Este livro sobre Brasília traz uma ampla visão da cidade, apresentando manifestações, relatos e materiais relativos à difusão de seu projeto, de sua construção e das narrativas de 1957 a 1973.
Todos os capítulos repousam sobre o fenômeno Brasília, apoiados em uma extensa investigação bibliográfica do citado recorte temporal. Embora na época e desde então muito se tenha publicado sobre a nova capital, várias manifestações e publicações acabaram não sendo organizadas – ou até foram esquecidas –, e este texto se propõe retomá-las.
Entretanto, ao mesmo tempo que cataloga os textos, o autor Luiz Gustavo os explora tecendo considerações críticas valiosas sobre os conteúdos – afinal, como coloca Ruth Zein, “documentar não é suficiente” (1), é apenas um passo para as reflexões construtivas de um saber, um conhecer.
Há, portanto, um senso crítico, uma vez que se recupera o sentido de narrar; este deriva de narro, as, āvi, ātum, āre, que significa, além de “contar”, adjectivo gnārus, a, um, “que conhece, que sabe”, segundo o Houaiss. A raiz deste adjectivo remonta ao indo-europeu, identificável também no grego, por exemplo, em gnôsis, eós, que dá origem a gnose, “ação de conhecer, conhecimento, ciência, sabedoria”.
Por esse motivo, a narrativa levante novos aportes para uma reconstituição historiográfica ampliada sobre muitos dos livros e dos artigos acadêmicos publicados no período de estudo, visualizados sob uma ótica esclarecedora das várias interpretações realizadas.
Deve ser do conhecimento de muitos que Luiz Gustavo, por ter feito uma resenha do livro Brasília – antologia crítica (2012), de Julio Katinsky e Alberto Xavier, já contava com um importante repositório de textos de variados autores e matizes sobre a cidade (2). Entretanto, neste volume, ele não se limita ao mesmo corpus, e uma boa indicação da contribuição e da ampliação de conhecimentos se nota pelo fato de que o conjunto agrega várias novas leituras: das 65 contidas na Antologia crítica, apenas quatro são citadas e utilizadas por Luiz Gustavo. O que comparece como aporte é que, além dos quatro, cinco dos autores estão mencionados.
As narrativas se desenvolvem em sete capítulos – “Aproximações”, “Publicações oficiais”, “Os aliados”, “Narradores e relatos”, “Primeiras narrativas”, “Os críticos e Brasília ocupada”, “Relatos e consolidação” – e um epílogo.
Em “Aproximações” estão situadas a pesquisa e as questões centrais, como: quais foram as interpretações de Brasília pela opinião pública? Quais autores escreveram sobre a cidade? De que forma essas visões estabeleceram balizas para a compreensão do projeto? Por que Brasília despontou e continua sendo um tema “polêmico”? Ainda neste capítulo, ficam estabelecidos critérios de delimitação temporal, definindo-a entre o ano 1957, data do surgimento da Revista Brasília, e 1973, conformação da Brasília ocupada auxiliada pelo recorte estabelecido no livro Two Brazilians Capitals: Architecture and Urbanism in Rio de Janeiro and Brasília (1973), de Norma Evenson. No mesmo capítulo, é introduzida a forma de sua narrativa, que será realizada com conclusões parciais a cada capítulo, reservando ao epílogo a ousadia de refazer as perguntas iniciais tentando conformar um “estado da arte” das publicações sobre a cidade.
Por sua vez, “Publicações oficiais” trata de obras realizadas pelo governo e de publicações que, de certo modo, apoiaram a criação da imagem desenvolvimentista da nova capital, como as revistas de grande circulação O Cruzeiro e Manchete e a governamental Revista Brasília, entre outras de menor alcance. Descreve também Brasília e o desenvolvimento nacional (1960), de Roland Corbisier, publicado pelo Iseb. E relata os textos realizados por autores mais afinados com afirmação das qualidades da mudança da capital para o Planalto Central, como Brasil, capital Brasília (1960), de Osvaldo Odorico; A nova capital: por que, para onde e como mudar a capital federal (1959), de Peixoto da Silveira; e Brasília: uma realização em marcha (1959), de Moisés Gicovate – ações que respaldavam o governo e seu plano de metas e que revelam a dimensão da política nacional-desenvolvimentista de Juscelino para o entendimento do delineamento editorial dos trabalhos citados.
Já no capítulo “Narradores e relatos”, as principais distinções se referem a textos dos livros Brasília: história e estórias (1992), de Eduardo Kneese de Mello; e História de Brasília: um sonho, uma esperança, uma realidade, de Ernesto Silva (1999); além do conjunto de textos de Oscar Niemeyer consolidado em Minha experiência em Brasília (1961). Entre esses narradores inclui-se a figura de Juscelino Kubistchek, com A marcha do amanhecer (1962), de dois anos depois da fundação da cidade, numa espécie de rescaldo de sua proposição referindo-se à continuidade do projeto desenvolvimentista, e Porque construí Brasília (1975), de quando, já deposto de seu cargo como senador pelo governo militar, registra a defesa de sua política num quadro de fechamento de perspectivas. Neste último texto, JK inclui a visão de Brasília como centro da democracia delineada pelo desenho da praça dos Três Poderes.
Como registro de outros apoios, há referência a Treze anos de Brasília (1973), de Plinio Salgado, político de filiação integralista – tal texto revela a amplitude de apoios que a construção da nova capital recebia. Além de outras obras citadas, é interessante haver a de Elvira Barney, com Mulheres pioneiras de Brasília (2001), em que depoimentos tratam da participação das mulheres e das difíceis condições por elas vividas na constituição da nova capital.
Em “Primeiras narrativas” são apresentadas visões divergentes retratadas por Gilberto Freyre em Brasis, Brasil, Brasília (1960) e Henrique Mindlin em Brazilian Architecture (1961). São duas as posições: para Mindlin, arquiteto, a construção de uma cidade de princípios modernos conecta Brasília a uma forma renovada das experiências de arquitetura que se iniciaram com a construção do Ministério da Educação e Saúde enquanto expressão da modernidade na transição para os anos 1950 e 1960. Gilberto Freyre, sociólogo, antropólogo e polímata, numa das primeiras críticas à cidade, considera Brasília um objeto arquitetônico desconectado de raízes locais, obra que não deveria ser atribuição apenas de arquitetos e urbanistas, por deixarem de lado a diversidade cultural do país em prol de um projeto apenas de repertório configuração espacial.
Um pouco adiante, surge a referência ao livro de Willy Stäubli, datado de 1965, lançado em inglês e alemão e que não possui edição brasileira. Nele existem registros fotográficos da cidade e de seus edifícios captados cinco anos depois de sua inauguração. A preocupação se define por um consistente relato de arquitetura com desenhos dos edifícios que vão além dos trabalhos de Niemeyer e Lucio Costa, revelando obras anônimas. Segundo Luiz Gustavo, particularmente ao apresentar plantas, cortes e elevações de muitos edifícios do Plano Piloto, sem falar da historiografia cultuada, revela-se a penetração do moderno em exemplares anônimos de boa arquitetura.
Em “Os críticos e a Brasília ocupada”, o autor, já coincidindo com várias revisões sobre o movimento moderno, registra observações sobre a posição defendida pelo livro Brasília (1961), de Olímpio Ferraz, no qual manifesta que apologias sobre a cidade entendidas como uma marcha para o oeste são impotentes para atender aos desejos dos brasileiros e às ambições de um país que se propunha em desenvolvimento e expansão de território. Também recorre ao sociólogo José Pastore, que, em Brasília: a cidade e o homem (1969), estuda a transposição de vários segmentos sociais e suas condições de vida na cidade e revela que, naquela época, Brasília parecia proporcionar maior satisfação no aspecto do trabalho aos migrantes de níveis mais baixos da escala social no que se refere a aspirações ocupacionais.
Nessas análises de Brasília já ocupada, mais uma interpretação é objeto de estudo: Brasilia, Plan and Reality (1973), de David Epstein, economista que estabelece uma leitura das dualidades existentes em Brasília em momentos que já se configuravam com clareza as segregações entre Plano Piloto e cidades-satélite. Traz à tona o fato de que o surgimento e o crescimento dos assentamentos invasores em Brasília são estruturais de todas as cidades brasileiras, incluindo a capital, e de complexo e difícil erradicação pela sociedade e Estado.
As leituras que seguem no epílogo se concentram nas análises de Norma Evenson, abordando a cidade até 1973, quando se finaliza o escopo do autor. Como os diversos relatos já vinham sendo objeto de reflexões, neste capítulo final apresentam-se leituras da autora das quais derivam várias novas interpretações, muitas evocando o caráter simbólico da imagem da cidade. Além disso, são realizadas indagações sobre as soluções arquitetônicas realizadas por Niemeyer e sua equipe e em relação às definições de Lucio Costa em seu plano diretor.
Luiz Gustavo apresenta diferentes visões de leitores da cidade ao mesmo tempo que expõe o que se conhece e o que se sabe ter contribuído para que Brasília obtivesse mais reconhecimento, indicando e renovando inquietudes, afirmações e lacunas.
“Pode-se considerar que talvez o Brasil seja hoje melhor com os desdobramentos de Brasília – é, certamente, ao menos diferente daquele país que teria sido se largássemos mão de desejos ou de sonhar um futuro justo e cidadão para todos nós”.
As narrativas apresentadas, além de cristalizar conhecimentos sobre o fenômeno Brasília, abrem questões a ser investigadas em bases mais diversas para compreensão da capital do Brasil.
Notas
1ZEIN, Ruth Verde. Quando documentar não é suficiente: obras, datas, reflexões e construções teóricas. Anais do 9º Seminário Docomomo Brasil – interdisciplinaridade e experiências em documentação e preservação do patrimônio recente. Brasília, Docomomo Brasil, jun. 2011 <https://bit.ly/3fwG1oE>.
2FERNANDES, Luiz Gustavo Sobral. Leituras de uma modernidade experimental. Resenha do livro Brasília: antologia crítica, de Julio Roberto Katinsky e Alberto Xavier. Resenhas Online, São Paulo, ano 15, n. 169.03, Vitruvius, jan. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/15.169/5894>.
Resenhista
Rafael Antonio Cunha Perrone – Arquiteto (FAU USP, 1973), mestrade em Administração Pública e Planejamento Urbano (FGV, 1984), doutor e livre docente (FAU USP, 1993 e 2008). É professor da FAU USP e da FAU Mackenzie, consultor da Fapesp e colaborador da Capes. É autor dos livros Fundamentos de projeto: arquitetura e urbanismo (2014) Os croquis e os processos de projeto de arquitetura (2018).
Referências desta Resenha
FERNANDES, Luiz Gustavo Sobral. Brasília, leitores e leituras. Arquitetura, história e política 1957-1973. São Paulo: Altamira, 2020. Resenha de: PERRONE, Rafael Antonio Cunha. Uma narrativa ampliada sobre Brasília. Resenha Online. São Paulo, n. 221, maio 2020. Acessar publicação original [DR]
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