De segunda a um ano – CAGE (AF)

CAGE, John. De segunda a um ano. Tradução Rogério Duprat; revista por Augusto de Campos. Rio de Janeiro: Cobogó, 2013. Resenha de: VEIGA, Milton Castelli. Artefilosofia, Ouro Preto, n.16, jul., 2014.

O livro De segunda a um ano é uma coleção de ensaios do compositor norte-americano John Cage (1912-1992). O primeiro e único livro do compositor traduzido para o português, graças ao pioneirismo de Rogério Duprat, ganhou em 2013 sua segunda edição; sendo que a primeira fora publicada pela Hucitec em 1985 por ocasião da visita do compositor à 18ª Bienal de São Paulo.

John Cage (John Milton Cage Jr.) foi um dos compositores mais controversos do século XX e o que mais exerceu influência na música do pós-guerra. Foi um dos criadores da música concreta e o primeiro artista a fazer um happening. O principal ícone da chamada música experimental traz ainda o título de ter sido o inventor do piano preparado 1. Viveu de maneira muito própria as antinomias estéticas do século; sua educação musical se deu num momento delicado da história da música ocidental, quando a linguagem da tradição, ou seja a linguagem tonal, estava sendo sistematicamente abandonada. Alguns sistemas referenciais foram projetados para sua substituição, e apesar de proféticos e promissores muitos deles estavam longe de se estabelecer como consensuais ou caminho seguro a ser trilhado; ademais, nenhum desses sistemas de composição sequer ultrapassou duas gerações de compositores. Cage iniciou sua carreira de compositor utilizando o sistema dodecafônico, seguindo, assim, os passos de seu professor Arnold Schoenberg, mas foi a partir de 1938 na Cornish School of Arts, quando veio a desenvolver trabalho com o coreografo Merce Cunningham, que seu ímpeto pelo novo alçou voos pelo experimentalismo. Sua teoria acerca do silêncio no processo de criação deu-lhe projeção internacional – chegando, inclusive, a dar nome a seu primeiro livro, publicado em 1961. O uso do acaso no processo da criação também foi fundamental na sua carreira. Cage não se limitou ao ofício de compositor; era também crítico, filósofo, poeta, artista gráfico, pintor e designer. Em 1946, através do músico indiano Gita Sarabhai, John Cage entrou em contato com a filosofia oriental e a partir daí sua concepção de mundo se transformou, transformando também seu entendimento sobre a estrutura e a compreensão musical. São emblemáticas desse momento suas Sonatas e Interlúdios de (1946-8) onde se fazem presente as oito emoções permanentes da estética indiana. Em fins da década de 40, o compositor se aproxima das teorias hindus e do Zen Budismo donde passa a cultivar a estética do silêncio. De Segunda a um ano faz parte desse momento, onde o compositor se põe a refletir sobre outras possibilidades de compreender o mundo. O próprio título do livro é fruto de suas concepções acerca do acaso, como o autor demonstra já na introdução. Diferente de seu primeiro livro, Silence, este se dedica menos a assuntos propriamente musicais do que temas sociais ligados ao pensamento de N. O. Brow n, Marshall McLuhan, Buckminster Fuller, Marcel Duchamp e Jasper Johns. Durante a redação dos textos que enfeixam o livro, o compositor depositou tanto interesse nas teorias sociais que chegou a refutar o próprio fazer musical, o qual, aliás, interessava-lhe cada vez menos, pois via no compositor uma figura autoritária. De fato, essa postura não harmonizava com os princípios anárquicos de Cage. Felizmente logo após a conclusão do livro, Cage volta a dedicar-se à composição. A editora Cobogó, Rio de Janeiro, nos presenteou com um trabalho primoroso, tanto pela beleza da edição, como pela dedicada prudência na preservação da concepção gráfica, nada convencional, utilizada pelo autor. A presente edição se coloca à altura do projeto de Cage, provocando e estimulando os nossos sentidos de percepção. Traz dois prefácios assinados pelo poeta Augusto de Campos. O primeiro com o título CAGE: CHANCE: CHANGE fez parte da primeira publicação brasileira de 1985. Esse texto é de uma beleza tão rara quanto o próprio restante do livro. O poeta dispôs-se da licença poética para apresentar, através de sua incrustada técnica concretista, o percurso criativo de John Cage até a década de 80. Para essa nova edição, Campos assinou uma segunda introdução, onde complementa o percurso do compositor até seu falecimento em 1992.

De segunda a um ano é um livro-mosaico formado por artigos, manifestos, conferências, proposições, pensamentos e aforismos. Uma miscelânea de textos construídos de modo maravilhosamente não linear. Um livro audiovisual, diria Campos. Os textos foram concebidos entre 1961 e 1967 – com exceção de Conferência na Juilliard, Conferência sobre o compromisso, e algumas histórias englobadas sob o título Como passar, chutar, cair e correr, que remontam à década de 1950. No Antepapo e Fim de Papo o autor descortina o enigma do título do livro e mostra-nos a partir daí sua capacidade de lidar com o acaso e o indeterminado como uma estética anárquica da vida. Alguns textos obedeceram às operações do acaso, obtendo dessas elaboradas operações a ordenação das ideias, a quantidade de palavras, a formatação e o tipo gráfico. Nessa linhagem está o texto Diário: como melhorar o mundo (você só tornará as coisas piores) em que o autor estreita os laços com os projetos de Fuller, principalmente com a teoria do “comprehensive design”; ainda nessa linha temos a Conferência sobre o compromisso e o Diário: audiência. O texto Duas proposições sobre Ives também chama a atenção pelo projeto gráfico, pois o autor incorpora à linguagem escrita alguns códigos de expressão musical. O Papo nº 1 também se destaca pela sua estrutura gráfica. Esse modo de conceber o texto, onde os meios de comunicação exercem influência na percepção dos sentidos, é resultado do contato que Cage teve com a obra de McLuhan. Os leitores que têm interesse no pensamento musical do compositor poderão se deleitar com os textos Diário: seminário de música de Emma Lake, Seriamente Vírgula!, Happy New Ears, Daqui, para onde vamos?, Conferência na Juilliard, Ritmo etc., e no Como passar, chutar, cair e correr. Já o texto Mosaico é um interessante comentário crítico sobre as cartas de Arnold Schoenberg selecionadas por Erwin Stein.

De cativante interesse são os textos 26 proposições sobre Duchamp, Jasper Johns: histórias e ideias, Miró na terceira pessoa: 8 proposições, Nam June Paik: um diário onde o autor expõem sua relação com o projeto artístico desses seus coetâneos. Todos os textos são precedidos por uma pequena introdução, onde o autor explica a finalidade do texto e quando necessário, explica a técnica para a sua leitura. Enfim, o livro surge como um projeto de “renuncia à competição” e um apelo à “iluminação do mundo” bem aos moldes de Buckminster Fuller; e apresenta-nos um artista curioso e observador, que buscou interpreta r o mundo pelo viés social e anárquico. Cabe-nos, ainda, ressaltar o notório empreendimento do maestro Rogério Duprat em traduzir esse livro poucos anos depois de sua publicação original. Certo é que esse feito é uma das inegáveis contribuições que Duprat concedeu à música brasileira e à reflexão musical da vanguarda brasileira. Sem adentrarmos em detalhes sobre a formação musical e intelectual de Rogério Duprat, quero sublinhar o seu pioneirismo em empreender tal tradução que, diga-se de passagem, acusam não só o seu domínio das poéticas e estéticas musicais do século XX, mas sua intimidade com a linguagem prosaica e poética ao “recriar” as aventuras de Cage. Enfim, De segunda a um ano é um livro provocativo, divertido e de rara beleza onde podemos encontrar as principais inquietações do compositor, o que já se manifesta a partir de sua dedicatória: “Para nós e todos aqueles que nos odeiam, para que os EUA possam se tornar simplesmente uma outra parte do mundo, nem mais nem menos.” -John Cage.

Nota

1 O papel do compositor no trato do piano preparado foi fundamental para a compreensão desse instrumento como forma de expressão, porém não podemos desconsiderar a iniciativa do compositor austro-boêmio Heinrich Ignaz Franz von Biber (1644-1704), que utilizou de técnica semelhante na obra Battalia à 10 D-dur, C.61 (1673).

Milton Castelli Veiga-Graduado em música pela Universidade Cruzeiro do Sul/SP e mestrando em música pela UFRJ.

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