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Camponeses brasileiros | Clifford Welch

Camponeses brasileiros é uma junção de textos clássicos que abordam a questão da natureza do campesinato nacional. A obra é um dos volumes que compõem a coleção História Social do Campesinato no Brasil, organizada, desde 2004, pelos pesquisadores Horácio Martins de Carvalho, Delma Pessanha Neves, Márcia Maria Menendes Motta, Carlos Walter Porto-Gonçalves e pela Via Campesina do Brasil.

Diante das várias formas de contestação e resistência camponesa que afloraram no século XX e de trabalhos que têm demonstrado a participação ativa dos pobres do campo nas revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII, pode-se conferir ao campesinato também um “papel” de protagonista na história da humanidade. Mesmo assim, foram muitos os esforços que visaram apagá-lo da história, ora pela execução de políticas para expropriá-lo de seus territórios, ora pela formulação de teorias para excluí-lo da história (WELCH et al.).

No Brasil, esse debate relativo à caracterização do camponês continua atual. Dois projetos de sociedade continuam a se confrontar: de um lado, a agricultura familiar, a produtora da alimentação dos brasileiros; do outro, o Brasil do “agronegócio”, defendido pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), atualmente presidida pela senadora Kátia Abreu. Esta, aliás, orgulha-se de defender a importância, por exemplo, das divisas geradas pela exportação da pecuária, enquanto os lucros gerados em alguns poucos quilômetros quadrados ocupados pela empresa privatizada Embraer ultrapassam o valor gerado pela exportação de todos os bois da CNA. Aquele atribui ao campesinato uma natureza positiva, enquanto para a CNA a tendência natural é a concentração da propriedade da terra e a proletarização dos pequenos agricultores. Essa luta não surgiu hoje nem ontem, mas é uma contenda de muitas décadas ou mesmo de séculos. O presente livro resgata essa história.

O livro é dividido em quatro partes distintas, totalizando quatorze capítulos. A primeira parte, composta de três capítulos, enfoca a discussão existente na década de 1960, em um contexto de debate em torno da regulamentação do trabalho no campo no auge da atuação das Ligas Camponesas.

No primeiro, Alberto Passos Guimarães (1963) discute a configuração da classe dos camponeses e suas lutas constantes contra os latifundiários. Institui a formação da propriedade camponesa no Brasil como produto dessa luta, e não de uma coleção de decretos, como o da política de imigração no século XIX. Defende que os chamados “intrusos” ou “posseiros”, os cultivadores pobres livres que ocupavam um pedaço de terra devoluta, são os precursores da propriedade camponesa no Brasil. O autor analisa ainda as condições de vida desses trabalhadores livres, que não podiam ingressar na força de trabalho oficial, constituída pelos escravos, nem ter acesso aos meios naturais de produção, representados pela terra, devido a um permanente impedimento, por parte da aristocracia rural, de os produtores pobres livres poderem ter acesso legal à terra, questão viva até hoje, conforme já adiantamos.

No artigo de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1963) discute-se a natureza da sociedade brasileira. Nele podem-se ver contestações como as afirmações de Lacques Lambert (1953) de que os sitiantes, pelo fato de viverem em uma economia de subsistência, não contribuem para o desenvolvimento econômico do país. Essa parte da economia brasileira representaria, assim, o Brasil arcaico, ao passo que a produção agrícola voltada para a exportação representaria o Brasil moderno.

No debate sobre a regulamentação do trabalho na agricultura existente no início da década de 1960 a autora enfoca os pequenos agricultores sitiantes, produtores de subsistência, que não vivenciam diretamente a relação polarizada entre capital e trabalho, por isso são ignorados em todos os projetos de reforma agrária apresentados ao Congresso Nacional entre as décadas de 1940 e 1950. Queiroz mostra-se preocupada com o aumento da emigração da população sitiante, que tem provocado a degradação social e econômica dos emigrados, pois estes passam a viver em um universo para o qual não foram preparados. Para resolver a situação dessa parcela da população brasileira, apresenta como solução a reforma agrária, que “deve salvaguardar os direitos de quem ocupou uma terra abandonada e deserta, nela trabalhando e plantando” (p. 67).

No terceiro capítulo, Manuel Correia de Andrade (1963) focaliza o tema das possibilidades de organização dos trabalhadores rurais, com enfoque nas Ligas Camponesas e na sindicalização. O autor demonstra como a organização dos trabalhadores rurais no Nordeste, a partir da década de 1950, foi uma resposta ao avanço da cana sobre as terras cultivadas pelos camponeses, sob o impulso pela elevação do preço do açúcar e o reequipamento das usinas, logo após o término da II Guerra Mundial, que converteu os antigos senhores em fornecedores de cana às usinas. Sobre as possibilidades de organização do campesinato, o autor conclui que os sitiantes ameaçados ou expropriados pela cana são mais facilmente alistados nas Ligas do que os trabalhadores assalariados, pois estes temem a repressão das usinas e dos fazendeiros.

Cinco capítulos compõem a segunda parte do livro, cujas abordagens são dedicadas à compreensão teórica do campesinato. Neles os autores buscam construir conceitos e categorias analíticas para explicar o papel do campesinato na história da sociedade brasileira.

O primeiro texto da série é de Octávio Guilherme A.C. Velho (1969). No capítulo desse autor o leitor conhecerá um modelo de análise que contempla duas situações-limite: o Nordeste brasileiro e a fronteira amazônica. Para isso ele apresenta três variáveis: quanto menor a disponibilidade de terra, maior a quantidade de mão-de-obra e maior também a integração ao sistema nacional, e mesmo ao internacional.

Neste caso, cujo exemplo mais próximo seria o Nordeste, teríamos menos o camponês e mais o tipo proletário; em situação inversa, na região amazônica teríamos mais o tipo camponês e menos os proletários. Em um sistema, os elementos terra, mão-de-obra e integração são variáveis independentes entre si, ao passo que o camponês seria a variável dependente do sistema. Basicamente o autor propõe que os camponeses e os operários não sejam tratados em termos de oposição, “mas como um continuum com dois casos-limite entre os quais teriam de ser colocadas todas as situações em que parceiros, meeiros, arrendadores, etc., podem ser encontrados em nosso interior em graus diversos de autonomia do trabalho” (p. 95).

Ciro Flamarion S. Cardoso (1979), seguindo a trilha de Tadeusz Lepkowski, apresenta a questão da gestação do campesinato no sistema escravista por meio da chamada “brecha camponesa”. Possivelmente com o objetivo de minimizar os custos com a manutenção e reprodução da mãode- obra, o senhor concedia ao escravo uma pequena parcela de terra e um tempo livre para cultivá-la e produzir sua própria subsistência. No seu texto, o autor chama a atenção para o caráter generalizado da prática do escravo camponês no sistema escravista americano, tanto que, para outro autor, Sidney Minstz (apud Cardoso), a brecha camponesa coloca em dúvida o modo de produção escravista. Entretanto, a coisa não deve chegar a esse ponto. Cardoso ressalta que a brecha camponesa é secundária e serviu para a reprodução do próprio sistema escravista, ela “nuança, mas não põe em dúvida o sistema escravista dominante” (p. 114).

Por outro lado, esse argumento da “brecha camponesa” é questionado no capítulo seguinte, de Maria Yedda Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva (1981). Nesse trabalho, para explicar a gênese dos camponeses, são buscados elementos localizados fora do latifúndio escravista, na periferia ou no espaço aberto pela fronteira. Ver-se-á, então, que a “brecha camponesa” não foi a única forma de produção dedicada ao abastecimento do mercado interno, fato que as autoras demonstram ao resgatar os lavradores subordinados ao senhor de engenho, os pequenos agricultores do Agreste e do Sertão e a criação de gado de corte nos terrenos inadequados à lavoura da cana. O leitor também verá que, nesse trabalho, as autoras chamam a atenção para a necessidade de estudos com enfoque voltado à produção de subsistência, ignorada pelos “estudos sobre a história econômica brasileira publicados até o final da década de 1970” (p. 117) e, por isso, defendem que essas pesquisas têm um grande potencial para revelar uma face oculta do Brasil.

No texto subsequente, Octávio Ianni (1986) aborda o caráter político da ação dos camponeses e a importância da experiência desses atores sociais para o desenvolvimento dos processos históricos no período Pós-Revolução Industrial e até nas revoluções burguesas, como destacamos no início da resenha. Um aspecto importante que o leitor poderá observar no capítulo de Ianni é o resgate que o autor faz de uma carta-resposta de Karl Marx a Vera Zasúlich sobre a “possibilidade de que a comuna rural russa se desenvolvesse na via socialista” ou se “estava destinada a perecer com o desenvolvimento do capitalismo na Rússia” (p.

139), carta que avaliava que a Rússia não precisava seguir o caminho da segunda. Essa colocação é importante para os pesquisadores marxistas, principalmente para os que escrevem sobre os movimentos camponeses, porque Ianni resgata precisamente um Marx que vai em sentido contrário ao doutrinarismo ainda presente na hora de classificar os camponeses.

No capítulo oitavo, de Guillermo Palacios (1987), o autor, instigado por uma revolta camponesa, datada de 1851-1852, contra a Lei do Censo e a lei que estabelecia o registro de nascimento e óbitos, apresenta uma periodização da história dos camponeses no Nordeste, de 1700 a 1875, dividindo-a em quatro períodos, em cada um dos quais o campesinato se encontra em uma situação particular. Institui a gênese dos camponeses no Nordeste Oriental entre as décadas de 1700 e 1760, graças à crise da plantation. Destarte, ao contrário de Cardoso, a “brecha camponesa” não se encontra no interior do latifúndio, mas fora dele. A crise do açúcar no mercado de exportação deu margem para a “conversão dos pobres em plantadores de culturas de subsistência” (p. 155). Na sua análise sobre a revolta de 1851-1852, quase um século depois da sua eclosão, o autor demonstra como os cultivadores pobres livres já expressavam sua identidade de classe camponesa ao perceberem a intenção das ditas leis: a de formar um mercado de trabalho “livre”, pois o trabalho era percebido então pelos pobres livres como “cativeiro”.

Na terceira parte da obra, o leitor poderá observar a continuidade das preocupações que nortearam a parte anterior, com a diferença de que agora a reflexão será pautada por abordagens feitas a partir de situações concretas. São quatro pesquisadores que apresentam os resultados de seus trabalhos e suas conclusões a respeito da reprodução social do campesinato no Brasil.

Nessa parte, Kalervo Oberg (1957), em seu texto, pretende “demonstrar como surgiram os campônios marginais no Brasil e quais as forças que atuavam para que eles existam” (p. 192). O autor identifica o conceito de campônio marginal com o trabalhador instável, aquele que toma a dianteira da expansão da fronteira agrícola, “que vive a roçar e queimar o mato, produtor de alimentos, [que] originalmente era agregado, agora pode ser um meieiro” (p. 182). Considera-o um “zero econômico do Brasil”, um marginal, por não ser um produto da história econômica, mas da mistura de raças, com traços das cultura europeia, indígena e negra. Apregoa que uma classe de camponeses completa – ao mesmo tempo “proprietários, administradores e trabalhador” – só surgiu no século XIX no Sul do Brasil com a imigração europeia.

Já nos três capítulos que se seguem, são trabalhados os temas do cotidiano do mundo camponês, como o bairro rural, onde Antonio Candido (1964) analisa as formas de sociabilidade das comunidades na Região Sudeste, a partir de conceitos como “trabalho coletivo” no interior das comunidades de bairro ou, o conceito de “mutirão” na sociedade caipira. Observa ainda o papel da religião na preservação da sociabilidade no interior dessas comunidades.

Por sua vez, Moacir Palmeira (1977) puxa o debate para os trabalhadores da plantation canavieira nordestina, onde o autor analisa as distintas formas de morada e as diversas categorias de trabalhadores, por meio da observação do significado de termos como “morador”, “morador de condição”, quanto à forma de morada, e de expressões como trabalhador na “diária”, por “tarefa” ou “conta”, quando em relação às categorias de trabalhadores.

Também preocupado com a reprodução social do campesinato brasileiro, o artigo de Klaas Woortmann (1990) analisa migração como um conjunto articulado de práticas que servem para a reprodução ou para a preservação da condição camponesa. O texto demonstra que as migrações de camponeses não resultaram apenas da inviabilização de suas condições de existência, mas são um componente integrante da sua reprodução, independentemente de suas necessidades econômicas. Isso explica por que os sitiantes “fortes”, embora não haja necessidade em termos econômicos, incentivam os filhos a migrar, pois a migração tem a função de converter o rapaz em homem.

Por fim, a quarta parte resgata dois autores fundamentais da resistência camponesa. São, na verdade, dois atores envolvidos diretamente nas lutas contra a opressão dos trabalhadores do campo: Thomas Davatz (1858) e Francisco Julião (1962). Os dois textos são fontes históricas, pois o primeiro possibilita compreender a luta dos imigrantes europeus – atraídos pela propaganda de prosperidade através do trabalho nas lavouras de café no século XIX – contra a ameaça de escravidão a que estavam sendo submetidos no Brasil. Já Julião, como líder das Ligas Camponeses, permite-nos conhecer a história de um movimento camponês que nasceu em Pernambuco na década de 1950, mas que ainda permanece “como uma das maiores referências da luta camponesa” (WELCH et al., p. 40).

Sem mais espaço, dada a densidade de informações da obra, consideramos que o livro nos ajuda a pensar em muito as disputas que envolvem a questão agrária no Brasil. É nítida em boa parte dos textos a discussão em torno da gênese do campesinato, encontrando-se referências tanto favoráveis quanto negativas sobre esses sujeitos. Cabe ao leitor refletir e assumir o seu posicionamento.


Resenhista

Roberto Carlos Klauck – Mestrando em História pela Universidade Estadual de Maringá, na linha de pesquisa Política e Movimentos Sociais.


Referências desta resenha

WELCH, Clifford A. et all (Orgs.). Camponeses brasileiros. Vol. 1: Leituras e interpretações clássicas. São Paulo: Ed. da UNESP: Ministério do Desenvolvimento Agrário, NEAD, 2009. 336p. Resenha de: KLAUCK, Roberto Carlos. Diálogos, v. 14 n. 1, p. 199-204, 2010.

Itamar Freitas

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