Em nossa formação como nação, como povo e como Estado a colonização e a escravidão foram fundamentais e sob muitos aspectos ainda estão presentes em seus prolongamentos. A escravidão permanecendo bem além da constituição do Estado nacional e do surgimento de um novo ente político, cultural, social e econômico: a Nação brasileira.
Sob as mais diversas visões interpretativas e com maior ou menor solidez de pesquisa documental, ambas – colonização e escravidão – foram desde logo objeto de estudos históricos muitos dos quais se tornaram referências obrigatórias na historiografia brasileira. Não podia ser diferente, mesmo de um ponto de vista teoricamente pouco ambicioso, devido, entre outros fatores, a união intrínseca entre colonização e escravidão e a longa duração de ambas por mais de quatro séculos para a primeira e quase cinco séculos para a segunda. A escravidão sobreviveu ao fim do Antigo Sistema Colonial e continuou sendo o fundamento das relações sociais de produção do Império do Brasil. Todas as tentativas iniciais feitas para desvincular a nova Nação da escravidão fracassaram sob a força avassaladora da herança colonial escravista. Assim o Império do Brasil assentou sua modernidade na manutenção de uma estrutura econômica e social arcaica. Conheceu uma nova inserção na economia internacional absorvendo várias das inovações tecnológicas oriundas da revolução industrial: navegação a vapor, estradas de ferro, cabo submarino para a comunicação com a Europa e a América do Norte, fotografia, telefone, imprensa de massa. No plano político nasceu como uma nação constitucional, com divisão de poderes, limitações ao poder imperial, declaração de direitos de cidadania, liberdade de imprensa, vida social e cultural burguesa. Mas, convivendo com tudo isto no plano das estruturas materiais e das estruturas da política e da cultura, lá estava presente a escravidão. Não é, naturalmente, fortuito, que o final do Império tenha se dado pouco depois do fim da escravidão, embora esta quase coincidência não possa e não deva ser vista como uma causalidade mecânica. A relação entre os dois acontecimentos é mais profunda e, sob muitos aspectos, não deve ser tomada em desfavor das realizações reformistas do Império. Mas esta questão nos levaria longe do objeto e do objetivo desta resenha: a escravidão urbana em Porto Alegre e, por extensão no Brasil, a partir do livro de Valéria Zanetti, aqui examinado.
A grande teia das relações escravistas que cobriu, com intensidade diversa, todo o território colonial e nacional até sua extinção tinha duas grandes expressões espaciais: a rural e a urbana. A primeira numericamente mais importante propiciou a inserção da colônia e depois do Império independente, na economia mundial. Foi, em sua fase colonial, essencial para o enriquecimento da metrópole e de suas camadas mercantis, burocráticas clericais e fradescas e do Estado monárquico português. Foi, ainda, fundamental no processo de acumulação primitiva que está na base da formação do capitalismo e da eclosão da revolução industrial do século XVIII. A escravidão urbana, mais voltada para a acumulação interna, foi, sobretudo, a escravidão dos indispensáveis serviços domésticos quando a tecnologia do cotidiano dependia em larga medida da força física: abastecimento de água e lenha, limpeza dos excrementos humanos, limpeza do lixo, transporte de alimentos, de diversas mercadorias, de móveis e mesmo de pessoas. Mas ela esteve, também, presente, no comércio urbano de miudezas, de alimentos, de bebidas. No transporte costeiro e fluvial. Produtores de renda para seus senhores, escravos e escravas urbanos foram utilizados sob a dupla forma de escravos de aluguel e de escravos de ganho. Vista no longo prazo percebemos que, ao contrário de arrefecer com a Independência e com o crescimento de uma vida urbana de recorte mais burguês, ela se intensificou. O auge da escravidão urbana no Brasil corresponde justamente aos anos de consolidação do Império e ao seu apogeu.
Durante anos, mais ou menos ignorada pela historiografia ou mitificada como mais suave, a escravidão urbana no Brasil tem sido objeto de novos e importantes estudos, que tem promovido uma verdadeira renovação do conhecimento da história brasileira em seu conjunto. Neste processo de renovação muitos são os autores e livros a serem citados. Para não cometer injustiças e omissões deixamos de mencioná-los aqui, mas o leitor encontrará boa parte deles nas referências presentes no livro de Valéria Zanetti. Que passaremos agora a examinar mais detidamente. Situando-se com originalidade na renovadora historiografia da escravidão no Brasil Valéria Zanetti nos deu um livro vigoroso, solidamente fundamentado em pesquisas de ricas fontes primárias e utilizando o melhor das referências então disponíveis. Com pleno domínio da boa escrita histórica. O que significa que a leitura é feita com agrado, além de proveito, tanto por especialistas quanto por não especialistas, o que não é pouco.
Com este livro tomamos conhecimento da escravidão urbana na Porto Alegre e arredores entre os anos 1840-1860. A autora reforça a revisão de um equívoco por vezes ainda corrente: a da pouca presença do escravo no Rio Grande do Sul. Para tanto os dados quantitativos são, naturalmente, essenciais. Ficamos assim sabendo que mesmo após o fim do tráfico a partir de 1850, o número de escravos no Rio Grande do Sul aumentou. Informação importante que significa a existência de um dinamismo econômico que necessitava do aporte de mão de obra escrava através do comércio interprovincial de escravos. Mas, os essenciais dados quantitativos são aqui a base de uma trama qualitativa de grande riqueza. Para tanto contribui em muito o uso de depoimentos de viajantes e observadores locais, do noticiário dos jornais e dos processos judiciais. As ilustrações foram escolhidas com critério, enriquecem o texto, complementando-o.
Acomodação, negociação, alimentação, vestuário, doenças, folguedos, ofícios e ocupações de escravos e escravas, feitiçarias, estupros prostituição, devoção, controle, traições, atração erótica da mulher negra, assassinatos, conflito violência, criminalidade, roubos, suicídios, resistência, sob as mais diversas formas, (in) justiça senhorial, são algumas expressões e temas estudados ao longo do livro e que registram com acuidade a presença e o modo da presença de escravos e escravas no meio urbano de Porto Alegre de meados do século XIX. Expressões e temas que podem ser aplicados às principais cidades brasileiras do período, o que situa este livro não apenas como uma valiosa contribuição para a história de Porto Alegre, mas para a história do Brasil. A enunciação dos títulos dos seus vários capítulos dará ao leitor uma idéia dos diversos aspectos da escravidão em Porto Alegre no período estudado por Valéria Zanetti: 1. O gado, a terra e o homem, 2. Porto Alegre: origem e povoamento, 3. Violência no passado, amenidades no presente: as visões da historiografia acerca do escravo urbano, 4. Crimes de escravos e libertos em Porto Alegre, 5. Vivendo em conflito e em solidariedade, 6. Vida amorosa, familiar e manifestações culturais de escravos e libertos em Porto Alegre, 7. Poder e contrapoder: resistência do escravo urbano.
Finalizemos esta breve resenha com um trecho do livro para que o leitor tenha a vontade, da qual não se arrependerá, de conhecer o livro em sua inteireza:
“A visão de que os cativos urbanos eram bem alimentados, vestiam-se adequadamente e viviam em harmonia com os senhores não combina com a informação documental. Involuntariamente, os anúncios sobre fugas na imprensa denunciam a verdadeira condição de existência civil. Arsène Isabelle esteve na província e não partilhou da visão otimista, registrando em seu diário as violências cometidas pelos senhores. Segundo Isabelle, os senhores gaúchos tratavam seus cativos como se tratavam os cães: ‘Começam por insultá-los. Se não vêm imediatamente, recebem duas ou três bofetadas da mão delicada de sua senhora […] ou ainda um rude soco, um brutal pontapé de seu grosseiro amo. Se resmungam, são ligados ao primeiro poste e então o senhor e senhora vêm com grande alegria no coração, para ver como são flagelados, até verterem sangue aqueles que não têm, muitas vezes, outro erro que a inocência de não ter sabido adivinhar os caprichos de seus senhores e patrões’.
Ao percorrer as páginas deste livro, sob muitos aspectos fascinantes, não podemos deixar de pensar que muitos dos antigos males da escravidão não compõe apenas o nosso passado. Renovam-se cotidianamente em nossa (in) justiça de classe, ainda senhorial, na precariedade das diversas formas de trabalho nas áreas rurais e urbanas, na precariedade dos direitos, nas discriminações de gênero, na exploração do trabalho infantil, em renovadas formas de trabalho escravo, na violência a que está submetida a população pobre do campo e das cidades, especialmente dos descendentes diretos dos antigos escravos, nos privilégios incrustados no Estado, na sua captura pelos interesses privados.
Livros como este mostram como a boa história é sempre libertadora e não faz uma limitada e equivocada separação entre o passado e o presente. Por isso a grande mídia conservadora a ignora, promovendo best sellers que veiculam uma visão pitoresca e caricatural do nosso passado. Visão que serve apenas para acomodar os leitores na visão de que nada mudou e nada mudará.
Nota
1. Home Page: www.upf.tche.br/editora. E-mail: editora@upf.tche.br
Denis Antônio de Mendonça Bernardes – Universidade Federal de Pernambuco.
ZANETTI, Valéria. Calabouço urbano. Escravos e libertos em Porto Alegre. (1840-1860). Apresentação de Mário Maestri. Passo Fundo: Editora Universitária; Universidade de Passo Fundo1, 2002. (Coleção Malungo, 6). Resenha de: BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.29, n.2, jul./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]
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