Brasil Arquitetura. Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz, projetos 2005-2020 | Abilio Guerra, Marcos Grinspum Ferraz e Silvana Romano Santos

Taí um livro que não carece de resenha. Dado que se constitui em si mesmo, sem necessária tradução ou reforço teórico, crítico ou explicativo; vamos começar pelo começo, por puro e respeitoso apreço e deleite.

É um lindo corpo físico – que bom poder sentir o peso do volume nas mãos e folheá-lo, percorrendo página a página, composta cada uma a sua vez de texto e imagem com medida apurada. Quase, mas não perfeitamente quadrado – a proporção nos atinge de primeiro, sem racionalização, não é mesmo? – e assim ele fica de pé, posto que tem um tantinho mais de altura do que largura. Mas se deita, também, sobre um plano qualquer e nos espera, ao expor seu rosto de chofre, claro, sincero. Um ser encarnado.

Mas, antes de abri-lo, tem a capa e a folha envoltória. Como porta de entrada a misteriosa grafia (caligrafia, pictograma?) de Victor Nosek, nos transpõe para a impressão de algo orgânico que se desenvolve como cursos de rios meandrando em terra vermelha ou… uma alusão ao desenho descoberto fortuitamente em uma parede  da Casa Roman, Arvorezinha, que emprestou sua dignidade enigmática para o Museu do Pão (Ilópolis, 2005), lá vincado na pedra/concreto armado, renascido e novamente perenizado – por mais um tempo; como tudo, como todos nós, entre o provisório incontinenti de nossa natureza e a busca de transcendência. Porque é também assim a arquitetura; em geral mais durável que uma vida humana, mas perecível. Tudo e todos subordinados à segunda lei da termodinâmica.

Lembro a viagem a São Raimundo Nonato, Piauí, em 2000, em busca de compreender o Pavilhão para a Exposição de Sevilha, último projeto de Lina Bo Bardi (1992), seguindo pistas de depoimento de Marcelo Ferraz, sobre o primeiro homem do Brasil a ser exposto, simbolicamente, por inversão de origem, em solo peninsular ibérico, no pavimento mais alto e secreto do bloco monolítico de mármore branco neve brasil – onde embaixo haveria festa, comida, no intermédio representação, teatro – programas recorrentes e fundamentais da vida coletiva. Mesma inquietação perante os buracos do Sesc, mais evidentes e diante da residência Valéria Cirell, coetânea ao Masp – como interpretar? (1) Bela escola. Pois ao se deparar defronte às pinturas rupestres no sítio arqueológico de São Raimundo Nonato compreende-se, ali estão os primeiros desenhos do Brasil. Perenizados há pelo menos 20.000 em outras pedras. Sem palavras. Antes das palavras. Como esta capa.

As línguas se constroem e se estruturam até o grau de prosa e poesia pela tradição, não saberemos jamais quem alterou a cada tempo algo para que a comunicação se moldasse em significado e regra em plena sonoridade que diz sobre nós. Não há sinal de autoria individual, mas há uma espessura gigantesca de coletividades. Preciso me desculpar com o leitor, aqui vai uma citação sem referência precisa, surgida do palimpsesto da memória. Saramago comenta, em um texto entre seus livros que francês é latim falado na França, espanhol é latim falado na Espanha, português é latim falado em Portugal. Assim é a arquitetura tradicional, depurada por tempos lentos das pessoas vida a vida, em esforço de sobrevivência e dignidade, coerente do conjunto ao pormenor. Quase a mesma construção de linguagem, tão próxima das pessoas como as frases que se compõem (2). Assim é quando a tradição desenha.

Mas, o que é território? A geografia física, para nós indissociável da humana, em comunhão com todos os seres vivos e inanimados – quem o sabe ao certo se o são? – em que nossas arquiteturas e cidades e campos e mundos significam como parte. Essa matriz fecunda mediante leitura atenta, livre e poética dos arquitetos do Brasil Arquitetura se faz afinada em tom maior, tons menores e dissonâncias plausíveis – e encantadoras. Os gestos novos – dado que movimentam toneladas de matéria, alteram e restauram paisagens, imprimem modificações na vida de pessoas – assim soem ser responsáveis, calculados, pela inclinação do olhar, do corpo e de todo o ser dos arquitetos em direção ao outro, aos outros todos, quanto mais melhor – e vão durar essas coisas realizadas…

Não há, contudo, medida alguma predeterminada, apriorística, automática; portanto ancora-se o trabalho em um método firme, mas com liberdade errante, em bases técnicas potentes, preparados que estão para a coragem da aventura da poesia e do afeto a cada projeto.

Assim, quase tudo que estava lá no lugar nasce de novo como uma revivescência, de modo profundamente humanista e ambiental. No mesmo chão nascem junto também novos acontecimentos, geração aparentada à origem impressa nesses lugares mas revitalizada, revigorada. Algo se perde ou se descarta. Ou se apresentam para perdurar em um novo ciclo.

Se, para as culturas tradicionais é possível fundar infinitos centros de mundo cravados no chão, mediante rituais orientados pela geografia cósmica – o arco do sol, o axis mundi (céu-terra-entranhas obscuras da terra), ao contemplar os projetos de Chico e Marcelo, parece possível constituir rituais modernos com circunstância.

E tudo é paisagem. Lina Bardi dissera uma vez que era preciso reconstruir a paisagem (3). Estava certa. Contudo, mal compreendida. Francisco e Marcelo prosseguem em direção a esta utopia realizável.

A cada projeto apresentado no livro, estes dois arquitetos do Brasil nos oferecem sintético desvelar do partido – síntese essencial e indissociável de morfologia, programa e materialidade – no lugar, ou, mais profundamente, a constituição ou reconstituição do lugar. Lições generosas sobre o método errante de busca de significado para as coisas que se faz, com arbítrio profundamente meditado, sedimentado, decidido no risco. Ou, se preferirem, de conceitos buscando forma. Eu elejo a hipótese da simultaneidade – creio que nasça tudo junto, em ato, sucessivamente depurado; costumo dizer que “arquitetura é poesia que se faz com pedras” – e gentes, e espaços, e lugares, e recintos, e sítios, contextos, tudo é um. Ou a ideia se impregna na pedra e no ar que esta envolve ou no ar que a envolve ou não há ideia alguma; porque arquitetura é coisa, pertence ao mundo físico, visível, como corpo para nossos corpos que fazem ressoar alguma sonoridade em nossa alma (será, portanto, que arquitetura tem alma?).

No livro, três ensaios são prelúdio desse caminho de aproximadamente quinze anos para mais – depois de outros quinze anos ou mais (4). Cada um a seu modo e tom; fazem um belo trio.

Abilio Guerra nos pega gentilmente pela mão e nos convida a vê-lo desvendar, a partir da leitura do programa mais prosaico – a casa – a transcendência proposta a cada uma e em todas em seu conjunto. Nos faz percorrer e mirar estas arquiteturas atentas – sempre – a seu meio, jamais subservientes ou optando por alegorias vazias ou citações simplificadas e as parafusa na cultura, em uma digressão potente sobre o eterno problema da invenção cuja base seja o vernáculo ou a tradição. Aí temos uma pequena divergência respeitosa, na consideração de que este debate não se conclui. No meu entender – no caso de Lina Bo Bardi, que julgo ser a mesma matriz que orienta a ação do Brasil Arquitetura – creio que não haja a hipótese de lapidar, elevar a outro grau, os temas populares. Me parece que Lina justamente percebeu/descobriu/inventou um mito de origem no Brasil onde popular e erudito se equivalem, como gestos absolutamente análogos, perante a resistência e as leis físicas da matéria, da forma e da utilidade; de modo essencial em difícil síntese – porque afinal se tratava de comparar a causa e procedimentos modernos ao que viu e registrou em suas andanças, especialmente pelo nordeste, a ponto de propor uma escola de desenho industrial a partir do universo popular brasileiro (5). Nesse sentido ouso dizer que Lina propõe uma outra definição de beleza – que nem beleza é, como substrato constitutivo ou intenção fundamental –, ao preconizado ou realizado por Mário de Andrade, Villa-Lobos ou tantos outros (Dvórjak, Beethoven, são muitos e desde sempre) que intentam a partir do erudito depurar o vocabulário popular.

Guilherme Wisnik nos pega pelo braço e nos coloca, quase sacudindo, diante da passividade do arquiteto perante uma possível espera subjugada de encomendas, sublinhando a inversão que Marcelo e Francisco propõem para si mesmos – vão em busca daquilo que em latência os espera por precisão, necessidade, vontade de revigoramento, preservação, ou… beleza. E atravessam os umbrais institucionais, financeiros, de cooperação técnica, de associação comunitária, para viabilizar projetos destinados aos lugares em que os descobrem por se fazer. Bela missão.

Marta Bogéa nos conduz ao mundo da imaginação poética realizada, nos colocando suspensos a alguns centímetros do chão para depois fincar nossos pés na propriedade da ação dosada e decifrada (em termos, porque poesia não se traduz, uma vez que seu ressoar é na alma, como sabe a ensaísta) desta poética em pedras e mundos desenhados à semelhança do enlevo de verdade de João Cabral de Mello Neto.

A partir dessas três destacadas aberturas somos convocados ao debruçar-se sobre cada obra, cada texto, cada imagem.

Subentende-se a mão invisível de Silvana Romano Santos invariavelmente constante e precisa, com Abilio, sempre, desta vez em companhia de Marcos Grispum Ferraz.

Uma resenha não deve contemplar preferências… mas como não pontuar a constante e deliciosa surpresa em cada espaço de transição – corredores, saguões, passarelas, que poderiam ser passagens neutras, opacas e sem vida? Como não associar o sintético túnel de vidro da casa Dom Viçoso, Minas Gerais – um ponto alto na serra da Mantiqueira, ao extenso eixo condutor da Villa Isabella, Finlândia? Como não subir e descer com o olhar as escadas externas apostas ao pavilhão da sede avançada do Instituto Socioambiental – ISA em São Gabriel da Cachoeira, Alto rio Negro, Amazonas ou aos passadiços do Museu do Pão – Moinho Colognese, Ilópolis, Rio Grande do Sul – cujo desenvolvimento se dá em saiote com barra rendada em torno da escola de confeiteiros? Externo então, na contramão da ortodoxia, meu encantamento pela capela de Dom Viçoso, serra da Mantiqueira, Minas Gerais, um dos menores projetos expostos com um dos maiores significados de transcendência de matéria, luz, geometria e significado e pela homenagem da visita dos autores a Aalto, na mesma Villa Isabella – um ponto a mais na paisagem por tanto tempo nevada, a cada ano. E a arguta decisão em manter quase tudo e mudar quase nada no magnífico Mercado de Jaguarão, Rio Grande do Sul? E a sábia trama estrutural dos telhados, os muros organizadores, os afloramentos e submersões de volumes, reiterados em alguns projetos? E a corajosa cicatriz restauradora do anel quadrangular do Museu do Pampa, Jaguarão, Rio Grande do Sul? Aí a questão se complica porque a resenha desejaria fazer um duplo do livro, a conversar com os ensaístas da tripla abertura e com os autores a cada projeto. Dispensável. Portanto é preferível a resenha se colocar no seu lugar e razão de ser como convite à experiência do livro, aberta a todos os que consideram a arquitetura como necessidade vital, cuja viagem pelo livro se conduz com narrativa precisa e sentido aguçado, potente.

Viram por que este livro não carece de resenha?

Então ao invés de uma epígrafe façamos um devaneio final sobre um livro que faz companhia a este na mesma estante…

“SÓCRATES

Assim acontece em todos os domínios, excetuando-se o dos filósofos, cuja grande infelicidade consiste em jamais verem desmoronar os universos que imaginam, pois esses, afinal, não existem.

FEDRO

Eupalinos era senhor de seu preceito. Nada negligenciava. Prescrevia o corte das tábuas no veio da madeira, a fim de que, interpostas entre a alvenaria e as vigas que nelas se apoiassem, impedissem a umidade de penetrar nas fibras, embebendo-as e apodrecendo-as. Prestava a mesma atenção a todos os pontos sensíveis do edifício. Dir-se-ia tratar-se de seu próprio corpo. Durante o trabalho da construção, raramente afastava-se do canteiro. Conhecia todas as suas pedras: cuidava da precisão de seu talhe, estudava minuciosamente todos os meios de evitar que as arestas se ferissem ou que a pureza dos encaixes se alterasse. Ordenava a prática da cinzeladura, a reserva dos calços a execução dos biséis no mármore dos adornos. Dispensava o mais fino cuidado ao reboco que aplicava nos muros simples de pedra.

Mas todas essas delicadezas, ordenadas à duração do edifício, em nada se comparavam àquelas reservadas à elaboração das emoções e vibrações na alma do futuro contemplador de sua obra” (6).

Notas

1A propósito ver LUZ, Vera. Ordem e origem em Lina Bo Bardi. São Paulo, Giostri, 2014.

2Ver texto de abertura de Marta Bogéa e descubra as correspondências.

3Bardi, Lina Bo: Ciclo de Depoimentos Arquitetura e Tecnologia, Arquitetura e Desenvolvimento Nacional. São Paulo: Editora Pini, 1979, p. 21. “A arquitetura moderna tinha um fim: a salvação do homem através da arquitetura. O Bauhaus foi a maior experiência nesse sentido. Muitos, entre vocês, talvez irão escolher o “industrial design”. Mas o que é hoje o “industrial design”? É a denúncia mais clara da perversidade de todo um sistema que é o sistema ocidental. A obsolescência da arquitetura, que hoje é clara, está marchando para a perda de metáforas. […] O Ocidente todo está tomando consciência disso. A grande tomada de consciência está em ação, mas existem problemas. Não existe solução imediata, porque esta é uma solução que depende de outro tipo de estrutura (não a da arquitetura), mas da necessidade de mudar, digamos, a paisagem”.

4FANUCCI, Francisco; FERRAZ, Marcelo. Brasil Arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2005. Neste livro a abertura é de Max Risselada e de João Filgueiras Lima, com textos críticos de Cecília Helena Rodrigues dos Santos e Vasco Caldeira.

5Trato desta questão em livro citado na nota 1.

6VALÉRY, Paul. Eupalinos ou O arquiteto. Prefácio de Joaquim Guedes. São Paulo, Editora 34, 1996, p. 37-39.


Resenhista

Vera Luz – Arquiteta (FAU Mackenzie, 1978), doutora (FAU USP, 2004), professora e pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da PUC-Campinas. Conselheira, membro da Comissão de Ensino e Formação  e Coordenadora da Comissão para Sistematização da Legislação Ambiental do CAU SP. Colaborou em projetos urbanos nos escritórios Joaquim Guedes e Ass., Urbe/Cândido Malta Campos Filho, co-autoria do projeto Ligação Leste-Oeste (EEP Mackenzie) e projetos certificados (AQUA-HQE) com a arquiteta Mirtes Luciani, três com pontuações máximas até hoje no Brasil (Programa e Concepção). Autora do livro Ordem e origem em Lina Bo Bardi (Giostri, 2014) e consultora técnica do Movimento Desmonte do Minhocão.


Referências desta Resenha

GUERRA, Abilio; FERRAZ, Marcos Grinspum; SANTOS, Silvana Romano (Orgs.). Brasil Arquitetura. Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz, projetos 2005-2020. São Paulo: Edições Sesc SP; Romano Guerra, 2020. Resenha de: LUZ, Vera. Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz: reconstruindo a paisagem. Uma utopia realizável. Resenha Online. São Paulo, n. 225, set. 2020. Acessar publicação original [DR]

 

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