Brasil em crise: o legado das jornadas de junho | David G. Borges e Victor Cei

A obra apresenta uma análise, sob a perspectiva de vários autores, do que se convencionou chamar de “as jornadas de junho de 2013”, fazendo referência aos protestos ocorridos no Brasil nesse mesmo período. Considerado como um dos maiores movimentos políticos da história, as manifestações deram início a uma crise política, que culminou na eleição presidencial mais acirrada do país.

A obra é composta dos seguintes autores e seus respectivos capítulos: Felipe de Aquino e Flávio Soeiro (Que país é este? Seminário sobre o pós junho de 2013), David G. Borges (As jornadas de junho de 2013: histórico e análise), Davis Alvim (“Destruir, para reconstruir”: a tática black bloc e a pedagogia das vidraças), Guilherme Moreira Pires (A palavra do poder que engole o poder das palavras), Marcelo Martins Barreira (Sem medo de ser… Megamanifestante feliz), Paulo Edgar da Rocha Resende (A tática black bloc e a liberação anárquica do dissenso) e Vitor Cei (Contra-isso-que-está-aí: o niilismo nas jornadas de junho),

Partindo da máxima que diz que as perguntas é que movem a humanidade, são apresentados vários questionamentos sobre as manifestações: quem eram as pessoas nas ruas? O país está imerso em uma crise? É possível que o discurso midiático-jornalístico seja imparcial? O que é a tática Black bloc? Deve-se resistir ao poder constituído que governa em virtude do mercado? Essas perguntas que, em parte, traduzem o novo momento sociopolítico vivenciado terminam ampliando as dúvidas e as incertezas sobre a verdadeira razão das manifestações.

Na obra denominada “Filosofia da Crise”, Mário Ferreira dos Santos já enunciava que crise é uma palavra de origem grega que significa separação. Afirmando, portanto, que todo existir é uma crise, mas que, ao mesmo tempo, não quer sê-lo, quer vencê-la, ultrapassá-la (SANTOS, 2017).

Assim, o início dos protestos ou, pode-se dizer, que o ápice da crise foi o anúncio feito pela prefeitura de São Paulo, no dia 02 de junho de 2013 de que as passagens de ônibus aumentariam de três reais para três reais e vinte centavos. Motivo pelo qual muitos cidadãos insatisfeitos, associando-se a diversos movimentos populares, foram às ruas protestar.

Como consequência da repressão experimentada através da resposta das forças de segurança pública, o número de manifestantes aumentou, incluindo, a partir daí aqueles que nunca foram associados a nenhum movimento político organizado, o que fez com que as manifestações adquirissem ares de revolta civil. A partir daí as reinvindicações deixaram de ter como foco exclusivo o transporte, se expandindo para temas como corrupção, racismo, direitos dos homossexuais, igualdade de gênero, entre outros (FERNANDES, 2015).

Porém, embora tenham sido trazidas à tona, relevantes questões políticas, sociológicas e filosóficas, a mídia tradicional, em geral, somente observava à distância, tratando os manifestantes como baderneiros. Por outro lado, as redes sociais desempenharam papel essencial tanto no chamamento para as manifestações e no acompanhamento da situação nas diversas regiões do país, quanto na divulgação dos excessos praticados pela polícia e pelos manifestantes.

A mídia em geral e a política, bem como qualquer outra forma social de organização, são indissociáveis. Porém, com o advento da internet e, mais recentemente, das tecnologias móveis, qualquer indivíduo, em qualquer lugar, está permanentemente conectado (HJARVARD, 2013). Considerando a heterogeneidade dos manifestantes, somada à ausência de uma coordenação, não resta dúvidas de que a internet desempenhou um papel fundamental (GONDIM, 2016). Tais conceitos são capazes de explicar a magnitude das manifestações e a velocidade com que se propagaram e colocaram em prática as suas causas, haja vista se tratar de indivíduos e movimentos sociais que não tiveram a oportunidade de se planejar e se organizar previamente.

De acordo com os autores, a causa das manifestações estaria nas políticas compensatórias implantadas pelo Governo Lula. E, ao se fazer uma comparação com a realização de um pequeno curativo para tratar uma doença grave, em situações como essa, é possível perceber uma melhora imediata, mas que em longo prazo causaria em um agravamento do quadro clínico. É fato que boa parcela da sociedade foi incluída nas políticas econômicas daquele governo, porém, é considerado que o que faltou foi uma reestruturação dos eixos fundamentais do Estado brasileiro.

Todavia, não é consenso que os protestos aqui tratados tenham sido iniciados repentinamente. Ao se considerar que já havia manifestações de rua desde o primeiro governo petista, percebe-se que a perspectiva política anterior não era hegemônica como aparentava (GONDIM, 2016). Mesmo antes, os protestos de populares têm interferido no curso político da nação em diversas ocasiões, desde a redemocratização.

Os movimentos ocorridos no Brasil chegaram a ser comparados com a chamada “Primavera Árabe”, movimento revolucionário de 2010 que se estendeu por vários países do Oriente Médio e Norte da África, bem como ao movimento “Occupy”, que surgiu em 2011 nos Estados Unidos e se estendeu por 82 países.

Embora os países do Oriente Médio experimentem realidades totalmente distintas da realidade brasileira, é cabível a comparação com a Primavera Árabe por duas razões: a primeira, apontada por Beçak e Longhi (2015), se refere à velocidade com que as manifestações ocorreram, o que causou surpresa no mundo todo. A segunda porque, igualmente ao que ocorreu naqueles países, nos anos seguintes, o Brasil não vivenciou nenhuma melhora substancial no tocante às questões trazidas à tona nas manifestações, tais como a corrupção, alta dos preços, falta de investimento na educação, elevados índices de violência, etc.

A despeito da velocidade com que se propagaram, bem como o alcance obtido, tanto espacial quanto de adesão, em que pese a falta de organização prévia dos participantes, há autores que consideram superestimado, o caráter espontâneo dos protestos, visto que é possível se constatar o a existência de vínculo com outros movimentos sociais

Um dos fatores mais relevantes trazidos na obra é com relação ao aspecto psicológico da participação popular. Por razões históricas, acredita-se que haja uma deficiente formação política por parte da população brasileira, tanto na educação formal quanto na informal. Critica-se, por exemplo, a forma despolitizada de protestar “contra a corrupção”. Pois esta reivindicação é vazia de conteúdo, não apresentando nenhuma exigência prática, como aumentar o rigor de uma lei específica, por exemplo.

Na obra em comento, a sociedade brasileira chega a ser definida como uma massa de corpos sem identidade comum. Contudo embora as jornadas de junho tenham apresentado pouca efetividade prática, tanto de imediato, quanto no decorrer dos sete anos seguintes, desconsiderá-las cientificamente significaria a desvalorização da evolução sócio-política do país, bem como o desprezo à compreensão de suas relações de poder (GONDIM, 2016).

É imperioso ressaltar, em que pese a influência, parcialidade e manipulação da mídia, que a política, envolta em todos os demais temas trazidos nas manifestações, voltou a fazer parte do cotidiano do homem médio. Doutra banda, as manifestações também despertaram o interesse da comunidade científica. As ciências sociais, baseando-se em paradigmas e teorias pré-existentes, passaram a tomá-las como objeto de estudo, numa tentativa de interpretação dos acontecimentos (BELO e FEITOSA, 2014).

Ademais, é sinalizada a possibilidade de surgimento de um “espírito revolucionário”, levando-se em conta que a população que conta atualmente com 35 anos de idade nunca havia presenciado nem participado de lutas por grandes causas, como a ditadura militar ou a segunda guerra mundial. Essa geração, possivelmente, encontrou nas manifestações de 2013, a oportunidade de deixar seu nome na história. Ao citar declaração do filósofo Slavoj Žižek, por ocasião de uma entrevista concedida num programa de TV brasileiro, à época das manifestações, afirma-se que não é no pior momento social que as manifestações aparecem, mas sim quando as coisas estão melhorando e essa melhora não satisfaz plenamente a expectativa que ela gerou.

Outra discussão pertinente extraída das manifestações, concerne à ideia de segurança, não exatamente a segurança de todos, mas de certos valores estruturais que são pilares do Estado. Essa segurança pode ser entendida como uma violência estatal legitimada e os que não conseguem vislumbrar o que deve ser protegido, são considerados peças defeituosas, pois não operam em harmonia com a ideia fundante eleita.

A própria ideia de cárcere constitui uma tecnologia arbitrária incumbida de manter a coesão através do sacrifício de alguns. O Estado tem uma tendência a essa forma excludente de governar. Assim, é comum que grupos mais vulneráveis tenham seus direitos tolhidos. Professores, metroviários e garis, entre outros grupos, durante os movimentos grevistas, são vítimas de inúmeros artifícios a fim de deslegitimar suas lutas. E, quando muito, não conseguem mais do que algumas poucas concessões, uma vez que, para quem já está acostumado com o nada, qualquer mínima concessão pode representar um avanço. Outrossim, pequenas concessões são feitas mais por medo de ocorrer uma ruptura no sistema do que por benevolência, pois a lógica do sistema é se autopreservar, e não se destruir.

Também tratada na obra, outra temática muito interessante é a ideia de resistência, traduzida pelas práticas dos black bloc e a pedagogia das vidraças. A ideia de resistência é compreendida de uma forma paradoxal, pois, nesse caso, não são os manifestantes que estão apresentando resistência, pelo contrário, é uma estrutura social posta que, como uma rocha, oferece uma força de resistência, interferindo, dessa forma, na sociedade. Infere-se daí que os movimentos sociais não resistem pelo conflito unicamente, mas por discordar da forma tradicional de representação política.

Resistência pode ser entendida sob duas vertentes, a destrutiva e a criativa. Destrutiva quando é contrária a um modelo posto das relações de poder e criativa quando a partir daí, propõe uma nova forma de se organizar socialmente. Percebe-se nesse contexto, que resistir não tem a ver com suportar, conservar ou sofrer.

A origem da tática black bloc trazida no livro remete à Alemanha Ocidental e ao movimento italiano denominado de autonomismo, que no início dos anos 1980 fizeram acampamento no interior do país a fim de impedir a construção de usinas nucleares e ocuparam imóveis vazios na capital. As forças policiais foram acionadas para desocupar esses locais, nascendo a partir daí o movimento, na tentativa de defender os tais espaços de autonomia. Posteriormente, durante uma manifestação, um grupo de militantes desfilou com roupas pretas e os rostos cobertos, sendo batizados pela imprensa de “schwarzer block”, que significa bloco negro.

Nos anos 1990, muitos adeptos da tática, secretamente, estavam em Seattle, nos Estados Unidos, e se manifestaram contra a Organização Mundial do Comércio – OMC, destruindo símbolos do capitalismo, focando nas grandes corporações como McDonald’s e GAP, tentando mostrar que por trás da fachada divertida e amigável havia muita violência e exploração. Apesar desses dois eixos de atuação da tática black bloc, no Brasil ela surgiu como um movimento de reação à truculenta atuação da Polícia Militar, durante as manifestações de junho de 2013. Durante a greve dos professores no Rio de Janeiro, nesse mesmo período, o grupo se uniu aos professores numa luta comum pela educação.

No que se refere à pedagogia das vidraças, o livro traz algumas conclusões a respeito dos movimentos de resistência apresentados, como por exemplo a de que as resistências são fundamentais para as sociedades democráticas, pois o Estado Democrático de Direito não é um modelo definitivo, mas através do seu caráter participativo, deve ser lapidado continuamente.

A obra em comento representa, assim, uma boa alternativa para se compreender as transformações ocorridas e que ainda estão ocorrendo, a partir das manifestações de junho de 2013. Através dela é possível se obter uma visão interdisciplinar e, até certo ponto, imparcial do movimento, haja vista que uma das principais críticas encontrada na obra seja justamente à forma como a mídia transmitia os eventos ao país.

O leitor poderá formar suas próprias conclusões sobre o que representaram para o povo brasileiro, as jornadas de junho. Ao que parece, o verdadeiro legado das manifestações ainda é obscuro. Porém, se restou algo de positivo, possivelmente seja aproximar vários movimentos políticos e sociais que outrora agiam isoladamente.

Referências

BEÇAK, Rubens; LONGHI, João Victor Rozatti. O papel das tecnologias de comunicação em manifestações populares: a “Primavera Árabe” e as “jornadas de junho” no Brasil. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, v. 10, n. 1, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/view/20048/pdf. Acesso em: 20 de abril de 2020.

BELLO, Lenzo; FEITOSA, Heloísa de Carvalho. A cidadania (re)ativa no Brasil: movimento social ou individualidades reunidas? Uma análise crítica das jornadas de junho de 2013. Jurídicas. vol. 11, n°. 1, pp. 57-74, 2014. Disponível em: http://vip.ucaldas.edu.co/juridicas/downloads/Juridicas11(1)_4.pdf. Acesso em: 15 de abril de 2020.

FERNANDES, Frederico. Poesia e política: o espaço público brasileiro nas jornadas de junho de 2013. Revista da Anpoll, nº 38, p. 234-244, Florianópolis, Jan./Jun. 2015. Disponível em: https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/view/851/807. Acesso em: 23 de abril de 2020.

GONDIM, Linda. Movimentos sociais contemporâneos no Brasil: a face invisível das Jornadas de Junho de 2013. Polis, Revista Latino-americana. vol. 15, nº 44, p. 357-379, 2016. Disponível em: https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?frbrVersion=2&script=sci_arttext&pid=S0718-65682016000200016&lng=en&tlng=en. Acesso em: 20 de Abril de 2020.

HJARVARD, Stig. The Mediatization of Culture and Society. London: Routledge, 2013.

SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da Crise. São Paulo: É Realizações, 2017.


Resenhista

Bruno de Araújo Azevedo – Mestre profissional em Administração Pública pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG); docente na Escola Técnica Redentorista (ETER). E-mail: bruno8809@gmail.com


Referências desta Resenha

BORGES, David G.; CEI, Vitor (Orgs.). Brasil em crise: o legado das jornadas de junho. Vila Velha: Praia Editora, 2015. Resenha de: AZEVEDO, Bruno de Araújo. Revista de História da UEG. Morrinhos, v.9, n.2, jul./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]

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