumentando, tanto na Europa como nos Estados Unidos, podendo alcançar os níveis observados na belle époque e, por outro, que a explosão dos salários dos superexecutivos pode vir a se difundir para além dos países anglo-saxões, Piketty teme que o século XXI assista à emergência de uma sociedade ainda mais desigual do que a Europa de 1910 e os Estados Unidos de 2010. Uma sociedade em que uma parcela ainda maior da renda seja apropriada pelo percentil dos mais ricos, povoado por herdeiros que vivem de renda e por superexecutivos transformados em rentistas28. Esse é o seu sombrio diagnóstico, o “novo capitalismo patrimonial”.

O que lhe permite relacionar a trajetória retrospectiva da desigualdade a um prognóstico para o século atual é um conjunto de hipóteses teóricas relativamente simples. Dentre elas, está uma relação que ele denomina “segunda lei fundamental do capitalismo”, formalmente = s/g (sendo que é a razão capital/renda, s é a taxa de poupança e g é a taxa de crescimento da renda nacional)29. Na sua argumentação, no longo prazo, com a estabilização de s e de g, a razão capital/renda é explicada por essa “lei”, desde que os preços relativos do capital e dos bens de consumo não se alterem, em média, e que a parcela do capital representada por recursos naturais puros seja pequena. Ele usa essa relação não apenas para explicar as trajetórias da razão capital/renda na Europa e nos Estados Unidos, mas também para prever, com alguma hesitação, sua trajetória futura. Supondo um declínio de g, devido predominantemente ao declínio da taxa de crescimento demográfico30, e uma estabilização de s, Piketty conclui que, “em 2100, o planeta inteiro poderá se parecer com a Europa da virada para o século XX, pelo menos em termos de intensidade de capital”31.

Conforme mencionado anteriormente, um dos mecanismos pelos quais um aumento da razão capital/renda gera uma maior desigualdade, na argumentação de Piketty, é um aumento no percentual das rendas do capital na renda total. A relação entre essas duas variáveis é determinada pela “primeira lei fundamental do capitalismo”, α = rβ (sendo α, o percentual das rendas do capital na renda nacional, e r, a taxa de retorno sobre o capital)32. A hipótese convencional sobre essa “lei” (que, como o próprio autor reconhece, é simplesmente uma identidade contábil) é que um aumento de β seria sempre compensado por uma diminuição de r, de modo que permaneceria estável. Segundo o jargão, isso é o que se pode derivar de uma função de produção Cobb-Douglas em que a elasticidade de substituição entre capital e trabalho é igual a 1. Intuitivamente, significa que, dado um número determinado de trabalhadores, um aumento no capital leva a uma diminuição de sua produtividade marginal e, consequentemente, de sua taxa de retorno33.

Piketty argumenta, entretanto, que a própria elasticidade de substituição é historicamente determinada: ela parece ter sido inferior a 1 em economias agrícolas tradicionais, em que havia poucas alternativas para utilização do capital, e poderá ser maior do que 1 no século XXI 34. Além disso, o fato de que tanto β como aumentaram nos últimos quarenta anos sugere que ela já ultrapassou 1. Esse movimento paralelo de β e α não é apenas importante para o argumento do autor porque ele permite relacionar o aumento da razão capital/renda com o aumento da desigualdade. Ainda mais crucial é que ele evita que o aumento de β seja acompanhado por uma queda acentuada de r.

Chega-se, assim, à terceira hipótese teórica adotada por Piketty, a “contradição central do capitalismo”, formalmente r > g 35. Essa desigualdade é a razão principal para a concentração da riqueza e, consequentemente, das rendas do capital. Ela permite que, nas palavras do autor, “a riqueza acumulada no passado seja recapitalizada muito mais rapidamente do que a economia cresce”36. Foi a sua operação através do tempo que permitiu que, na Europa da belle époque, o percentil dos mais ricos detivesse metade de todo o patrimônio acumulado. Atualmente, esse percentil ainda detém uma parte menor da riqueza total tanto na Europa como nos Estados Unidos (25% e 35%, respectivamente). Mas, segundo Piketty, isso se deve, essencialmente, à imensa destruição de capital ocorrida na primeira metade do século XX, ao crescimento acelerado observado nas três décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial e a imposição de uma tributação elevada sobre os lucros e a riqueza. A combinação desses fatores permitiu que, por quase um século, a desigualdade se invertesse, isto é, r < g. Também a esse respeito, o século XX parece ter sido um período excepcional: com a desaceleração do crescimento e a redução dos impostos sobre o capital desde os anos 1980, a “contradição central” tende a se restabelecer no século XXI 37.

O foco nessa desigualdade entre r e g representa uma inversão significativa dos termos do debate usual. Segundo a inclinação tecnocrática da maior parte dos economistas, a questão que foi objeto de investigação principal nas últimas décadas foi o impacto da distribuição de renda no crescimento econômico. Dessa maneira, não se considerava a desigualdade um problema em si, mas buscava-se analisar se ela contribuía ou não para a obtenção de uma elevada taxa de crescimento do produto, o fetiche dos economistas. Esse foco, na realidade, remonta a um deslocamento da teoria econômica iniciado por John Maynard Keynes. Os economistas políticos clássicos e seu principal crítico centravam sua investigação nos determinantes da distribuição da renda entre os proprietários de terra, os capitalistas e os trabalhadores. Era esse, na expressão de David Ricardo, o “problema principal” da economia política38. No segundo capítulo de sua Teoria geral, Keynes menciona essa tradição e se distancia dela, afirmando que o que lhe interessa é a determinação da renda total, independentemente de sua distribuição39. O livro de Piketty é um esforço inequívoco para retornar àquela tradição do século XIX, e a “contradição central”, explicitando o impacto do crescimento na distribuição (ao invés do impacto desta naquele), deixa isso claro.

A formulação teórica principal de Piketty e a base de seu diagnóstico do tempo presente consistem na combinação das duas “leis fundamentais do capitalismo” com essa “contradição central”. Ela permite que ele explique tanto a importância crescente da riqueza acumulada como a tendência à sua concentração. Mas, para dar conta do aumento da disparidade salarial, com a ascensão dos superexecutivos, ele a combina com outro argumento, que consiste em uma crítica à teoria da produtividade marginal como determinante de tais supersalários e a indicação de que eles são predominantemente determinados por um crescente poder de barganha dos próprios superexecutivos40.

ECONOMIA E POLÍTICA NO NOVO CAPITALISMO PATRIMONIAL

Uma das reações plausíveis a essa argumentação é pessimista: tanto o crescimento demográfico como a elasticidade de substituição entre trabalho e capital não são exatamente passíveis de intervenção e suas trajetórias atuais parecem condenar o século XXI a uma desigualdade crescente. No entanto, há no horizonte de Piketty uma alternativa, ainda que utópica. Trata-se da adoção de um imposto global sobre o capital41. Para entender o seu significado, é necessário observar que a taxa de retorno sobre o capital que aparece na “primeira lei fundamental do capitalismo” é a taxa de retorno bruta, isto é, a taxa de retorno obtida antes de se descontar os impostos devidos. Entretanto, a taxa de retorno que deve ser comparada à taxa de crescimento, isto é, a taxa de retorno que importa para a “contradição central do capitalismo” é aquela líquida de impostos, que pode de fato ser recapitalizada pelos proprietários. Assim, ainda que a taxa de retorno bruta permaneça elevada, devido ao aumento da elasticidade de substituição entre capital e trabalho, é possível atenuar ou até eliminar a “contradição central” por meio de impostos que reduzam a taxa líquida. Além disso, o próprio crescimento da desigualdade das rendas do trabalho, fruto da elevação do poder de barganha dos superexecutivos, pode ser parcialmente atribuído à redução da progressividade tributária desde a década de 1980. Desse modo, se se quiser resistir à realização de seu prognóstico sombrio, a saída é tributária.

Independentemente do potencial dessa alternativa, o que ela revela é uma tensão entre economia e política no pensamento de Piketty. Nas palavras de Suresh Naidu, ele “oscila entre prestar homenagem às forças fundamentais da tecnologia, das preferências e da oferta e da procura e retroceder para afirmar que a política e as instituições são importantes”42. Apesar de sua frequente defesa de uma abordagem interdisciplinar, em alguns momentos seu argumento ainda recorre a um economicismo excessivo. Não obstante afirmar que admira mais Fernand Braudel, Claude Lévi-Strauss e Pierre Bourdieu do que Robert Solow e Simon Kuznets, sua abordagem por vezes o aproxima destes últimos e o distancia dos primeiros43. É possível que isso se deva, ao menos em parte, à tentativa do autor de comunicar suas conclusões aos demais economistas, para isso ele recorre em alguns momentos a conceitos e teorias correntes. Mas o preço dessa opção é empobrecer sua compreensão da dinâmica capitalista e estreitar seu horizonte normativo.

Uma ilustração curiosa dessa tensão é sua interpretação sobre a história econômica recente. Ainda que ele considere que as políticas adotadas no pós-guerra e a sua reversão no rastro da “revolução conservadora” de Margaret Thatcher e Ronald Reagan (a expressão é de Piketty) tenham tido profundos impactos distributivos, ele atribui as taxas de crescimento observadas no período exclusivamente ao processo de catch-up tecnológico44. Nas suas palavras, “nem a liberalização econômica que começou em torno de 1980 nem o intervencionismo estatal que se iniciou em 1945 merecem tais elogios ou críticas. A França, a Alemanha e o Japão teriam muito provavelmente alcançado o Reino Unido e os Estados Unidos, depois do seu colapso entre 1914 e 1945, independentemente de que políticas tivessem adotado (afirmo isso apenas com leve exagero)”45. A admissão do exagero apenas confirma a tensão entre inscrever sua interpretação na dinâmica dos processos sociais e atribuir partes do seu raciocínio a determinantes técnicos apartados da estrutura social.

O caso mais relevante, contudo, é o da “primeira lei fundamental do capitalismo”. No que tange à remuneração dos superexecutivos, Piketty critica a teoria que visa a explicar a sua determinação pela produtividade marginal, afirmando que se trata de uma ilusão46. Já no que diz respeito à remuneração do capital, ele recorre à produtividade marginal, assentando seu argumento em uma função de produção agregada. Essa opção foi objeto de críticas de economistas heterodoxos que consideram a própria ideia de uma função de produção agregada insustentável teoricamente47. O que poucos notaram, no entanto, é que o argumento não é isento de ambiguidades, uma vez que o próprio Piketty fornece as bases de uma alternativa teórica. Afinal, segundo ele, “é importante enfatizar que o preço do capital [e, logo, o seu retorno] […] é sempre em parte uma construção social e política: ele reflete a noção de propriedade de cada sociedade e depende de muitas políticas e instituições que regulam as relações entre diferentes grupos sociais e, especialmente, entre aqueles que detêm e aqueles que não detêm capital”48.

Se essa afirmação for levada a sério, não faz sentido considerar que é um resultado inexorável da elasticidade de substituição entre capital e trabalho. Economistas críticos têm enfatizado há algum tempo que o aumento do percentual das rendas do capital na renda é resultado de um conflito político em que os trabalhadores têm sido derrotados49. E, assim, conseguem explicá-lo sem recorrer a uma função de produção agregada50. Para Piketty, dar o passo de inscrever a sua “primeira lei fundamental do capitalismo” no seio do conflito distributivo representa simplesmente levar às últimas consequências a sua compreensão política sobre o capital. Esse passo teria, contudo, implicações significativas. Uma concepção ampliada do conflito distributivo permitiria cogitar soluções à espiral da desigualdade que não se restringiriam a corrigir, via sistema tributário, uma realidade determinada tecnicamente. Significaria integrar, na dinâmica que ele identifica, um elemento surpreendentemente ausente: as lutas políticas e sociais. Não se trata de questionar a relevância do imposto global sobre o capital que ele defende, que sem dúvida tem um papel destacado a desempenhar. Mas, apenas, de apontar para a necessidade de alargar o horizonte normativo. Segundo ele, “se quisermos retomar o controle sobre o capitalismo, devemos apostar tudo na democracia”. Apostar tudo na democracia significa também compreender que o seu real alcance está menos sujeito a limites técnicos do que faz crer uma parte substancial da teoria econômica dominante.

Nos limites dessa resenha, não é possível fazer justiça ao livro de Piketty. A fim de privilegiar uma exposição resumida de seu diagnóstico do tempo presente, optou-se por não abordar muitas outras contribuições do livro: da metodologia inovadora para coletar dados sobre desigualdade aos comentários críticos a teorias econômicas variadas, do exame detalhado da história da progressividade tributária ao modo de apresentação erudito, entre muitas outras. Não é possível julgar com certeza, passados apenas alguns meses de sua publicação, se o argumento de Piketty resistirá à passagem do tempo. No entanto, não há dúvida de que, na grande disputa ideológica que está se travando sobre os rumos futuros da teoria econômica e sobre a própria natureza do debate público sobre desigualdade, O capital no século XXI desempenhará um papel de protagonista. Os jovens que ocuparam Wall Street e colocaram na pauta a distinção entre os 99% e o 1%, assim como vários outros movimentos sociais que combatem as desigualdades, têm um novo aliado.

Notas

1 PIKETTY, T. Capital in the Twenty-First Century. Trad. Arthur Goldhammer. Cambridge: Harvard Uni-versity Press, 2014. p. 274-275.

2 KONCZAL, M. “Studying the Rich“. Boston Review, jul.-ago. 2014.

3 MILANOVIC, B. “The Re-turn of ‘Patrimonial Capi-talism’: A Review of Tho-mas Piketty’s ‘Capital in the Twenty-First Century'”. Journal of Economic Literature, vol. 52, n. 2, 2014. p. 520.

4 NOBRE, M. A teoria crítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

5 Utiliza-se aqui a palavra “desigual-dade” para se refe-rir às desigualdades socioeconômicas, de renda e riqueza, que são investiga-das por Piketty. Há, é claro, muitas ou-tras desigualdades (de gênero, de po-der, de reconheci-mento social etc.) que não podem ser ignoradas em um diagnóstico do tempo presente que se pretenda abran-gente.

6 PIKETTY, T. op. cit., cap. 8.

7 Ibi-dem, p. 571.

8 Ibi-dem, p. 173.

9 Ibidem, p. 47-50, 119.

10 A renda nacio-nal é igual ao pro-duto interno bruto (PIB) menos a de-preciação mais a renda líquida rece-bida do exterior, segundo as defini-ções convencionais da contabilidade nacional, adotadas por Piketty.

11 PIKETTY, T., op. cit., cap. 3.

12 Ibidem, p. 140-146.

13 Ibidem, p. 146-150.

14 Ibidem, p. 148.

15 Ibidem, p. 149. Em outra passa-gem, Piketty afirma que não é necessá-rio concordar com todas as teses de Lênin para compar-tilhar sua conclusão de que “o acirra-mento da competi-ção entre as potên-cias europeias por ativos coloniais obviamente contri-buiu para o clima que, em última instância, levou à declaração de guerra no verão de 1914”. Piketty, T., op. cit., p. 142.

16 Ibi-dem, p. 154.

17 Ibidem, cap. 5.

18 Ibidem, p. 173.

19 Ibidem, p. 220-222, 255-260. Para uma exposi-ção formal da rela-ção entre a distri-buição funcional (isto é, entre salá-rios e rendas do capital) e a distri-buição pessoal da renda, ver: ATKINSON, A. “Factor Shares: The Principal Pro-blem of Political Economy?”. Oxford Review of Economic Policy, vol. 25, n. 1, 2009. p. 8-12.

20 Piketty, T., op. cit., p. 383-385.

21 Ibi-dem, p. 378.

22] ACEMOGLU, D. “Technical Change, Inequality, and the Labor Market”. Journal of Economic Literature, vol. 40, n. 1, 2002. p. 7-72.

23 PIKETTY, T., op. cit., p. 150-156.

24 Um dado rela-tado por Piketty ajuda a dar a di-mensão dessa diferença: enquanto a população da França dobrou entre a Revolução Fran-cesa e o momento atual (passando de cerca de 30 milhões de habitantes para 60 milhões), a po-pulação dos Esta-dos Unidos au-mentou cem vezes no mesmo período (de 3 milhões para 300 milhões). Pi-ketty, T., op. cit., p. 29.

25 PIKETTY, T., op. cit., pp. 315-321.

26 Ibidem, p. 254.

27 Ibidem, p. 249.

28 Como observa o autor, é muito difícil distinguir ambos na prática. Piketty, T., op. cit., p. 439-447.

29 PIKETTY, T., op. cit., p. 166-170.

30 Ibidem, cap. 2.

31 Ibidem, p. 196. Tal suposição para s foi objeto de críti-cas, mas o prog-nóstico pouco se altera se a taxa de poupança cair, desde que caia menos do que g. Krusel, P.; Smith, T. “Is Piketty’s ‘Second Law of Capitalism’ Fundamental?”. Mimeo, 2014. Para uma exposição mais detalhada do argumento de Pi-ketty, ver: Piketty, T.; Zucman, G. “Capital Is Back: Wealth-Income Ratios Is Rich Countries, 1700-2010”. Paris School of Economics, 2013. p. 9-18.

32 PIKETTY, T., op. cit., p. 52-55.

33 FOLEY, D.; Michl, T. Growth and Distribution. Cam-bridge: Harvard University Press, 1999. p. 146-149.

34 PIKETTY, T., op. cit., p. 217-223. A crítica conservadora ao livro de Piketty tem se focado es-pecialmente nesse ponto. Summers, L. “The Inequality Puzzle”. Democracy: A Journal of Ideas, n. 33, 2004. Pessôa, S. “Erros e acertos do fenômeno ‘O capital no século 21′”, Folha de S.Paulo, Ilustríssi-ma, 8 jun. 2014. Para uma análise mais cuidadosa da questão, relacio-nando o argumento de Piketty com seu conceito ampliado de capital, ver: Rowthorn R. “A Note on Thomas Piketty’s ‘Capital in the Twenty-First Centu-ry'”. Mimeo, 2014.

35 PIKETTY, T., op. cit., p. 571. Ver também Piketty, T., op. cit., p. 25-27, 350-358.

36 Ibi-dem, p. 351.

37 Ibidem, p. 353-358.

38 RICARDO, D. On the Principles of Political Economy and Taxation. 3. ed. Indianapolis: Liberty Fund, 2004. p. 5.

39 KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest, and Money. Nova York: Pro-metheus Books, 1997. p. 4-5.

40 PIKETTY, T., op. cit., p. 508-514.

41 Ibidem, cap. 15.

42 NAIDU, S. “Ca-pital Eats the World“. Jacobin, 2014.

43 PIKETTY, T., op. cit., p. 30-33.

44 Ibidem, p. 96-99.

45 Ibidem, p. 98-99.

46 Ibidem, p. 330-333.

47 GALBRAITH, J. “Kapital for the Twenty-First Centu-ry?”. Dissent, 2014. Ackerman, S. “Pi-ketty’s Fair-Weather Friends”. Jacobin, 2014. Nesse ponto, o isolamento da teoria econômica dominante, na qual Piketty foi formado, em relação a pers-pectivas alternativas cobrou o seu preço. Seus comentários sobre as chamadas controvérsias do capital, assim como seus comentários sobre Marx, de-monstram uma falta de familiaridade surpreendente, dado o cuidado com o qual o livro foi escrito. Ver Pi-ketty, T., op. cit., p. 7-11, 227-232.

48 PIKETTY, T., op. cit., p. 188.

49 STOCKHAMMER, E. “Why Have Wage Shares Fallen? A Panel Analysis of the Determinants of Functional Income Distribution“. ILO, n. 35, 2013. (Condi-tions of Work and Employment Seri-es).

50 Há uma vasta literatura que de-fende que a distri-buição funcional da renda é resultante de um conjunto de determinantes econômicos, políti-cos e sociais. Ver, por exemplo, Foley, D.; Michl, T. op. cit., p. 146-149. Um dos desdobramentos dessa literatura é a investigação da trajetória da taxa de lucro, por meio da sua decomposição no percentual dos lucros no produto multiplicado pela razão produ-to/capital, que é uma outra versão da “primeira lei fundamental do capitalismo” de Piketty. Um exem-plo recente dessa literatura é BASU, D.; R. Vasudevan. “Technology, Dis-tribution and the Rate of Profit in the US Economy: Un-derstanding the Current Crisis”. Cambridge Journal of Economics, vol. 37, n. 1, 2013. p. 57-89.

Fernando Rugitsky – Pesquisador do Núcleo de Direito e Democracia do Cebrap.

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