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Brasil Arquitetura. Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz, projetos 2005-2020 | Abilio Guerra, Marcos Grinspum Ferraz e Silvana Romano Santos

Tempos difíceis estes que estamos vivendo. Especialmente difíceis para nós, ofendidos e maltratados brasileiros. Muito difíceis para terra e homens ressecados e silenciosos, apiloados pela marcha dura de botas e coturnos. Enquanto isso os espíritos xapiri continuam fugindo, os xamãs quase não conseguem mais fazê-los dançar para nos proteger e o céu que vem se aproximando cada vez mais da terra, não tendo mais ninguém que consiga sustenta-lo, corre sério risco de desabar de vez; assim profetizou Davi Kopenawa narrando uma lenda comum a vários povos indígenas (1). A proximidade cada vez maior do céu é que vai explicar esta sensação estranha de angústia e sufocamento. E porque os coqueiros e mamoeiros não dão mais conta sozinhos de suportar o céu, vamos fazendo exercícios diários para ajudar a segurá-lo, lembrando de brasis mais justos, ou mais alegres, ou mais serenos, ou mais criativos, ou mais tolerantes, ou mais singelos, ou tudo isso mais ou menos combinado. Saudades das aquarelas do Brasil…

Mas chega de tanta saudade que a Romano Guerra Editora e as Edições Sesc São Paulo vieram ajudar a segurar o céu nos presenteando com um destes brasis que representam hoje a esperança da nossa força criativa de resistência: um livro com obras do Francisco Fanucci e do Marcelo Ferraz, o Brasil Arquitetura. Apresentado como uma sequência do livro anterior (2) – mesmo formato, mesmo desenho, mesmo projeto gráfico de Victor Nosek –, a nova edição (3) reúne uma seleção de 36 projetos desenvolvidos pela equipe em primorosa edição que conta ainda com textos críticos de Abilio Guerra, Marta Bogea e Guilherme Wisnik, além da atualização minuciosa da bibliografia de referência e da cronologia de obras do escritório, coisa de editores pesquisadores – nós outros pesquisadores agradecemos! Encerra a edição o gráfico tradicional que relaciona todos arquitetos e estagiários que colaboraram com o escritório desde a sua fundação em 1979, e que já começa a contar um pouco como deve ser o trabalho deste novo Brasil que estamos tentando construir, onde não terá mais lugar para gestos ou ações que não sejam afirmativamente coletivos.

Abrem a apresentação duas obras hoje concluídas que no livro anterior entraram como projetos, e que apontam o fio condutor onde serão penduradas as outras obras em ordem cronológica: a sede do Instituto Socioambiental em São Gabriel da Cachoeira, e o Museu Rodin em Salvador. O primeiro revela e explica a preocupação com a integração dos projetos com os sítios onde são implantados, com a incorporação dos saberes e fazeres de seus habitantes – belo chapéu de palha estruturado com madeira amarrada com cipós segundo o sistema tradicional indígena, cobertura de folhas de caranã –, também com a maneira de viver e conviver presente em amplos espaços coalhados de redes, e ainda que considera chuvas e ventos amazônicos nas decisões de projeto. Condições físicas e cultura local reforçando as fundações como no projeto de reurbanização de São Bartolomeu, na Bahia; como nos Museus do Pão, da Araucária, do Tijolo e no mercado de Jaguarão, Rio Grande do Sul; como no singelo espaço ecumênico da Capela Dom Viçoso, as pedras e o espírito santo de Minas Gerais; como no Museu de Igatu “encravado em pedras e mato rude, todos os sentidos em alerta, embalados pelo silêncio mágico de Xique-Xique de Igatu”, Bahia. Ou ainda como na Praça das Artes, no Centro de São Paulo, interpretação sensível da dinâmica paulistana infernal que ergue e destrói coisas belas, e da dura poesia concreta das nossas esquinas.

O Museu Rodin aponta outro fio condutor que se entrelaça com o primeiro, aquele das interações com preexistências arquitetônicas, das transformações para conferir novo uso conforme novas necessidades através de decisões projetais conscientes e de transformações criteriosas, onde além do respeito sensível pelo que já existe, há que observar um zelo especial pela qualidade arquitetônica do que vai se juntar e sobrepor: o projeto de arquitetura como o gesto comedido que recorta e valoriza uma realidade cultural consolidada, na perspectiva de criação em continuidade. E assim se sucedem o Museu do Pampa em Jaguarão, vísceras à mostra na sua glória e sofrimento; o Teatro do Engenho Central, em Piracicaba, ocupando um belo galpão e sinalizando um movimento de recuperação para o impressionante conjunto industrial; o Cais do Sertão ancorado no Porto de Recife, a riqueza trágica do sertão trazida para beira mar, recoberta pelo impressionante rendilhado dos cobogós que remetem ao trabalho das rendeiras de Lampião. E, de novo e entrelaçados, voltam o Museu do Pão e a Praça das Artes, misturando os dois fios e explicando por quê.

Mas é o projeto da Vila Isabella, residência construída na Finlândia, que vai dar coerência ao conjunto, talvez o projeto síntese dessa coletânea. Plantado em terras estrangeiras, muito frias e distantes, o projeto exigiu dos autores um mergulho no próprio fazer arquitetônico em busca de raízes e de matrizes de referência. Mergulho do qual submergiram para encontrar com o arquiteto finlandês Alvar Aalto na busca pela lógica construtiva, nas concepções espaciais, na forma de apropriação dos materiais e técnicas locais, na relação estreita com o sitio, sua ambiência, e com a cultural local. “Brasil e Finlândia, ‘tão longe e tão perto’, por intermédio da arquitetura”, representa o começo do entendimento desta difícil passagem do universal para o global.

O gancho para o próximo volume poderia ser o projeto não executado para o Terreiro de Osumaré em Salvador, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que exigiu dos arquitetos um novo mergulho, desta feita na cultura afro brasileira, em estudo atento do programa específico de um terreiro de candomblé e da forma de ocupação tradicional das encostas da cidade.

É preciso ler e reler e ouvir sempre Lúcio Costa, para entender o que ele quer dizer quando afirma que “a arquitetura regional autêntica tem suas raízes na terra”. Para ser moderno e brasileiro como Dr. Lúcio, o Brasil Arquitetura foi aprender com ele, conduzidos por Lina Bo Bardi, a fazer a síntese entre tradição construtiva e compositiva, e os postulados básicos da arquitetura moderna internacional, complexo processo de deglutição que demanda muita mastigação e muita poesia, além de um olhar agudo e curioso, sem nenhum pré-conceito, e de uma boa dose de erudição. Resumindo, um método de trabalho que quer dizer resistir, transformar, desafiar, em que composição, forma e construção se organizam em função do homem cultural e seu habitat.

Importante assinalar o lançamento concomitante pela Romano Guerra Editora da terceira edição de outro livro, este de autoria de Marcelo Ferraz, Arquitetura rural da Serra da Mantiqueira (4), registro fotográfico e documento fundamental sobre as formas de viver na “serra que chora”, acesso privilegiado ao significado mais profundo da obra dos arquitetos, ambos mineiros de Cambuí. E é Lina Bo Bardi, na sua apresentação à primeira edição do livro quem melhor resume e encerra estas considerações: “ Ali está a nossa casa. Simples, sem voltas sem retórica. Uma casa em que os espaços foram cuidadosamente examinados, calibrados, pensados não sobre a base da especulação da construção, mas sobre a base da solidariedade humana; uma casa onde é possível viver, e principalmente pensar, onde há espaço para tudo, um espaço cuidadosamente dosado, que vai da cozinha como um laboratório químico, ao esconderijo para os barbantes e as rolhas usadas”.

Fica a dica para nós, arquitetos interessados em contribuir para que o céu não caia.

Notas

1KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. São Paulo, Companhia das Letras, 2015.

2FANUCCI, Francisco; FERRAZ, Marcelo Carvalho. Francisco Fanucci, Marcelo Ferraz: Brasil Arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2005.

3GUERRA, Abilio; FERRAZ, Marcos Grinspum; SANTOS, Silvana Romano (Orgs.). Brasil Arquitetura. Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz, projetos 2005-2020. São Paulo, Romano Guerra/Edições Sesc, 2020.

4FERRAZ, Marcelo Carvalho. Arquitetura rural na Serra da Mantiqueira. 3a edição. Versão para o inglês e revisão C. Stuart Birknishaw. São Paulo, Romano Guerra, 2020.


Resenhista

Cecilia Rodrigues dos Santos – Arquiteta (FAU Mackenzie, 1978), mestre (Université de Paris X, Nanterre, 1983), doutora (FAU USP, 2007) e pós-doutora (Prourb FAU UFRJ, 2011). Professora adjunta e pesquisadora da FAU Mackenzie, especialista na área de Preservação do Patrimônio Cultural, foi Superintendente Regional em São Paulo do Iphan (1994-1999). É coautora do livro Le Corbusier e o Brasil (ProEditores/Tessela, São Paulo, 1987).


Referências desta Resenha

GUERRA, Abilio; FERRAZ, Marcos Grinspum; SANTOS, Silvana Romano (Orgs.). Brasil Arquitetura. Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz, projetos 2005-2020. São Paulo: Edições Sesc SP; Romano Guerra, 2020. Resenha de: SANTOS, Cecília Rodrigues dos. Saudades do Brasil. Resenha Online. São Paulo, n. 224, ago. 2020. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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