Brasil e Argentina: um ensaio de história comparada (1850-2002) | Boris Fausto e Fernando J. Devoto

Brasil e Argentina padecem de certa insuficiência de desenvolvimento econômico e social, sendo a maior parte dos problemas derivada de erros de gestão macroeconômica e de escolhas infelizes de suas elites políticas ao longo dos anos de formação das nações respectivas e dos momentos de ajuste aos desafios externos, no decorrer do século XX. Durante muito tempo, prevaleceu no Brasil a noção de que a Argentina era bem mais desenvolvida, graças a um maior componente “europeu” na sua formação étnica e aos maiores cuidados com a educação do seu povo. Depois, prevaleceu na Argentina a noção de que o Brasil foi mais bem sucedido na industrialização e no fortalecimento da base econômica, graças ao maior envolvimento de seu Estado na gestão macroeconômica, em lugar do liberalismo praticado naquelas margens da bacia do Prata. Hoje, se pretende avançar no desenvolvimento conjunto, mediante o Mercosul, mas as salvaguardas e os desvios ao livre comércio demonstram os limites da integração econômica.

Essas visões, parcialmente corretas, decorrem de uma complexa realidade, que é examinada, com lentes cuidadosamente focadas nas particularidades nacionais, por um historiador de cada um desses dois países, que colocam em perspectiva comparada, mas não necessariamente em paralelo, duas trajetórias comparáveis, na forma e no conteúdo. Eles se baseiam, neste empreendimento inédito na historiografia regional, em metodologia proposta há muitos anos pelo historiador francês Marc Bloch, que recomendava o estudo de sociedades próximas no espaço e no tempo, buscando não apenas as semelhanças, mas também as diferenças. Este “ensaio de história comparada” começa, justamente, por um excelente capítulo introdutório que discute as vantagens e modalidades do comparatismo em história.

As influências mútuas entre os dois maiores países da América do Sul foram, na verdade, limitadas, uma vez que as duas economias sempre foram relativamente excêntricas – isto é, voltadas para os parceiros privilegiados no hemisfério norte – e os regimes políticos mantiveram, contra toda racionalidade e interesses imediatos, certo distanciamento competitivo, que em alguns momentos quase descambou para a hostilidade, ou seja, para a corrida armamentista e para uma possível disputa pela hegemonia regional. Esta se deu desde o início da formação dos dois Estados nacionais, primeiro em torno da Cisplatina – finalmente consagrada como o Estado independente do Uruguai, um “algodão entre cristais”, segundo a definição do diplomata britânico que presidiu ao arranjo de 1828 –, depois a propósito do Paraguai, que antes de surgir como enclave independente, integrava o Vice-Reinado do Rio da Prata, do qual fazia parte também a Bolívia. A diplomacia imperial sempre se preocupou em assegurar que o mesmo poder não ocuparia as duas margens do Prata, daí os conflitos com os caudilhos argentinos, que aliás se prolongaram, pelo menos como hipótese bélica, até avançado o século XX.

Os autores mostram, num jogo de contrastes e comparações, como os dois países enfrentaram, depois de superadas suas repúblicas “oligárquicas” mais ou menos na mesma época, isto é, os anos 1930 –, seus processos respectivos de modernização econômica e política por meio de experimentos nacionalistas e populistas, politicamente identificados com as figuras de Vargas e Perón. A Argentina logrou, provavelmente, um maior grau de inserção social, mas o Brasil foi bem menos errático no seu processo de desenvolvimento, conseguindo consolidar a construção de uma base industrial que nunca teve paralelo na Argentina, ainda hoje uma economia agroexportadora.

Os azares da Guerra Fria e as ameaças percebidas pelas classes médias como provenientes da sindicalização excessiva do sistema político também conduziram ambos os países em direção de episódios mais ou menos prolongados de autoritarismo militar. Este assumiu dimensões bem mais dramáticas na Argentina, com um custo elevado em vidas humanas e outras conseqüências menos desejáveis no plano das relações bilaterais, como o fenômeno que os autores chamam de “afinidades repressivas”.

A fase de redemocratização permitiu revigorar o processo de integração, que tinha começado no final dos anos 1950, desta vez segundo um formato bilateral – tratado para a formação de um mercado comum de 1988 – que logo se desdobrou numa dimensão quadrilateral, ao incorporar os dois vizinhos menores em 1991. O Mercosul logrou incluir outros países associados, como o Chile e a Bolívia (em 1996) e, recentemente, os demais vizinhos andinos, mas sua zona de livre-comércio permanece incompleta, sua união aduaneira é perfurada por inúmeras exceções nacionais e o mercado comum, prometido para 1995, um sonho ainda distante.

Este longo ensaio histórico (512 páginas de texto) não traz notas de rodapé, mas um capítulo final de recomendações bibliográficas, o que confirma que os dois autores, dispensando referências diretas de arquivo, trabalharam sobretudo a partir da literatura secundária, em especial sínteses históricas anteriores, o que não diminuiu em nada o seu próprio esforço de síntese. Uma cronologia paralela de mais de quarenta páginas completa a informação histórica sobre a trajetória contrastante, poucas vezes coincidente, de dois países que a visão otimista do presidente Roque Sáenz Peña pretendia resumir nesta frase: “Tudo nos une, nada nos separa”. Talvez, mas a história ainda precisa provar essa assertiva, com a provável exceção dos campos de futebol.


Resenhista

Paulo Roberto de Almeida – Diplomata de carreira e Doutor em Ciências Sociais. As opiniões expressas no presente texto são exclusivamente as de seu autor.


Referências desta Resenha

FAUSTO, Boris; DEVOTO, Fernando J. Brasil e Argentina: um ensaio de história comparada (1850-2002). São Paulo: Editora 34, 2004. Resenha de: ALMEIDA, Paulo Roberto de. Meridiano 47, v.6, n.59, p.15-16, jun. 2005. Acessar publicação original [DR]

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