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Caminhos para a teoria da história da filosofia das historicidades e a questão da justiça histórica | Berber Bevernage

Berber Bevernage é um jovem e atua como professor de Teoria da História na Universidade de Gante, Bélgica. Além disso, é co-fundador da Rede Internacional de Teoria da História (International Network for Theory of History) criada em 2012 com o objetivo de promover a colaboração de teóricos por meio da divulgação e circulação de eventos e publicações na área. Atualmente também coordena o Grupo de Pesquisa TAPAS (Thinking about the past), onde promove iniciativas voltadas a pensar as múltiplas formas de relação com o passado que ocorrem dentro e fora do espaço acadêmico-universitário.

Para compreendermos o interesse pela obra de Berber Bevernage por parte da comunidade de historiadores brasileiros é necessário pontuar a ligação que se fez entre a Rede Internacional de Teoria da História e a Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Essa aproximação ficou visível no ano de 2016 em evento promovido pelo Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (Nehm) e pela Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH), que trouxe para a UFOP os principais nomes do campo da Teoria da História e da História da Historiografia. Com o tema “Passados práticos: vantagens e desvantagens da história para a vida”, a programação contou com mesas, debates e a presença dos principais pesquisadores dessa área, como Chris Lorenz, Christophe Bouton e Hans Ruin. 2

É neste contexto de sociabilidades acadêmicas que se insere, portanto, o trabalho realizado por Walderez Ramalho, que na condição de doutorando na UFOP, orientado pelo historiador Valdei Lopes Araújo, fez estágio pós-doutoral com Berber Bevernage, e traduziu para o português, no ano de 2020, dois textos publicados pelo historiador belga. O primeiro texto trata-se de publicação realizada em 2012 na Low Countries Historical Review, o outro artigo refere-se a estudo que teve sua versão original publicada no ano de 2015 no Journal of History and Theory. Neste sentido, a tradução dos textos de Berber Bevernage para o português por Walderez Ramalho possibilitou um acesso mais amplo à produção do historiador belga principalmente, ao seu pensamento de fronteira, ou seja, “aquele que consegue abrir novos horizontes de possibilidades de pesquisa (…) sem, contudo, abandonar completamente o diálogo com a tradição existente3.” O historiador propõe a partir de seu pensamento de fronteira, que a filosofia da história se abra para a compreensão de outras temporalidades, para o que acontece além da historiografia acadêmica, de modo a transformar-se numa ampla “filosofia das historicidades”, passando a considerar a pluralidade de formas extra-acadêmicas de lidar com o tempo. É preciso pontuar que o autor vai pensar essa fronteira como a abertura de uma proposta para se pensar Teoria da História, muito mais vinculada aos usos da história no tempo presente.

Sua proposta consiste em evidenciar uma discussão que alcance os limites da historiografia acadêmica, pois dá possibilidade de ir além dessa linearidade que restringe o debate sobre um passado histórico produzido na academia, nas discussões sobre historiografia. Para ele,

Uma realização importante da teoria da história é sua observação de que a historiografia acadêmica e as formas mais amplas de consciência histórica são elas mesmas sujeitas a mudanças históricas […]. Eu estou convencido que a teoria da história continuará relevante para os historiadores e para a sociedade se ela prestar atenção suficiente para a diversidade de mecanismos para lidar com o passado e a forma como tais mecanismos são incorporados, interagem com, e até constituem parcialmente contextos culturais, sociais e políticos mais amplos. 4

Logo, suas propostas consistem em defender a ideia de que a teoria da história não é um campo de pesquisa restrito a alguns historiadores profissionais, mas que pode oferecer contribuições para as questões proeminentes no debate público, assim, confere-se que ao colocar em debate as noções de tempo e historicidade que sustentam as diferentes discussões relevantes para a sociedade como um todo, a teoria da história, portanto, deve manter-se como um campo de pesquisa não só para a historiografia acadêmica, mas deve se transformar em uma ampla “filosofia das historicidades”, “isto é, ela deve concentrar-se em investigar as variedades de formas acadêmicas e não acadêmicas de lidar com o passado.”5

Quanto aos estudos traduzidos, o primeiro texto trata-se do artigo “Da filosofia da história à filosofia das historicidades: algumas ideias sobre o futuro potencial da teoria da história”, cujo título original é “From Philosophy of History to Philosophy of Historicities: somes ideas on a potential future of historical theory”, publicado no ano de 2012 na Low Contries Historical Review. As reflexões presentes no referido estudo foram produzidas em Fórum organizado pelos editores da referida revista, que convidaram além de Bervenage, os teóricos da história Herman Paul e Harry Jansen, para discutir sobre o futuro da Teoria da História e porque o campo tem aparentemente perdido relevância se comparado a períodos anteriores, com especial atenção a produção historiográfica e a formação de novos historiadores no contexto dos países baixos.

Para Berber Bevernage em momento de intensificação dos usos da história e da memória é possível reconhecer a busca da ideia de que a filosofia da história não está em crise. Contudo, segundo o historiador é necessário superar uma série de desafios em seu percurso. Para ele, primeiro é necessário reconhecer que “a historiografia acadêmica não se desenvolve (…) em um vácuo temporal (…) está intimamente relacionada com uma série de premissas, crenças sociais, culturais e políticas específicas sobre o tempo e a historicidade.”6

Outro desafio apresentado consiste na restrição por parte dos filósofos em recorrer a análises alternativas de historicidade, isso leva, como indica o próprio estudioso,

a uma desvalorização da pluralidade das funções sociais, políticas e culturais da historiografia, inclusive em sua forma acadêmica e uma deturpação das análises alternativas sobre historicidade, por exemplo relacionadas à memória, a musealização, tradição, mitos de origem (…) como exemplos de uma historiografia de má qualidade, incapaz de entregar o verdadeiro conhecimento histórico. 7

A provocação implica no reconhecimento de que a filosofia da história terá que abordar múltiplas temporalidades se ela “quiser se transformar em uma filosofia das historicidades e manter-se relevante para os historiadores e para a sociedade”. 8

Já o segundo texto de Berber Bevernage traduzido por Walderez Ramalho, e publicado no Brasil no ano de 2020, denomina-se “O Passado é mau/ O mal é passado: sobre política retrospectiva, filosofia da história e maniqueísmo temporal”. O título original deste artigo é “The past is evil/Evil is past: on retrospective politics, philosophy of history, and temporal manichaeism”, o estudo teve sua versão original publicada no ano de 2015 no Journal of History and Theory. Nele, o pesquisador indica que, desde os anos de 1990, temos assistido o surgimento de diferentes iniciativas que abordam todos os tipos de males históricos, abrangendo desde atos simbólicos tais como “programas de memorialização, comissões de verdade e desculpas públicas, como pagamentos de representação e restituição histórica, bem como processos judiciais diretos através de tribunais e cortes (inter)nacionais.” 9

Neste contexto existem aqueles que falam sobre o surgimento da “justiça histórica”, outros sobre “política de arrependimento”, e outros ainda sobre a “política de reparação”, a opção de Berber Bevernage foi pensar tais questões a partir da concepção de “política retrospectiva.10” Ao longo do texto o autor troca a ideia de justiça histórica por política retrospectiva, de modo que dá ênfase, no fato de que a escrita da história, ou escrita histórica, ou escrita pelo historiador, ela produz senti – dos, por isso, é importante pensar essa dimensão retrospectiva.

O autor propõe a abertura de possibilidade de fontes, recortes, de olhar para outros vestígios de formas que as sociedades tiveram de lidar e se relacionar com o tempo. Sobre as tendências atualmente dominantes de política retrospectiva, segundo Bevernage, elas tendem de fato a serem “anti-utópicas e possuem um potencial emancipatório muito limitado.11”O historiador argumenta que o anti-utopismo e o passadismo ético resultam de um tipo específico e subjacente de pensa – mento histórico ou filosofia da história que trata da relação entre passado, presente e futuro em termos antinômicos e nos impede de compreender injustiças e responsabilidades “transtemporais”. Por vezes, esse tipo de pensamento histórico de fato estimula uma postura moralista no qual o passado é acusado como o pior de todos os males, enquanto o presente se torna moralmente inocentado por simples comparação.

Sua escolha em analisar e avaliar a filosofia da história subjacente à política retrospectiva atualmente dominante para mostrar que existem outros tipos de meios emancipatório de política retrospectiva implicou em reflexões sobre algumas visões alternativas de política e justiça, baseadas em noções radicalmente diferentes de historicidade, que tem sido desenvolvidos por coletivos de vítimas e sobreviventes tais como a Asociación Madres de Plaza de Mayo, na Argentina; e o Khulumani Support Group, na África do Sul. Uma característica comum entre tais grupos, é que eles frequentemente combinam seu olhar retrospectivo com projetos de justiça focados no presente e no futuro e que eles, portanto, resistem às visões dualistas de temporalidade e até mesmo às noções de distância temporal12. Dessa maneira, uma análise crítica das políticas de tempo deve concentrar-se em como os grupos criam performativamente “contemporaneidades” hegemônicas (por exemplo, o Ocidente moderno como o verdadeiro contemporâneo, como representando o contemporâneo).13

Berber Bevernage indica como lidar com isso ao retomar Jacques Rancière (2013): “and what a particular stat of things readily presentes as impossible is, quite simply, the possibilitity of changing the stat of things” (o que um determinado estado de coisas prontamente apresenta como impossível é simplesmente a possibilidade de mudar o estado de coisas), ou seja, é importante olhar especialmente para aquilo que no nosso tempo pareça impossível, sendo, talvez, essa uma chave de leitura para pensar o fato de como mudar o estado de coisas. Por isso, a proposta de Bervenage, consiste em pensar a necessidade de uma filosofia da história radicalmente diferente que repensa a temporalidade histórica de tal forma que ela não se presta mais às figuras de pensamento antinômicos ou dualistas. Enfatiza que somente nesta “base poderemos criar um projeto de justiça histórica mais consistente e inclusivo que não nos força a escolher entre justiça retrospectiva, por um lado, e justiça no presente ou futuro, por outro lado, mas que faz uma reforçar a outra.”14

Para construir seus argumentos, Bervenage retoma pensadores como Louis Althusser, Ernst Bloch, Johannes Fabian, mas mais notavelmente Jacques Derrida com sua noção de “espectralidade”, que propuseram alternativas de pensar a história e a temporalidade consideradas oportunas para tal busca. Para o pesquisador, um bom ponto de partida “prático” para essa busca é olhar para as visões alternativas de tempo histórico que muitos grupos de vítimas e sobreviventes sustentam. Suas visões não são de modo algum idênticas àquela da política retrospectiva dominante, de modo que, um dos desafios consiste em compreender como grupos criaram performativamente temporalidades hegemônicas.

Suas reflexões permitem ao historiador a possibilidade de pensar utopicamente, o nosso movimento, de como nos deslocamos daquilo que reproduzimos, gestos feitos cotidianamente, e como olhamos para a sociedade a partir do tempo histórico. Nestes termos é necessário pensar qual narrativa a história vem produzindo, o produto do historiador de dar algum sentido, construir sentido da história, ou denunciar o sentido da história. Fernando Nicolazzi15, quando pensa nos modos de pensar as historicidades a partir dos regimes historiográficos se desloca à história pública para pensar esses outros regimes de tempo fora da história disciplinar e tradicional.

O que Berber Bervenage vem fazendo é demonstrar que o passado não está afastado do presente, e tornar isso sim, uma atividade ética do historiador. Essa é uma grande contribuição. Sua pesquisa convida os estudiosos da área de Teoria da História e História da Historiografia a olhar para outras fontes, oportuna pensar sobre as formas de consolidar o contemporâneo, de trabalhar com temáticas pertinentes à contemporaneidade. Sua proposta instigante nos convida a pensar nos usos do passado, que é um tema recorrente na área da Teoria da História e História da Historiografia.

A nossa contemporaneidade parece nos exigir teoricamente uma posição que combine uma história disciplinar com respostas mais efetivas sobre as relações que as sociedades estabelecem com os seus tempos, em qualquer recorte temporal. Neste sentido, o autor faz a mesma sugestão que Valdei Lopes Araújo16, de que nós nos dediquemos sem constrangimentos, fazendo história da historiografia ou teoria da história em outros vestígios, outros restos, outros rastros, que não aqueles deixados pelos historiadores ou escritores de história, letrados que se dedicaram a história em geral. É claro que a maior parte dos nossos vestígios são dos que escrevem história, mas também é preciso considerar outros sujeitos sociais e outras formas que lidaram com a historicidade. Sua reflexão nos convida a esse tipo de adensamento: olhar para isso menos tematicamente e mais teoricamente.

Na proposta do historiador, em direção a uma filosofia das historicidades, a teoria da história se abre a outras ordens, para além de uma reflexão estritamente epistemológica, de modo a considerar entre seu escopo de objetos a história mobilizada no debate público pelos agentes sociais, ultrapassando, assim, os limites do âmbito acadêmico e consolidando a teoria da história em outros contextos sociais, políticos e culturais. Por isso, é importante refletir a contribuição do autor como excelente referência para pensar os caminhos futuros do campo da história e relevante fonte crítica e reflexiva sobre os usos da história no debate público.


Notas

1 Parte das discussões apresentadas nesta resenha é resultado de debates realizados de modo online, na tarde do dia 16 de abril de 2021 (sexta-feira), pelos integrantes do Grupo de Pesquisa MEMENTO (PPGH-UNESP / Franca).

2 Torisu, Conferência sobre Teoria da História é realizada na UFOP. Disponível em: https://ufop.br/noticias/conferencia-sobre-teoria-da-historia-e-realizada-na-ufop. Acesso em out. 2021.

3 Ramalho, Caminhos para a teoria da história da filosofia das historicidades e a questão da justiça histórica, p. 7.

4 Bevernage, Caminhos para a teoria da história da filosofia das historicidades e a questão da justiça histórica, p. 15.

6 Idem, p. 12.

7 Idem, p. 13.

8 Idem, p. 14.

9 Idem, p. 17.

10 Idem, p. 19.

11 Idem, p. 19.

12 Idem, 34.

13 Ibidem.

14 Idem, p. 33.

15 Nicolazzi, Os historiadores e seus públicos: regimes historiográficos, recepção da história, história pública, p. 203-222.

16 Araújo, A história da historiografia como analítica da historicidade, p. 34-44.


Referências

ARAÚJO, Valdei Lopes de. A história da historiografia como analítica da historicidade. História da Historiografia, Ouro Preto, vol. 6, n. 12, p. 34-44, ago. 2013.

NICOLAZZI, Fernando. Os historiadores e seus públicos: regimes historiográficos, recepção da história, história pública. Revista História Hoje, v. 8, n. 15, p. 203-222. jun. 2019.

RAMALHO, Walderez. Apresentação. Caminhos para a teoria da história da filosofia das historicidades e a questão da justiça histórica. Tradução Walderez Ramalho. Coleção Fronteiras da Teoria, volume 3. Vitória: Editora Mil Fontes, Livro Digital, 2020. p. 6-9.

RANCIÈRE, Jacques. In what time do we live? Política Común, v. 4, 2013.

TORISU, Bárbara. Conferência sobre Teoria da História é realizada na UFOP. Disponível em: https://ufop.br/noticias/conferencia-sobre-teoria-da-historia-e-realizada-na-ufop. Acesso em out. 2021.


Resenhista

Meg Dias Bogo – Graduada e Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da UNICENTRO/PR (Irati). Atualmente é Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista, UNESP (Franca), sob orientação da Profa. Dra. Karina Azenhini de Araújo. E-mail: meg.dias@unesp.br


Referências desta Resenha

BEVERNAGE, Berber. Caminhos para a teoria da história da filosofia das historicidades e a questão da justiça histórica. Trad. Walderez Ramalho. Vitória: Editora Mil Fontes, 2020. Coleção Fronteiras da Teoria, volume 3. Livro Digital. Resenha de: BOGO, Meg Dias. Por uma crítica das políticas de tempo: repensando as temporalidades históricas1. Revista Expedições: Teoria da História e Historiografia. Morrinhos, v. 14, p. 187-192, fev./jul. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

Itamar Freitas

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