Capital científica: práticas da ciência em Lisboa e a história contemporânea de Portugal | Marta Macedo e Tiago Saraiva
Observatório Astronômico de Lisboa | Imagem: OAL/Wiki
Este volume colectivo explora a dimensão urbana das práticas científicas em Lisboa entre meados do século XIX e meados do século XX, assim como a sua relevância para a história de Portugal. O livro apresenta dez casos de estudo divididos em três partes com uma periodização política canónica (Regeneração, República e Estado Novo). O objetivo dessa organização é duplo: por um lado, os editores procuram estabelecer diálogo com a historiografia contemporânea de Portugal e, por outro, vêm problematizar as continuidades e discontinuidades da ação de cientistas e engenheiros entre esses diferentes regimes políticos.
Na primeira parte (“Ciência e Regeneração”), Marta Macedo estuda a forma como as práticas epistemologicamente renovadas do ensino “politécnico”, a par das operações de crédito que financiaram as infraestruturas projetadas pela elite de engenheiros regeneradores saint-simonianos, construíram a cidade em diferentes níveis, desde a arquitetura da Escola Politécnica e da Escola do Exército até a expansão urbana da avenida da Liberdade. Pedro Raposo trata do Observatório Astronómico de Lisboa na Tapada da Ajuda e de como a construção de um tempo estandarizado por meio da determinação astronómica da hora oficial e a sua transmissão telegráfica (porto, comboios, faróis) possibilitou uma gestão coordenada dos crescentes fluxos materiais do capitalismo. Teresa Salomé Mota, Ana Carneiro e Vanda Leitão olham para os espaços e as práticas científicas dos serviços geológicos, analisando o papel das cartas geológicas como instrumentos de construção do Estado liberal, por meio da sua capacidade de reestruturação territorial (caminhos de ferro, recursos minerais, florestação etc.). Finalmente, Tiago Saraiva e Ana Cardoso de Matos mobilizam elementos aparentemente heterogéneos, como os sistemas de iluminação a gás, a noite dos proletários (Jacques Rancière), as fábricas do bairro de Boavista, o ensino técnico no Instituto Industrial de Lisboa, os poetas flâneurs da modernidade lisboeta (Cesário Verde), os cafés e as óperas da sociabilidade burguesa, ou a estética do sublime tecnológico, para reescrever a história do romantismo português a partir da tecnologia, das ideologias liberais e da transformação urbana de Lisboa.
Na segunda parte (“Ciência e República”), Marta Macedo e Tiago Saraiva estudam as práticas científicas em três espaços que formaram um polo bio-médico-sanitário na zona do Campo Santana: o Hospital Psiquiátrico de Rilhafoles, o Instituto Bacteriológico Câmara Pestana e a Escola Médico-cirúrgica. Os autores alegam, de forma convincente, que o poder de patologizar, diagnosticar e curar foi imprescindível à nova ordem (bio)política. Mostram ainda como o estudo das elites médicas e das práticas de laboratório deve fazer parte da escrita da história da Lisboa republicana. Esse mesmo argumento também se pode aplicar ao capítulo de Isabel Amaral e Ana Carneiro sobre o nascimento e os primeiros anos de funcionamento do Instituto Bento da Rocha Cabral no contexto da ascensão social e do papel político dos médicos na Primeira República. Finalmente, Ana Simões e Maria Paula Diogo debruçam-se sobre a circulação da cultura científica por diferentes espaços da cidade por meio dos cursos da Universidade Livre, da Universidade Popular Portuguesa e dos diferentes projetos de extensão universitária, que promoveram um programa positivista de modelação de novos cidadãos republicanos.
Na terceira parte (“Ciência e Estado Novo”), Tiago Saraiva e Maria Paula Diogo estudam a consolidação de um ethos tecnocrata nos engenheiros portugueses entre a República e o Estado Novo a partir da inscrição urbana e das práticas desenvolvidas no Instituto Superior Técnico e no Laboratório Nacional de Engenharia Civil, espaços cruciais na materialização das políticas industriais do corporatismo fascista. O capítulo de Tiago Saraiva sobre o Instituto Português de Oncologia mostra, por meio de um percurso que vai da arquitetura modernista ao associativismo feminino da beneficiência católica burguesa, como o programa das elites médicas teve continuidade entre a República e o Estado Novo, marcando o imaginário político deste último. Finalmente, Júlia Gaspar apresenta uma história do Laboratório de Física e Energia Nucleares sob a direção dos seus primeiros três presidentes.
Apesar do foco nas instituições científico-técnicas da cidade de Lisboa, esse não é um livro de história institucional. Os dois objetivos historiográficos mais alargados que o livro se propõe (com sucesso) atingir são os seguintes.
Em primeiro lugar, Capital científica consegue “pôr a ciência no centro da historiografia contemporânea”, estabelecendo uma ponte entre a história da ciência (que demasiadas vezes focaliza a pergunta epistemológica sobre a construção social do conhecimento sem analisar a construção científica da sociedade) e a história sem adjetivos (que muitas vezes trata a ciência como uma caixa negra e, no caso de Portugal, assume de forma acrítica a narrativa de “atraso” dos próprios atores históricos, não percebendo o papel das práticas de cientistas e engenheiros na construção material e simbólica das relações sociais durante o período contemporâneo). Nesse sentido, o livro inscreve-se na trajetória inteletual dos editores ( Macedo, 2012 ; Saraiva, 2016 ), virada para o diálogo com a história contemporânea, na linha da obra de historiadoras e historiadores como Gabrielle Hecht, David Edgerton ou Norton Wise. Ao olhar para o que “faziam” os cientistas e engenheiros em Lisboa, e ao considerar a ciência e a tecnologia “enquanto” cultura, essa obra consegue contribuir de forma original para a história contemporânea de Portugal. As tecnologias de determinação e transmissão da hora oficial no Observatório Astronómico de Lisboa ou as práticas pedagógicas no Instituto Industrial de Lisboa lançam novos olhares sobre a construção do Estado liberal, do romantismo e do capitalismo português no século XIX. Da mesma maneira, as experiências psiquiátricas do Hospital de Rilhafoles ou as análises de laboratório no Instituto Bento de Rocha Cabral reescrevem a história da Primeira República desde um ponto de vista biopolítico. Finalmente, a modelização de barragens abóbada no Laboratório Nacional de Engenharia Civil ou as radioterapias do Instituto Português de Oncologia problematizam a narrativa dominante sobre a ausência de ciência durante o salazarismo e colocam as práticas tecnocientíficas no centro do regime fascista.
Em segundo lugar, o livro consegue “cruzar a história das ciências com a história urbana”. Avança para além do facto óbvio de que Lisboa acumulou instituições científicas, para explorar as maneiras pelas quais as práticas de cientistas e engenheiros marcaram o carácter de capital. Partindo do trabalho em história das ciências desenvolvido durante as últimas décadas em Portugal, o livro participa e dialoga com o spatial turn e o urban turn em história das ciências, assim como com a história urbana em geral. Embora o livro em questão esteja quase exclusivamente focado nas elites e não aborde questões cruciais para a historiografia recente sobre a história urbana da ciência, como a circulação do conhecimento ou a divulgação científica ( Hochadel, Nieto-Galan, 2016 ; Girón, Hochadel, Vallejo, 2018 ), a consistência metodológica do foco na repercussão urbana das práticas dos cientistas e engenheiros, assim como a densidade e concentração geográfica dos casos de estudo, consegue fazê-lo um dos exemplos de história urbana da ciência mais bem sucedidos no plano internacional. O estudo da arquitetura do Instituto Rocha Cabral, do Pavilhão do Rádio do Instituto Português de Oncologia ou do Instituto Superior Técnico, assim como das transformações urbanas na avenida da Liberdade, do jardim do Príncipe Real ou no aterro da Boavista acrescentam uma camada fundamental à história da transformação material, cultural e política da cidade de Lisboa.
Embora haja capítulos mais e menos bem sucedidos em relação ao cumprimento desses dois objetivos, como acontece em todas as obras coletivas, e apesar da ausência da dimensão colonial na análise, que supõe o maior e mais evidente ponto fraco desse volume, no seu conjunto o livro é uma contribuição de primeiro nível tanto para a historiografia contemporânea de Portugal como para a história urbana da ciência e da tecnologia.
Referências
GIRÓN, Álvaro; HOCHADEL, Oliver; VALLEJO, Gustavo (ed.). Saberes transatlánticos: Barcelona y Buenos Aires: conexiones, confluencias, comparaciones, 1850-1940. Madrid: Doce Calles, 2018.
HOCHADEL, Oliver; NIETO-GALAN, Agustí (ed.). Barcelona: an urban history of science and modernity, 1888-1929. London: Routledge, 2016.
MACEDO, Marta; SARAIVA, Tiago (ed.). Capital científica: práticas da ciência em Lisboa e a história contemporânea de Portugal. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2019.
MACEDO, Marta. Projectar e construir a nação: engenheiros, ciência e território em Portugal no século XIX. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2012.
SARAIVA, Tiago. Fascist pigs: technoscientific organisms and the history of fascism. Cambridge: MIT Press, 2016.
Resenhista
Jaume Sastre-Juan – Professor Serra Húnter. Institut d’Història de la Ciència. Departament de Filosofia/ Universitat Autònoma de Barcelona. Barcelona – CT – España orcid.org/0000-0002-0601-1056 E-mail; jaume.sastre@uab.cat
Referências desta Resenha
MACEDO, Marta; SARAIVA, Tiago (Eds.). Capital científica: práticas da ciência em Lisboa e a história contemporânea de Portugal. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2019. Resenha de: SASTRE-JUAN, Jaume. História urbana das ciências em Lisboa: a relevância das práticas (tecno)científicas para a (re)escrita da história contemporânea. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, v.29, n.1, jan./mar. 2022. Acessar publicação original [DR]