Canibalismos Disciplinares. Entre a História da Arte e a Antropologia: museus, coleções e representações | MODOS. Revista de História da Arte | 2019
Em sua origem, aquilo que a história da arte e a antropologia apresentam de comum é a constituição de saberes sustentada pela constituição de coleções. O que as diferenciou ao longo do tempo foram os critérios de valores que as levaram a construir coleções e a acumular cultura nas instituições que ajudavam a legitimar ambos esses campos do saber – notadamente os museus. Hoje a antropologia já se distanciou dos objetos, dando lugar à arte que passa a se apropriar de um conjunto de referências culturais requalificando-as como obras. E a história da arte, por sua vez, abriu-se para questionar os mecanismos que formam os distintos sentidos do “artístico”, suas implicações e ativações sociais, ampliando seu campo de atuação para diferentes culturas visuais e formas de circulação poéticas1. A disputa iniciada no final do século passado entre a linguagem científica e a linguagem artística, já não apresenta validade para as análises sobre estes diferentes regimes de valor2 no contexto contemporâneo, sendo mais recentemente preconizadas as análises que consideram as intermediações entre um campo e o outro, e as práticas por detrás das apropriações culturais (Chartier, 2002) que, no presente número, escolhemos nos referir como “canibalismos disciplinares”.
Na esteira do livro Canibalismes disciplinaires de Thierry Dufrêne e Anne-Christine Taylor (2010), inspirados pelo Simpósio História da Arte e Antropologia, organizado pelo Musée du quai Branly (Paris), em 2006, e pelos trinta anos da discutida exposição Magiciens de la Terre, de 1989, em suas repercussões para os museus e exposições de arte na França bem como em países não europeus, o presente dossiê buscou acolher investigações de pesquisadores da história da arte, das ciências sociais e da museologia preocupados com as relações, as conexões, os conflitos e as contradições operadas pelas narrativas e representações contemporâneas produzidas na intercessão entre a antropologia e a arte.
Privilegiando objetos, processos, eventos e instituições que navegam entre as duas áreas, num processo de canibalismos mútuos entre essas duas práticas disciplinares, os artigos selecionados revelam como essas diferentes disciplinas vêm, no contemporâneo, se alimentando de apropriações culturais produzidas a partir da conciliação de discursos dissonantes do passado. Nas intersecções entre a antropologia e a história da arte, a museologia é a terceira chave deste relacionamento pois opera com as transformações dos objetos, investindo-os em processos singulares e próprios do campo, abarcados pela noção de musealização, um ato simbólico e criativo que produz sentidos e cria valores. Sendo assim, questões como contexto, origem, autenticidade, (re) socialização, artificação, colonialismo, descolonização, hibridismos, entre tantas outras, estimulam o debate e as aproximações em projetos narrativos, colecionadores, curatoriais etc.
Neste sentido, em diversos dos textos aqui apresentados, a arte aparece menos como um campo delineado e estático e mais como um tipo particular de antropofagia, que assimila objetos e valores provenientes de matrizes culturais distintas e classificados por outras disciplinas. Logo, para pensarmos em termos de apropriações, considerando o estado de constante devir em que se encontram os objetos musealizados ou revalorados nos regimes híbridos, se faz necessário – como comprovam as análises aqui presentes – pensar em termos de transições, das passagens e dos interstícios existentes entre a arte, a antropologia, a museologia e os demais saberes que produzem objetos para serem transmitidos nos diversos discursos e instituições constantemente renegociados no presente.
Em seu artigo “Esse ‘troço’ é arte? Religiões afro-brasileiras, cultura material e crítica”, Roberto Conduru analisa as sucessivas apropriações da cultura material oriunda dos ritos religiosos afro-brasileiros, discutindo o seu valor artístico nos museus contemporâneos. Apreendidos dos terreiros pela repressão policial a essas religiões marginalizadas, os objetos de culto são canibalizados pela etnologia ou pela arte nos regimes museais. A partir de um contexto controverso em que esses objetos foram introduzidos nos museus entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, é por meio do pensamento de intelectuais como Raimundo Nina Rodrigues e Arthur Ramos, na antropologia, e Mário Barata, na museologia e na história da arte, que se passa a evocar a dimensão artística investida nos objetos usados no culto religioso do candomblé. De “bugigangas” a obras de arte, esses objetos de cultos afro-brasileiros permitem compreender a complexidade dos regimes de valores em que se dão as apropriações culturais pelas disciplinas científicas, pelo patrimônio e pelos museus.
No artigo “Produção cultural indígena e história da arte no Brasil: exposições e seus enunciados (parte I – Alegria de Viver, Alegria de Criar)”, Ivair Reinaldim apresenta sua reflexão sobre a arte indígena no Brasil e sua representação em exposições brasileiras. A partir do estudo de caso da mostra Alegria de Viver, Alegria de Criar, idealizada por Mário Pedrosa nos anos 1970, Reinaldim analisa como uma certa visão histórica sobre a produção cultural indígena no país determina as abordagens teórico-metodológicas que levam à produção de suas representações recriadas pelos museus e pelo campo da arte. A apropriação cultural de referências indígenas na arte contemporânea brasileira é abordada numa perspectiva crítica no artigo de Ilana Seltzer Goldstein. A autora demonstra como é no diálogo interdisciplinar entre a antropologia e a história da arte que tais apropriações se tornam possíveis e se mostram profícuas tanto para os artistas quanto para os próprios povos indígenas. O artigo reconhece na arte contemporânea uma nova arena de luta por visibilidade dos povos indígenas no Brasil, ainda que deixando transparecer o evidente lugar dos indígenas nas disputas inerentes a essas traduções culturais no campo artístico.
Nestas abordagens artístico-etnográficas, a questão da autoridade sobrepõe-se à própria noção de apropriação cultural, e as análises revelam que as representações construídas da cultura na arte se veem marcadas por diferentes autoridades científicas e culturais, como a do etnógrafo ou a do artista e a do curador. No texto “As carrancas de Jacque, Lina e Emanoel: a estética do assombro em três coleções de arte popular”, as autoras Daniela Ortega Caetano dos Santos e Priscila Faulhaber demonstram como a valorização de obras consideradas como arte popular é determinada pela personalidade dos colecionadores. Ao investigarem a trajetória de coleções de Jacque Van Beuque, Lina Bo Bardi e Emanoel Araújo, discutem como a percepção da arte nestes diferentes olhares autorizados configura um campo estético e cultural próprio das artes populares no Brasil, conformando um discurso dominante e classificando as obras ao mesmo tempo em que atribuindo valor aos colecionadores. Já Renata Montechiare, em seu artigo “Arte versus Cultura: a exibição dos objetos da Sala de África do Museo de Culturas del Mundo de Barcelona”, explora as divergências entre historiadores da arte e antropólogos no tratamento, nos usos e nas apropriações de coleções de objetos “extraeuropeus” pelo Museo de Culturas del Mundo de Barcelona. Montechiare lembra que o museu possui um papel essencial nesta disputa entre saberes disciplinares, visto que a instituição pode repensar as oposições fora de uma busca obsessiva por uma definição ou classificação estrita de tais objetos.
A questão da autoridade artística reaparece no artigo de Maurício Barros de Castro e Myrian Sepúlveda dos Santos, na análise do caso do Museu de Arte Negra criado pelo ativista, escritor e pintor Abdias do Nascimento, a partir de uma coleção pessoal e voltado para a valorização de artistas negros ignorados pela história da arte oficial. Para os autores, a revalorização da cultura negra pelos museus e nas artes no Brasil estava ligada ao ativismo de grupos organizados que reivindicavam, desde os anos 1940, a criminalização do preconceito. O papel de intelectuais como Alberto Guerreiro Ramos e Édison de Souza Carneiro, a partir do mundo acadêmico e em defesa dos direitos civis, teria sido determinante para o processo de requalificação da cultura negra no país. Ainda na direção da compreensão da reclassificação da arte das culturas negras, Tiago Guidi, em “Fatos sociais como esculturas”, contrapõe textos clássicos do início do século XX de Émile Durkheim e de Carl Einstein, questionando-se que perguntas a história da arte e a antropologia fazem aos objetos sagrados para fundar suas epistemologias.
Os aspectos políticos na arte, que por vezes engendram a reinterpretação de coleções, são flagrantes na observação de casos de estudo específicos envolvendo questões sociais evidenciadas por meio de interpretações artísticas. Patricia Reinheimer, em seu artigo “O moderno rústico: arte e indumentária na década de 1960”, relaciona memória, indumentária e arte para pensar uma coleção de documentos pertencente ao arquivo pessoal do casal Olly e Werner Reinheimer que contribuiu para a criação de uma estética específica atravessada por questões de gênero, classe e raça, abordadas pela autora. Os arquivos são, aqui, percebidos como importantes instâncias de produção e estabilização de discursos. Em sua análise, o lugar privilegiado do mercado constitui o campo mais imediato dos museus e da arte influenciando a revalorização de objetos e a constituição de coleções qualificadas como coleções de arte.
No artigo “Natureza e cultura no entorno do Central Park”, Solmaz Kive recupera a apropriação de objetos etnográficos expostos nos museus de história natural e de antropologia de meados do século XIX, analisando a sua migração para os museus de arte a partir do final do século XX. A reclassificação dos objetos científicos como “obras de arte” pelos museus permite levantar questões sobre a própria eficácia da musealização. A autora realiza uma comparação entre exposições etnográficas e exposições de história da arte em museus da cidade de Nova York, visando explorar as semelhanças que persistem em abordagens expositivas pensadas como opostas ou em contraste, para reconsiderar as críticas tecidas a esta tendência à reclassificação. Em sentido distinto, porém partindo da mesma transição museográfica, Bruno Brulon apresenta a comparação entre uma exposição de objetos xamânicos no Musée du Quai Branly, na França, e a apropriação do dispositivo museu num terreiro de candomblé, na cidade de Recife, Pernambuco. O autor propõe discutir a dessacralização dos objetos rituais pelo museu francês, por um lado, e a profanação da própria musealização, como processo simbólico e performativo apropriado pela comunidade de um terreiro de candomblé na criação de um museu experimental religioso. Em sua análise, os objetos rituais são ativadas pelo axé, uma força mágica que envolve objetos e pessoas em suas relações por meio da musealização, de modo que o museu e a arte não necessariamente excluem a religiosidade.
Ao evidenciarem as interseções produtivas de novas interpretações para objetos, por vezes, inclassificáveis, os canibalismos disciplinares contribuem para lançar olhares indeterminados e indeterminantes sobre os processos museais e as disciplinas que os constituem. O presente número, para além de considerar os objetos e seus valores determinados, apresenta perspectivas variantes sobre a própria atribuição de valores como um processo contínuo de apropriação de saberes abrindo uma via interdisciplinar para a descolonização dos regimes dominantes.
Notas
1 Especialmente no Brasil, entre outras, temos as reflexões de (Huchet, 2004); (Kern, 2013); (Pugliese; Correa, 2017); (Marques et. all, 2013).
2 Sobre o conceito de “regimes de valor”, ver (Appadurai, 2007).
Referências
APPADURAI, Arjun. Introduction: commodities and the politics of value. p. 3-63. In: _______. (ed.) The social life of things. Commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
CHARTIER, Roger. Introdução. Por uma sociologia histórica das práticas culturais. In: _____. História Cultural. Entre práticas e representações. Algés: DIFEL, 2002, pp.13-28.
DUFRÊNE, Thierry & TAYLOR, Anne-Christine. Cannibalismes disciplinaires. Quand l’histoire de l’art et l’anthropologie se rencontrent. Paris : Musée du Quai Branly / INHA, 2010.
HUCHET, S. Questões sobre o lugar e a função da História da Arte. Anais do XXIII Colóquio Brasileiro de História da Arte, Rio de Janeiro: CBHA: 2004, p. 425-428.
KERN, M. L. A História da Arte: revisão e novas perspectivas. In: COUTO, M.; FUREGATTI, S. (org.). Espaços da Arte Contemporânea. São Paulo: Alameda Editorial, 2013, p. 85-99.
MARQUES, L.; MATTOS, C.; ZIELINSKY, M.; CONDURU, R. Existe uma arte brasileira?, Perspective, 2, 2013.
PUGLIESE, V.; CORREA. P. Historiografia da Arte no Brasil: memórias e invenções. In: PARAGUAI, L.; SOBAGE, M. (org.). Memórias e inventações. São Paulo: Anpap, 2017, p.64-75.
Organizadores
Bruno Brulon – Professor de Museologia no Departamento de Estudos e Processos Museológicos – DEPM da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO e do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio – PPG-PMUS (UNIRIO/MAST). E-mail: brunobrulon@gmail.com ORCID: ˂ https://orcid.org/0000-0002-1037-8598 ˃
Emerson Dionisio G. Oliveira – Docente e pesquisador do Departamento de Artes Visuais, no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais e no Programa de Ciência da Informação da Universidade de Brasília. E-mail: dionisio@unb.br ORCID: ˂https://orcid.org/0000-0002-3705-1667 ˃
Referências desta apresentação
BRULON, Bruno; OLIVEIRA, Emerson Dionisio G. Apresentação. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 3, n.3, p.61-66, set./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]