Bram Stoker e a Questão Racial. Literatura de horror e degenerescência no final do século XIX | Evander Ruthieri da Silva

Proponho analisar o livro Bram Stoker e a Questão Racial. Literatura de horror e degenerescência no final do século XIX (2017), livro de estreia do jovem historiador Evander Ruthieri da Silva, e que teve como base sua dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Nele Ruthieri faz um trabalho primoroso de história social dos intelectuais, nos mostrando as redes de sociabilidade em que Bram Stoker circulava, a articulação entre seu projeto literário e o seu projeto intelectual.

Queremos com essa análise colocar em evidência essas categorias (redes de sociabilidade, circulação e projeto literário), apontando como hipótese o uso intuitivo delas, em outras palavras, evidencia que seu intento será ir além das simples verbalizações que dará novas possibilidades de ver o mundo literário. Gostaríamos de apontar nesse texto os caminhos escolhido pelo autor como uma possibilidade de pensar a história dos intelectuais a partir da relação autor-obra-leitor. Isto me permitirá, com mais liberdade, imaginar e compreender as formações discursivas que circulam nesse período, bem como aferir o movimento das categorias mencionadas acima.

Dito isso, não tomamos como estratégia de leitura seguir os capítulos do supracitado livro para que seja preservada a liberdade de leitura no interior da constituição de sua narrativa e reflexão. Queremos deixar claro que a o estilo resenhista desse texto não é ingênuo. Escolhemos essa forma para que consigamos dar conta da obra como um todo. Fica claro que entre as categorias que propomos evidenciar, a hipótese em que ancoramos nossa leitura e o estilo resenhista procuram seguir nas trilhas desenhadas pelo próprio autor, com alguns desvios, seu plano de escrita como apresentado no epílogo final do livro.

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A instabilidade do período recortado pelo autor nos apresenta um momento de aparição do espírito fin-de-siècle, um instante bastante sintomático dos medos e ansiedades do fim do século XIX, seja pela incerteza e oscilações no campo político e social, anarquia sexual e crise moral1 ou, como Weber2 descreveu, pelos modos de vida a partir da visão de seus próprios contemporâneos. O oitocentos alista essa condição de perplexidade com o mundo moderno, sem deixar-se lançar nas indeterminações do eventual declínio de padrões comportamentais de sua época. Eugene Weber (1989) nos conta que um “tribunal de Paris julgou um chantagista que vivia da prostituição da esposa, [e] teve de ouvi-lo explicar que ele não passava de ‘um marido fin de siècle’” 3. Aqui nos deparamos com a figuração decadentista do que seria a exemplaridade do chamado fin de siècle, ao que parece um dos principais promotores de estruturação do imaginário literário a partir daquilo que Luiz Costa Lima (1980) chamou de ficcionalização do real4.

Embora Evander Ruthieri não tenha ancorado seu trabalho nessa conceitualização que tem na mímesis dois níveis interrelacionados: o da semelhança e o da diferença, simultaneamente atualizados pelo leitor; trazemos aqui não como cobrança, mas como abertura possível que seu trabalho pode proporcionar. Ruthieri deixa evidenciado que para ele a narrativa literária é o lugar privilegiado da relação entre experiências concretas e suplemento imaginativo/criativo. Em outras palavras, seu trabalho tem nas fontes literárias importante espaço de interpretação do mundo social povoado por “ressignificações sensíveis do tempo vivido”5. Sua abordagem sociológica nos permite afirmar sua preocupação em construir um enredamento histórico-discursivo em que o diálogo história e literatura carregaria um estofo substancialmente social.

De imediato nos deparamos com o objetivo central do estudo, que, na palavras do autor, pretende “analisar a trajetória e produção literária-intelectual do romancista anglo-irlandês Bram Stoker (1847-1912), com ênfase no perscruto dos usos e apropriações dos ideais de degenerescência e das especulações em torno da questão racial em três romances: Drácula (1897), The Jewel of Seven Stars (1903) e The Lair of the White Worm (1910)” 6.

Em razão disso, seu capítulo de abertura desenha os primeiros traços da trajetória e das redes de sociabilidade em que se lança Bram Stoker. O literato estaria, portanto, sujeito a duas situações, (1) relativo a sua nacionalidade e (2) referido ao seu deslocamento para Londres como centro de cultura e sociabilidade. Dados biográficos nos levam a crer que há uma dimensão teleológica própria de biografias que descrevem o fim pelo início da vida do biografado. Sobre a relação de Bram Stoker com a literatura fantástica (ou de fantasia) sua frágil condição de saúde o impedia de estar de pé, no entanto, seu tempo era preenchido por histórias da tradição oral do folclore irlandês; o que no argumento de Ruthieri, as histórias “fundamentaram seu repertório cultural”7

É sabido que a relação entre a Irlanda e Inglaterra foi permeada por muitos conflitos de dimensão religiosa e política pelo menos desde o século XVII. A “grande fome” foi central para que se sublinhasse esse debate como consequência política. Ruthieri sutilmente aponta que a política do governo liberal inglês foi culpabilizado pela imprensa irlandesa pelo acirramento da catástrofe com graves implicações econômicas, demográficas e sociais8, pela sua ausência devido a sua política de não-intervenção estatal.

O que nos chama atenção, no entanto, nesse breve panorama da situação político-econômica irlandesa é a maneira como ele esculpe a tonalidade gótica do imaginário coletivo, apontado por Ruthieri como “repleto de fantasmas e espíritos”9. Permanece aqui uma urdidura narrativa que vai se delineando como uma ponte em que Stoker iria encontrar seu principal mote de composição. Em outras palavras, a experiência dos anos 1840 seria indispensável para pensar tanto sua situação formativa, enquanto sujeito que presentifica a atmosfera dessa experiência em si, como alguém que embebido dela se embriaga e transborda nas palavras a tradição folclórica de seu tempo. Assim podemos perceber que Ruthieri procura derruir esse complexo sistema de referências em que o intelectual irlandês estaria ancorado.

Compositivo desse sistema, e talvez a peça mais importante na pesquisa de Evander Ruthieri, são as marcas de cientificidade presentes na ficcionalização de Bram Stoker. Esse elemento, embora preponderante, tinha caráter intertextual (para não falar de influência) do sujeito leitor e do sujeito escritor. Isso quer dizer que a Europa ocidental por todo o século XIX foi o principal centro produtor e irradiador de pensamentos e de conhecimentos científicos e também da (aposta) aplicação desses conhecimentos em favor da Humanidade. Assim, o reconhecimento de uma metodologia (e de seus procedimentos) no avanço do conhecimento e a estreita vinculação da Ciência com a Técnica, gerariam um apavorante surto tecnológico, que, na segunda metade daquele século, seria responsável por profundas mudanças na sociedade e, por conseguinte, na maneira como os sujeitos se relacionam entre si e com o mundo.

No entanto, tanto Bram Stoker quanto Edgar Allan Poe (uma de suas principais “influências”)10, são exemplares dos intelectuais oitocentistas que tomam a medicina alienista e a antropologia criminal como sendo aquelas ciências que tratam de explicar a contingência. Elas, estranhamente, serão pilares do determinismo científico e principais formadores de uma “taxionomia degeneracionista”. Em vista disso, podemos identificar algumas orientações para um projeto literário que coaduna ciência e fantasia, conhecimento e cultura, consciência e sociedade. Em outras palavras, a escrita ficcional de Bram Stoker romperia com qualquer possibilidade de aleatoriedade, tendo assim instituído uma proposta de composição literária. Ou ainda, um projeto que segundo Gilberto Velho é “a conduta organizada para atingir finalidades específicas”11, portanto, antecipando a futura trajetória e biografia do sujeito. Nos parece notório que Stoker se utiliza da dimensão da memória, de forma a considerar a ação do presente, bem como suas significações impressas nos acontecimentos passados. No entanto, isso somente é realizável dentro do campo de possibilidades que se apresenta para o literato. Sobre essa categoria, Gilberto Velho explica que o campo de possibilidades seria um inventário de alternativas que se apresenta ao indivíduo no interior de processos sóciohistóricos12.

Evander Ruthieri é muito feliz ao permitir que o leitor acompanhe a viagem que Bram Stoker fez para Inglaterra. Sua relação com a companhia teatral londrina Lyceum Theatre, devido sua crítica elogiosa a Henry Irving no Dublin Evening Mail sobre sua apresentação da peça Hamlet, de William Shakespeare, evidência sua aproximação com as artes dráticas. De modo a nos mostrar quanto que a dimensão performativa é fundamental em seus romances. Essa relação incontinente com o teatro foi presente em sua vida desde a juventude quando assíduo espectador no Theatre Royale de Dublin. Entretanto, nos parece, que a consolidação de sua rede intelectual, para além do terreno dublinense, começa a se amplificar com fortalecimento de suas afinidades com Irving, permitindo com isso que fosse se aventurar nas terras da rainha.

De outro modo, chama atenção a aproximação de Stoker com Walt Whitman, apontada por Ruthieri a partir de sua audaciosa correspondência. Curiosamente, o trecho selecionado nos apresenta um jovem preocupado em agradar de alguma maneira seu ídolo, de modo a descrever qualidades que não estariam diretamente ligada ao seu talento literário, como: “Sou feio, mas forte e determinado e possuo uma larga testa sobre minhas sobrancelhas”13. Cômico, simpático, mas também sintomático do que o interessa como descrição antropológica e psicológica, e, portanto, de suas afinidades científicas. Por outro, lado é também curioso que suas primeiras incursões poéticas sejam pouco visitadas, levando em consideração seu entusiasmo com a métrica poeana. Dizemos isso, pois Stoker se deixa apagar como poeta, enquanto como romancista vocifera criações até hoje apreciadas.

Ao que tudo indica é em Londres que a arte literária de Bram Stoker começa a tomar forma e, quiçá, autonomia. Será nessa cidade cosmopolita que ela se deparou com romancistas e pesquisadores sociais que inseriam em sua composição uma textura urbana, turva, nebulosa e social. Um conjunto de novas experiências eram postas a mesa e oferecidas ao dublinense, que de bom grado degustou cada fração desse extraordinário mundo.

No entanto, seu espaço de sociabilidade se circunscreve ao Beefsteake Room, um salão anexo do Lyceum Theatre para entreter convidados em jantares que congregam pessoas do mundo artístico, político e intelectual. Desses frequentadores destacamos William Ewart Gladstone, líder do Partido Liberal, que, ao circular entre os convidados mais assíduos, estabeleceu uma relação de interesse político com Stoker. Evander Ruthieri parece preocupado em não deixar escapar a relação de afetividade que Stoker mantinha com sua terra natal, ainda que fosse estimulado a práticas “cortesãs” para ser inserido no espaço dos estabelecidos14.

É muito interessante como Ruthieri foi mapeando os principais nomes que tiveram contato com Stoker compondo essa urdidura de sociabilidade. Entre eles Henry Morton Staney, Richard Burton, Conan Doyle, Hall Cayne entre outros. Seu trabalho no Lyceum possibilitou circular tanto por Londres como pela América do Norte. Este último nos parece não ter grande destaque no trabalho de Evander Ruthieri por estar interessado na “simbiose entre vivência e escrita”15 no terreno londrino. Ao que tudo indica, e o autor deixa isso bem claro, sua pesquisa se orientou em cercar a tríade política, raça e nação com os cordões da tessitura literária de Stoker. Afinal, este mote compunha a tecelagem criativa de Stoker.

Nesse sentido, os romances são como chaves que abrem portas temáticas que estão internamente ligadas. O tema da degenerescência é evidentemente o mais sublinhado e desenvolvido, seja em sua dimensão social, científica ou literária. Devemos apontar, entretanto, que em alguns momentos a extensão das discussões sobre degenerescência carregaram um semblante de “tratadística”. Sem sombra de dúvidas, uma pesquisa de fôlego sobre os caminhos que os discursos científicos acerca da degenerescência e seus desdobramentos reverberaram sobre o discurso literário.

A amostra mais específica dessa intenção aberta, está na sua análise sobre as monstruosidades femininas na literatura de Stoker: dois longos capítulos empreendidos nesse tema. Fica claro que a finalidade dessa discussão tem como centro a “Questão da Mulher” – suas mazelas e conquistas em um mundo regimentado pelo discurso científico, que afirmam sua fragilidade, sua inferioridade e o seu lugar no mundo. Não obstante a esses aspectos da história e da vida das mulheres na Londres finessecular, a literatura da época, o caso de Bram Stoker, apresenta “deformações” naturalizadas pela ciência, ao contrário do homem que era de modo geral partícipe do domínio da cultura, da ação e do pensamento.

Afirmasse assim o que Evander Ruthieri vem chamado de “cultura da degenerescência” desde seu segundo capítulo, onde se debruça com mais cuidado nos romances escolhidos. Do nosso ponto de vista, ele escapa do discurso literário ora na condição de explicação, ora na condição de exemplificação. Próprio da metodologia sociológica é se preocupar com o entorno, por uma prática em geral bastante obcecada por critérios de verificabilidade. Ou seja, o teor qualitativo de seu trabalho nos permite saltos para possibilidades que ultrapassam o reflexo, direcionando o leitor para algumas formas de refrações e reflexões.

Ao fim e ao cabo, sua afirmação corrobora suas inquietações quanto a categoria de “cultura da degenerescência”: “A literatura, gestada e publicada no fin-de-siècle, rapidamente mobilizou, relativizou e ressignificou a retórica da degenerescência em uma profusão de perfis criminosos ou monstruosos”16 que encontravam também seus correspondentes raciais no sangue e na miscigenação.

Ao inserir Bram Stoker em um cenário político conturbado, em uma rede de sociabilidade abrangente, mas substancialmente política, o autor deliberadamente ancora sua produção nas questões sociais, políticas e culturais, que de alguma maneira permitiram criar personagens que figurassem o espírito decadente inclinado a tormenta, a insônia e ao sabor do medo. É incontestável que a literatura doméstica, a literatura moral passaram a dividir espaço com essa literatura de mistério, de fantasia e horror. Diz-se que a literatura de horror teria elementos essencialmente da natureza psicológica que o sobrenatural não teria lugar em sua trama, mas em Stoker isso não é uma certeza.

Ao incluir elementos científicos, folclóricos e sociais, fica explícito uma dimensão moral, bem mais pujante que sua dimensão especificamente estética à apreensão e ao estremecem do corpo do leitor que é quase secundário; sua responsabilidade na narrativa estaria com a ordem da cotidianidade, do mundo que se organiza de uma forma desconjuntada, tributária da novidade do mundo moderno.

Evander Ruthieri é bastante convincente em sua pesquisa, com uma escrita afinada introduz o leitor nesse mundo vitoriano sem perder de vista a base de seu trabalho: “Esse movimento de circulação entre o mundo social e as ficções visa cercar os rastros de sensibilidades urbanas, os traços de imaginário social e os indícios da circularidade cultural entre a literatura de Stoker e os desdobramentos da noção de degenerescência e das variações raciais no final do século XIX”17

A multiplicidade de campos em que esse trabalho se insere, por si só, daria notoriedade a sua temática. Seja no campo da história dos intelectuais, na história política, na história social da ciência ou ainda na história social da literatura, sua grandeza está na acessibilidade, na riqueza da pesquisa e no folego empreendido por um jovem e promissor pesquisador.

Notas

1 SILVA, Evander Ruthieri da. Bram Stoker e a Questão Racial. Literatura de horror e degenerescência no final do século XIX. Curitiba: Editora Prisma. 2017. p. 19.

2 WEBER, Eugene. França fín-de-siècle. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.19.

3 WEBER, Eugen. Op. Cit.. p.19.

4 LIMA, Luiz Costa. Mimesis e modernidade: formas das sombras. Rio de Janeiro: Graal, 1980.

5 SILVA, Evander Ruthieri da. Op. Cit. p.20.

6 Idem.

7 SILVA, Evander Ruthieri da. Op. Cit.. p.45.

8 Idem

9 Idem p.47.

10 LIMA, Edson Silva de. Um sonho dentro de um sonho ou o novo mundo dentro de outro mundo: a nação norte americana no laboratório de Edgar Allan Poe. 2017. 147 f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em História) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

11 VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas (3a ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.101.

12 Idem. p. 28.

13 SILVA, Evander Ruthieri da. Op. Cit.. p.57.

14 ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

15SILVA, Evander Ruthieri da. Op. Cit, p.330.

16 SILVA, Evander Ruthieri da. Bram Stoker e a Questão Racial. Literatura de horror e degenerescência no final do século XIX. Curitiba: Editora Prisma. 2017, p.168.

17 SILVA, Evander Ruthieri da. Op. Cit. p.169.


Resenhista

Edson Silva de Lima – Doutorando em história social – UNIRIO. E-mail: edsonhistoriauerj@gmail.com


Referências desta Resenha

SILVA, Evander Ruthieri da. Bram Stoker e a Questão Racial. Literatura de horror e degenerescência no final do século XIX. Curitiba: Editora Prisma, 2017. Resenha de: LIMA, Edson Silva de. Bram Stoker e a história dos intelectuais: “eu acho divertido deixar as pessoas que não gosto conhecerem meu lado ruim”. Faces de Clio. Juiz de Fora, v. 5, n. 9, p.185-192, jan./jul. 2019. Acessar publicação original [DR]

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