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Caminhos da Paleografia | LaborHistórico | 2022

Vivemos na era da emergência do digital. As relações humanas, assim como os registros de sua interação, transformam-se pressionados pelos meios de comunicação, pelos processos e pelas formas de documentar os acontecimentos.

Com o olhar sempre a frente, as sociedades, por vezes, esquecem-se do trajeto já percorrido. Pelo caminho, estão os documentos a lembrar-nos dos fatos e de seus contextos, dos indivíduos e das comunidades, das instituições e dos Estados. Contudo, apesar de conterem em si informações textuais, não textuais e subliminares de valor inestimável para a compreensão da ação do homem em seu tempo, sem o emprego de metodologias apropriadas para a leitura e interpretação de fontes, o conhecimento sobre elas torna-se limitado.

Os documentos são fruto da tecnologia disponível em seu momento de criação. Tão revolucionário quanto o documento digital nos dias de hoje, foi a popularização do papel no baixo medievo ou o surgimento da caneta esferográfica na primeira metade do século XX. Ambos impactaram decisivamente as formas de escrita manuscrita. Causas e efeitos que ajudaram a modelar e a expandir os meios de comunicação oficial e social, de forma tão presente, que se tornaram parte importante dos rituais de interação social, cada qual impregnado pelas particularidades típicas da sua época.

Ao contrário do que muitos pensam, a Paleografia não é uma ciência envelhecida, nascida no passado e a ela destinada. Ainda que considerável parte dela se ocupe de épocas prístinas, a elas não se limita. A Paleografia aporta conhecimento para o presente, a partir de questionamentos e de necessidades informacionais do agora. Justamente por isso, é uma ciência em constante renovação, atenta, portanto, aos processos históricos que atravessou e às mudanças vindouras.

Contrariando a noção de que os estudos paleográficos no Brasil são incipientes, este volume da LaborHistórico demostra um campo científico emergente, em constante renovação. Demonstra, também, como diferentes abordagens e interfaces com outras ciências enriquecem o saber científico. Pelo fato de a Paleografia não ser uma ciência isolada em si, mas antes subsidiar inúmeras outras, pesquisadores de diferentes áreas recorrem a ela para alcançar a compreensão de suas fontes e, assim, analisar com maior completude o objeto de estudo que se propõe a explorar.

Mas nunca esqueçamos que a Paleografia é uma ciência autônoma, com foco de pesquisa bem definido, clareza de qual é o seu objeto de estudo e metodologia própria para abordagem científica. Desperta, na academia e fora dela, saberes e aprimoramento técnico-científico ao constituir uma ciência independente ao mesmo tempo que colabora com outras áreas do conhecimento, em uma constante ação colaborativa para a análise e interpretação de fontes históricas, especialmente do ponto de vista metodológico. Esta é uma constatação presente de muitas formas, como pode ser verificado no dossiê Caminhos da Paleografia.

Apesar das motivações iniciais em torno da possibilidade de a produção deste dossiê reunir trabalhos sobre fontes históricas, metodologias e técnicas investigativas de manuscrito, trazendo, assim, novas perspectivas e olhares contemporâneos sobre corpora documentais considerados de difícil acesso, sua concretização superou todas as expectativas. Dezenove trabalhos de excelência foram selecionados para compor o dossiê que integra este número.

Ao observar o conjunto de artigos escolhidos para o dossiê em causa, é possível identificar três grandes grupos temáticos aos quais os textos se alinham:

(i) abordagem teórico-epistemológica da Paleografia;

(ii) debate metodológico e instrumental na dimensão da Paleografia aplicada; e

(iii) novos caminhos em um mundo em transformação: Paleografia digital e ações colaborativas para a edição de textos manuscritos.

Entre àqueles trabalhos que tratam de temas relativos à abordagem teórico-epistemológica da paleografia está o artigo de Eduardo Henrik Aubert, que oferece um denso estudo sobre aspectos visuais e composicionais de letras antigas e medievais, de modo a categorizá-las e atribuir-lhes nomes que as caracterizem por suas qualidades. A morfologia da letra manuscrita: considerações: terminológicas voltadas à descrição da minúscula caligráfica (https://doi.org/10.24206/lh.v7i3.44420) é, em essência, um estudo destinado à classificação de letras, criando uma terminologia com a finalidade de servir de parâmetro para estudos análogos.

Por sua vez, Sílvio de Almeida Toledo Neto demonstra o potencial latente dos estudos da escrita para o avanço do conhecimento científico da área. Tendo em conta que tradições de comunicação marcam a história cultural, de modo bastante elucidativo, Toledo Neto, em Escavar a camada paleográfica do texto: as letras como vestígios materiais em uma tradição textual (https://doi.org/10.24206/lh.v7i3.42496), toma a escritura como objeto de análise e discute as diferenças entre a Filologia e a Paleografia, enquanto áreas do conhecimento.

O artigo Para uma paleografia linguística: aspectos históricos, práticos e normativos (https://doi.org/10.24206/lh.v7i3.46158), de autoria de Rolf Kemmler, Susana Fontes e Sônia Colho, apresenta um verdadeiro manifesto por uma Paleografia linguística. Segundo os autores, a preparação de edições de textos antigos que englobem, simultaneamente, aspectos teóricos e práticos, que alinhem a transcrição paleográfica ao estudo linguístico do manuscrito, permitem a elaboração de edições que sirvam, simultaneamente, para fins históricos e para as disciplinas linguísticas de caráter diacrônico.

No âmbito do debate metodológico e instrumental da dimensão da paleografia aplicada, encontramos trabalhos como o de Maycon Henrique dos Santos Pereira e de Bruno Oliveira Maroneze, autores de Um estudo da autoria de quatro manuscritos jesuíticos do século XVIII (https://doi.org/10.24206/lh.v7i3.39436), que se propõem a resolver um desafio paleográfico intimamente vinculado às origens a Paleografia como ciência: o reconhecimento de autoria do documento. A ideia de autoria é trazida para o centro do debate ao diferenciar a mão de quem escreve o documento do autor intelectual ou legal do registro elaborado. Em essência, é um estudo de produção documental, assim como o artigo de Marcelo Módolo e de Helena de Oliveira Belleza Negro. Esses autores enfrentam o repto de analisar um processo eclesiástico setecentista em Entre caudas e prolongamentos: os desafios da leitura paleográfica (https://doi.org/10.24206/lh.v7i3.42524), do ponto de vista da construção material do manuscrito. Demonstram como o estabelecimento de grafemas e da identificação de similaridades entre letras de mesma mão ajuda a esclarecer questões linguísticas e filológicas importantes.

Elaine Brandão Santos e Mariana Fagundes de Oliveira Lacerda, por outro viés, também analisam aspectos da escrita em Entre os Fólios do Livro do Gado (XVIII-XIX): Descrição Paleográfica dos Punhos dos Senhores do Brejo (https://doi.org/10.24206/lh.v7i3.41588), porém a partir da execução da escrita realizada por diferentes punhos. Para isso, acompanham três gerações de escreventes à serviço da fazenda Brejo do Campo Seco, cujas letras estão presentes em um mesmo livro manuscrito, destinado ao registro de atos e fatos relativos ao cotidiano da referida propriedade rural, localizada no sul do Estado da Bahia. Outro relato que segue a mesma linha é o Análise do processo Inquisitorial do negro Pedro João: um resultado do projeto Várias Mãos e Muitas penas (https://doi.org/10.24206/lh.v7i3.49393), de Lívia Borges Souza Magalhães e colegas1.

Dispensa dizer que a questão da autenticidade é um dos pilares centrais do reconhecimento do valor probatório de qualquer documento. Tanto para a Paleografia, quanto para a Diplomática, a autenticidade remete à razão da concepção dessas enquanto ciência e, ainda hoje, coloca-se como um dos principais objetivos a ser alcançado por suas investigações.

Dessa forma, pesquisas como a de Alícia Duhá Lose e de Libania da Silva Santos são de valor nuclear para o entendimento científico de manuscritos. Por meio de uma perspectiva interdisciplinar, aliando Filologia, Paleografia, Diplomática e História, as autoras analisam autos de exame e combinação das letras de pasquins, a fim de se verificar a autenticidade de manuscritos, no artigo Uma análise diplomático-paleográfica no Brasil setecentista: quem escreveu os pasquins sediciosos da Conjuração Baiana? (https://doi.org/10.24206/lh.v7i3.41551).

Os Registros da Última expedição do Coronel PH Fawcett no Brasil (https://doi.org/10.24206/lh.v7i3.42365) foram analisados por Deborah Lavorato Leme por meio do método paleográfico de leitura e interpretação de fontes manuscritas do século XX, demonstrando, assim, a atemporalidade da Paleografia enquanto recurso analítico de escrituras. De modo similar, em A análise crítico-paleográfica em escritos de Caio Prado Jr (https://doi.org/10.24206/lh.v7i3.42362), Maria Eugenia Duque Caetano analisa textos originais do historiador empregando técnicas paleográficas, porém aliadas à Crítica Textual e à Diplomática.

Tradicionalmente, a Paleografia destaca-se pela capacidade de difundir fontes de interesse histórico, proporcionando a recuperação de importantes elementos contextuais presentes em documentos de valor histórico e científico. Trata-se de uma das principais e mais ativas funcionalidades da paleografia em vigor. Por esse viés, os artigos Uma análise paleográfica do calendário do livro de horas 50,1,016 da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (https://doi.org/10.24206/lh.v7i3.42269), de Maria Izabel Escano Duarte de Souza, Análise paleográfica e comentários ortográficos sobre a Carta do Ill.mo e Ex.mo Sñr Conde de Azambuja, ao de Val de Reys (https://doi.org/10.24206/lh.v7i3.42331), de Mariane Soares Torres, e o trabalho de Ramón Alberto Machado Costa, em Paleografia e Transcrição do Processo de Manuel Rodriguez (https://doi.org/10.24206/lh.v7i3.42228), aportam contribuições para o debate sobre fontes e formas de análise documental.

Também contamos neste dossiê com outros importantes exercícios de análise documental realizados a partir da metodologia paleográfica. Destaque para a quantidade de informações de valor histórico e filológico que podem ser agregadas às edições de manuscritos, como o trabalhado por Norma Suely Silva Pereira, Carla Carolina Ferreira Gomes Querino, Rose Mary Souza de Souza, em “[…] Mas na lua seguinte se tornou a desconcertar […]” Aspectos paleográficos e sociohistóricos relativos à saúde mental em uma correspondência oficial do século XVIII (https://doi.org/10.24206/lh.v7i3.42376). Edivania Granja da Silva Oliveira e Carlos Fernando dos Santos Júnior, igualmente, realizam um estudo clássico de transcrição e de edição, aliado ao exame do conteúdo informacional do documento homogeneização da população, durante o período colonial brasileiro em Paleográfico em manuscrito digitalizado do Projeto Resgate Barão do Rio Branco (https://doi.org/10.24206/lh.v7i3.41317).

Outro trabalho, que demonstra de modo interessante como o emprego de técnicas paleográficas de transcrição e interpretação de fontes aporta contribuições para a história, é o artigo de Cintia Bendazzoli sobre A Construção do Forte de Ponta das Canas, Ilhabela, SP. Paleografia das correspondências entre Joachim da Silva Coelho e Morgado de Mateus (https://doi.org/10.24206/lh.v7i3.41959). Debruça-se sobre a troca de correspondência entre uma importante personalidade histórica oitocentista paulista, nomeadamente o governador da capitania, Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão – popularmente chamado pelo título de sua família: Morgado de Mateus – e o construtor do Forte de Ponta das Canas, Joachim da Silva Coelho. Tendo como pano de fundo a edificação da fortificação, a correspondência tratada pontua questões políticas e militares que emergem entre os signatários.

Esse conjunto de artigos apresentam fontes únicas, com potencial de pesquisa latente, tanto para seus próprios projetos, quanto para quem se interessar pelas temáticas presentes nos manuscritos em questão. Contudo, novas formas de interação, de pesquisa e de elaboração de edições de texto – trabalhos de valor inestimável por proporcionarem acesso circunstanciado às fontes – podem ocorrer mediadas por novas interações e novos recursos tecnológicos.

É o que se verifica nos textos que delineiam novos caminhos em um mundo em transformação: paleografia digital e ações colaborativas para a edição de textos manuscritos. Isso porque, para além dos usos tradicionais e sua inquestionável contribuição para o conhecimento científico contemporâneo, a Paleografia, enquanto ciência, também se reinventou diante da emergência do digital na atualidade.

Trabalhos como o de Lívia Borges Souza Magalhães, Da 1.0 até a 3.0: a jornada da paleografia no mundo digital (https://doi.org/10.24206/lh.v7i3.42368), e o de Antonio Ackel, Abordagens digitais para estudos de paleografia: desafios, atualidade e desdobramentos (https://doi.org/10.24206/lh.v7i3.42771), colocam uma das linhas de atuação dos pesquisadores da área de crescente tendência de estudo: a Paleografia digital. Do ponto de vista conceitual e prático, essas pesquisas mostram novas formas de fazer Paleografia, historicizando, revendo conceitos, repensando metodologias, refletindo sobre o impacto das tecnologias digitais e colocando-a dentro do campo das Humanidades Digitais.

Há também, a experiência relatada por Carolina Vaz de Carvalho em O projeto GATE do Arquivo Histórico da Pontifícia Universidade Gregoriana: considerações sobre o trabalho com documentos digitalizados em um ambiente online colaborativo (https://doi.org/10.24206/lh.v7i3.41311), que propõe uma reflexão sobre projetos de digitalização, tratamento documental e disponibilização na rede mundial de computadores de acervos manuscritos, utilizando como recurso ações de transcrição e edição colaborativa, vinculadas ao portal Momumenta Kircheri.

Esta não foi uma apresentação com intenção de expor os artigos do dossiê Caminhos da Paleografia de modo sequencial linear. Antes optamos por reconhecer as discussões e finalidades dos trabalhos de forma a demonstrar as aproximações pertinentes ao agrupamento de sentido percebido.

A reunião de todos os textos aqui apresentados proporciona uma interessante radiografia dos avanços dos estudos paleográficos brasileiros nos últimos anos. A quantidade de submissões, o árduo trabalho de seleção e a qualidade dos artigos que formam este dossiê falam por si só: a paleografia é uma ciência viva e sedutora.

É inevitável, portanto, chegar à conclusão de que os estudos paleográficos brasileiros estão ativos, pulsantes e bastante produtivos.

Nota

1 São os outros autores: Antonieta Buriti de Souza Hosokawa, Cassiano Borowsky Braz, Cláudia Coimbra do Espírito Santo, Fabio Melo Minervini, João Guilherme Veloso Andrade dos Santos, Julia Freitas Pinto Santana, Leonardo Augusto Silva Fontes, Leonardo Coelho Marques de Jesus, Lucia Furquim Werneck Xavier, Rafael Marques Ferreira Barbosa Magalhães e Yuri Teixeira Pires.


Organizadora

Sonia Troitiño – UNESP.


Referências desta apresentação

TROITIÑO, Sonia. Caminhos de uma ciência em constante renovação. LaborHistórico. Rio de Janeiro, v. 7, n. 3, p. 10-15, set./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Itamar Freitas

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