Brasil e Alemanha pós-1945: perspectivas transnacionais / História Unisinos / 2013
As contribuições deste dossiê procuram abordar aspectos das relações entre a história da Alemanha e a do Brasil e interações entre seus diferentes sujeitos sociais num contexto global. O foco é o período do pós Segunda Guerra Mundial, em especial o imediato pós-guerra, sobre o qual ainda há poucas investigações no campo da História. A pouca bibliografia existente se dedica sobretudo à área da economia e das relações diplomáticas.
A proposta do dossiê, entretanto, não seria exatamente a de preencher uma “lacuna” no campo da história das relações entre ambos os países, mas a de apresentar objetos e problemáticas de pesquisa desenvolvidos a partir de uma perspectiva que transcenda os limites de uma ou outra história nacional. Os processos, trocas, interações, experiências individuais, grupais e institucionais e a constituição de imaginários problematizados nos diversos artigos que compõem este dossiê procuram desenvolver uma abordagem transnacional ou mesmo surgiram como problemáticas ou temáticas de pesquisa a partir dessa preocupação.
Esta “história para além do Estado Nação”, como o historiador alemão Jürgen Osterhammel define a história transnacional, por um lado coloca em questão a naturalidade da categoria Nação e, por outro, procura lançar novas perguntas e novos campos de pesquisa para o historiador (Osterhammel, 2001). Entre as preocupações desta abordagem estão a investigação das redes, da circulação de ideias e das transferências de saberes, dos entrelaçamentos e das influências recíprocas e da constituição de espaços sociais transnacionais (Osterhammel in Pernau, 2011; Wirz, 2001). A globalização impôs também à historiografia o desafio da internacionalização e da competência intercultural. O projeto de uma história transnacional parte da necessidade expressa de desprovincializar o pensar histórico e de apreender as relações e influências recíprocas entre diferentes Estados, regiões, grupos, indivíduos (Wirz, 2001). Vista a partir da Europa, a história transnacional traduz esforços em lançar olhares por sobre suas fronteiras, sem recair em antinomias, eurocentrismos e outras hierarquizações.
Se olharmos a história do Brasil, ela nunca foi escrita como uma unidade totalmente isolada. No que se refere às relações entre os diferentes sujeitos sociais do Brasil e Alemanha no imediato pós-guerra, entretanto, ele permanece um campo aberto ao exercício de investigações naquela perspectiva. Neste dossiê são trazidos resultados de algumas investigações realizadas recentemente no Brasil e na Alemanha e apresentadas possibilidades de pesquisa nessa direção.
Nos artigos são trazidos à luz não apenas os Estados Nacionais e suas instituições governamentais, mas também outros sujeitos históricos, suas redes e articulações. Esta abordagem se reforça no caso deste dossiê, considerando que a maioria dos artigos se dedica ao imediato pós-guerra, quando o Estado alemão deixou de existir com a ocupação dos Aliados, vindo a se reconstituir somente em 1949, dividido em duas repúblicas alemãs. Emergem nos artigos aqui reunidos temas como a importância de estruturas, redes e atores transnacionais para o recomeço das relações internacionais entre a República Federal Alemã e a América Latina, a ajuda humanitária do Brasil à Alemanha em ruínas e o intuito de repatriação de cidadãos brasileiros que se encontravam na Alemanha e a necessária articulação das elites teuto-brasileiras com o governo brasileiro, as interações entre as forças armadas do Brasil e das potências Aliadas na Alemanha ocupada, as trajetórias transnacionais de indivíduos que constituíram identidades nas interações e experiências em ambos os países, a constituição de imaginários políticos que associaram localidades do Sul do Brasil à suposta ascensão de um IV Reich.
Todos os artigos, escritos por historiadores brasileiros e um alemão, se baseiam em fontes documentais e bibliográficas que apontam temas e fenômenos supranacionais.
O artigo que abre o dossiê, de Stefan Rinke, “O continente ainda inexplorado”: a República Federal Alemã no governo Adenauer e a América Latina em contexto global, inicia com uma breve visão panorâmica sobre as relações entre Alemanha e América Latina no período da Guerra Fria, lançando algumas questões e possibilidades de pesquisa em relação às relações entre aquele país e o Brasil. O artigo sustenta a tese de que atores transnacionais e suas redes foram cruciais para o reestabelecimento das relações com a América Latina após 1945, no período do governo de Konrad Adenauer na Alemanha Ocidental, até 1963. O autor trata das percepções e expectativas do lado alemão no final da Segunda Guerra Mundial, as quais são a base para as relações propriamente ditas, discutidas à luz de fontes alemãs e no contexto das conexões e do comércio global.
Méri Frotscher, no artigo intitulado De “alemães no exterior” a brasileiros? A repatriação de cidadãos brasileiros da Alemanha ocupada (1946-1949), foca sua atenção no processo de repatriação de cidadãos brasileiros, a maioria com laços binacionais, que se encontravam na Alemanha logo após a II Guerra Mundial por intermédio da Missão Militar Brasileira, a qual passou a representar os interesses do governo brasileiro naquele país. Com base em fontes brasileiras, norte-americanas e alemãs (estas últimas referentes ao período nacional-socialista), a autora discute os propósitos, problemas, polêmicas e contradições do esquema de repatriação levado a cabo pelo governo brasileiro, em colaboração com as forças de ocupação na Alemanha. A autora discute o tema numa perspectiva transnacional, considerando não apenas os interesses do governo brasileiro e do Conselho de Controle Aliado, o contexto de “desnazificação” da Alemanha e as crescentes tensões entre as potências de ocupação ocidentais e a URSS, mas também as próprias estratégias e o realce da nacionalidade brasileira por parte dos binacionais que desejavam retornar ao Brasil, assim como a intercessão dos familiares e das elites políticas no Brasil.
Os dois artigos seguintes partem do particular para o geral, da experiência e da escrita do indivíduo para problemáticas mais amplas e que envolveram relações entre sujeitos no Brasil e na Alemanha. O artigo de Evandro Fernandes, Organização e articulação do Comitê de Socorro à Europa Faminta – SEF (1946-1949), baseado em fontes primárias produzidas pelo comitê, cartas e diário do seu secretário, Pe. Rambo, trata do papel dessa organização na ajuda humanitária à Alemanha e de suas articulações no contexto brasileiro e internacional. O autor visualiza os grupos sociais que tomaram parte nas arrecadações, as estratégias de articulação das elites do grupo étnico alemão no Brasil junto aos círculos do poder brasileiros – entre elas a própria decisão de não nomear o Comitê de Socorro à Alemanha, diante dos ressentimentos existentes no Brasil e no mundo em relação à guerra – e a função social e ideológica do comitê para a comunidade étnica alemã no Brasil.
No artigo seguinte, Notícias tristes dos velhos amigos: a Alemanha pós-Segunda Guerra na correspondência de Henrique da Rocha Lima (1945-1950), André Cândido da Silva aborda diálogos transnacionais presentes na correspondência do microbiologista e patologista brasileiro com amigos e conhecidos alemães depois da Segunda Guerra Mundial. Por conta de sua trajetória transnacional, Rocha Lima foi um “tradutor” das culturas brasileira e alemã, atuando em favor do intercâmbio intelectual germano-brasileiro. A partir de sua escrita epistolar e de seus correspondentes, o autor analisa as percepções nela contidas sobre o colapso alemão e o dramático cotidiano do pós-guerra na Alemanha, sobre os dilemas e contradições do governo de ocupação e, também, sobre as tensões que desembocaram na Guerra Fria.
A Segunda Guerra e sobretudo os acontecimentos decorrentes do nazismo encontraram um chão fértil para a propagação de histórias sobre a existência de uma conspiração nazista em terras sul-americanas. No último artigo do dossiê, intitulado O imaginário da formação do IV Reich na América Latina: o agente Erich Erdstein no Brasil, o autor Marcos Meinerz, analisa discursos presentes em obras literárias e reportagens de jornais e revistas sobre duas cidades no Sul do Brasil, Marechal Cândido Rondon (PR) e Rio do Sul (SC), acusadas pelo “agente” da DOPS de Curitiba Erich Erdstein, de abrigar os criminosos de guerra nazista Josef Mengele e Martin Bormann. Estes discursos são entendidos como parte de um imaginário político conspiratório formado após a Segunda Guerra Mundial que veiculava a ideia de que o IV Reich estaria se erguendo em algum lugar do mundo, principalmente na América Latina. O autor assim demonstra como o imaginário do “perigo alemão”, já existente em outros momentos no Brasil, toma outra forma nos anos 1960 e 1970, quando é associado a denúncias da formação de um IV Reich.
Referências
OSTERHAMMEL, J. 2001. Geschichtswissenschaft jenseits des Nationalstaats: Studien zu Beziehungsgeschichte und Zivilisationsvergleich. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 384 p.
PERNAU, M. 2011. Transnationale Geschichte. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 192 p.
WIRZ, A. 2001. Für eine transnationale Geschichte. Geschichte und Gesellschaft, 27:489-498.
Méri Frotscher – Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Stefan Rinke – Universidade Livre de Berlim
FROTSCHER, Méri; RINKE, Stefan. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.17, n.2., maio / agosto, 2013. Acessar publicação original
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