Bolsonaro. La democracia de Brasil en peligro | Ariel Goldstein
Ariel Goldstein é um professor e pesquisador argentino que dedica sua vida acadêmica ao estudo da política e da sociedade brasileira. No início de 2019, poucos meses após Jair Bolsonaro ser eleito presidente do Brasil, Goldstein publicou o livro Bolsonaro. La democracia de Brasil en peligro2. De forma astuciosa, o autor soube aproveitar uma circunstância política que para muitos era inesperada e produziu aquela que foi a primeira análise consistente sobre o novo presidente brasileiro publicada em alguma língua que não a portuguesa. Nas próximas linhas, apresentaremos o referido livro e os principais argumentos nele desenvolvidos.
Um argentino lançando um livro sobre um novo presidente brasileiro, meses após este ter sido eleito, poderia ser um empreitada extremamente artificial e de resultados superficiais, mas não é o caso aqui interpelado. A primeira qualidade perceptível no trabalho de Goldstein é a sua intimidade com a política, a história e as dinâmicas sociais do país analisado. Ao olhar para os artigos, livros e reportagens citados no livro, é fácil reparar que o autor há muito está em contato com os eventos políticos brasileiros, dos mais ordinários aos mais excepcionais. Ademais, nota-se que Goldstein mantem uma relação de proximidade não só com o dia-a-dia da política brasileira, mas também com os mais destacados debates acadêmicos que abordam tal temática.
A segunda qualidade a ser destacada no livro de Goldstein é a capacidade do autor produzir uma obra fundamentalmente analítica, sem, ao mesmo tempo, ser politicamente orientada ou pretensamente neutra. Em tempos de extremismo e polarização política, muito intelectuais engajaram-se em projetos politicamente orientados, o que não tem nada de condenável, no entanto essa não era a intenção do autor. A proposta assumida e cumprida por Goldstein era produzir uma análise que lograsse explicar a ascensão de um personagem que é, ao mesmo tempo, relativamente estranho às tradições político-institucionais do mais recente período democrático e profundamente conectado com uma forte dimensão do Brasil que muitas vezes os próprios brasileiros recusam-se a enxergar: um país desigual, conservador, preconceituoso, que rejeita encarar de frente o seu passado. Por outro lado, afirmar que a proposta do autor é estritamente analítica não significa que haja algum tipo de neutralidade. Goldstein deixa explícito, por exemplo, que considera Bolsonaro uma ameaça à democracia no Brasil, que a atuação do juiz Sérgio Moro durante a Operação Lava-Jato foi parcial e que a fronteira traçada por Bolsonaro entre os seus apoiadores e a esquerda é uma típica prática fascista.
A terceira e última qualidade a ser destacada antes de adentrar propriamente no conteúdo da obra é a capacidade do autor de explicar o fenômeno Bolsonaro a partir de uma visão histórico processual, isto é, observar o evento a partir de suas conexões com o desenvolvimento contingente de um encadeamento de acontecimentos que são relacionados, mas não necessariamente de forma causal. Outrossim, é mister sublinhar que, ao contrário de boa parte das análises produzidas pelos cientistas políticos, Goldstein não resume suas observações ao andar de cima, ou seja, às instituições. A mirada empreendida pelo autor leva em conta as dimensões social e cultural, assim como a política institucional stricto sensu.
Já no segundo capítulo, a referida visão histórico processual se manifesta. Após Goldstein começar o livro com uma breve introdução sobre os governos petistas, ele aponta as manifestações de junho de 2013, as assim chamadas Jornadas de Junho, como um momento inflexão política no Brasil. Fugindo do senso comum das análises rasas que indicam uma relação direta entre as Jornadas de Junho e a destituição da presidenta Dilma Rousseff, o autor busca apresentar aquele ciclo de protestos como um evento múltiplo que, entre outras variadas consequências, abrindo uma janela de oportunidades para o crescimento de movimentos sociais de direita, uma novidade no cenário político brasileiro. Sua única falta, no entanto, foi resumir as motivações dos protestos a um processo de frustração de expectativas, o que não é falso, porém é insuficiente, uma vez que o caráter heterogêneo das Jornadas de Junho demandam explicações mais variadas.
Dando sequência a narrativa do processo que culminou na eleição de Jair Bolsonaro para presidente do Brasil, Goldstein analisa a destituição de Dilma Rousseff através de três chaves. A primeira, de caráter social, apresenta a polarização resultante das eleições de 2014. Entre outras motivações, Goldstein aponta que o não reconhecimento explícito do resultado por parte da candidatura derrotada e os ataques proferidos pelos grandes meios de comunicação à Rousseff como alguns dos catalisadores da referida polarização. A segunda chave, de caráter institucional, apresenta a eleição de um congresso majoritariamente conservador e a batalha da ex-presidenta contra Eduardo Cunha como elementos que alteraram a correlação de forças no Poder Legislativo de maneira drástica, tornando mais complicada a já laboriosa manutenção da governabilidade. A terceira chave, de caráter ideológico, aponta a Operação Lava-Jato como ferramenta de construção discursiva de uma associação direta entre o Partido dos Trabalhadores e a corrupção. Neste ponto, habilmente, Goldstein não se ocupa de afirmar ou negar a corrupção nos governos petistas, mas trata de demonstrar como historicamente, na América Latina, o tema da corrupção é utilizado para atacar governos de esquerda e centro-esquerda e, como no recente caso brasileiro, tal ataque acabou por transbordar os limites de um partido especifico e acabar por atingir, em maior ou menor grau, boa parte da classe política. Por fim, ele observa o caráter nada imparcial da atuação do juiz Sérgio Moro e como a referida operação criou condições para que futuramente um político marginal pudesse assumir o papel de salvador da nação frente ao desprestígio que assolava os políticos tradicionais.
Após analisar a destituição de Rousseff, Goldstein lança luz sobre o breve governo Temer. Segundo o autor, tal governo foi marcado, do ponto de vista político, pela debilidade causada pelos sucessivos escândalos de corrupção, o que consolidou e aprofundou o desencantamento com a classe política. Já do ponto de vista econômico, o governo Temer significou os primeiros passos no desmantelamento do que Goldstein afirma ser um desenvolvimentismo estatal praticado desde a era Vargas. Naquele momento, segundo o autor, já havia um evidente giro autoritário à direita manifesto na política externa, na intervenção militar no estado do Rio de Janeiro e na prisão de Lula.
Já quase na metade do livro, Goldstein começa a dedicar-se à explicação do fenômeno Bolsonaro. Ao contrário daqueles que viram um certo grau de espontaneidade na candidatura do atual presidente brasileiro, o autor demonstra que tal movimento político contou com uma nada desprezível articulação alicerçada em quatro núcleos. O primeiro deles é o núcleo econômico ultraliberal, representado pela figura do economista e Chicago boy, Paulo Guedes, cujo papel era acenar para o povo do mercado (Marktvolk) e conquistar o apoio de empresários, acionistas e todo tipo de especuladores. O segundo núcleo é o militar, representado pelas figuras do general Hamilton Mourão, que tornou-se vice-presidente, e do general Augusto Heleno, que tornou-se ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. Goldstein chama atenção para o fato do tipo de transição à democracia ocorrida no Brasil, nos anos 1980, manteve um certo grau de prestígio conferido às forças armadas. Isso porque, ao contrário do caso argentino, citado pelo autor, no Brasil não houve um processo de julgamento dos crimes cometidos pelos militares quando ocuparam ilegitimamente o governo. O terceiro núcleo é o ruralista. Goldstein recorda que os latifundiários brasileiros possuem uma extensa representação parlamentar e são um grupo econômico e social historicamente organizado em defesa da propriedade privada e contra qualquer movimento social ou política pública que pleiteie democratizar o acesso à terra. Por fim, o quarto e último núcleo que sustentou a ascensão de Bolsonaro é o evangélico. Goldstein nota que, em uma sociedade bastante religiosa e na qual, cada vez mais, os evangélicos se tornam figuras proeminentes na política institucional, Bolsonaro cercou-se de pastores e associou sua agenda individualista e conservadora à crescente teologia da prosperidade propagada por essas igrejas.
Observando o processo eleitoral de 2018, Goldstein atenta para algumas especificidades dele em relação os anteriores. A maior delas, sem dúvida, foi a facada que o candidato Jair Bolsonaro recebeu em um ato público, na cidade de Juiz de Fora, obra de um individuo com evidentes transtornos mentais. De acordo com o autor, o atentado transformou Bolsonaro em vítima, deu ao candidato visibilidade nos grandes meios de comunicação e permitiu que ele escapasse dos tradicionais debates eleitorais, espaços nos quais jamais pôde se destacar tendo em vista que não é um bom orador e não está acostumado a ambiente não hierarquizados. Outra especificidade destacada pelo autor foi o chamado voto de castigo, aplicado aos principais representantes da classe política e fruto do aqui já citado descontentamento geral com o sistema político. A terceira e última especificidade apontada pelo autor foi a reação feminista às seguidas e violentas declarações misóginas feitas por Bolsonaro. Mulheres, jovens e defensores dos direitos humanos se reuniram nas redes sociais e nas ruas em torno da hashtag #EleNão. Como reflexo da polarização social vigente, uma contra-reação surgiu com os apoiadores de Bolsonaro se reunindo em torno da hashtag #EleSim e defendendo as ideias machistas e conservadoras defendidas pelo seu candidato.
A relação entre comunicação e política transpassa a carreira acadêmica de Goldstein e no livro aqui resenhado não foi diferente. O autor oferece especial atenção às estratégias de comunicação política, discutindo as possibilidades e limites das redes sociais – em especial o Whatsapp -, o peso que teve a difusão de notícias falsas, a mobilização do que chamou de um “pânico moral” e, por fim, o discurso produzido pelos grandes meios de comunicação, que apresentaram os petistas e Bolsonaro como dois extremos equivalentes. O autor, portanto, conclui que a eleição presidencial de 2018 foi efetivamente marcada pelo emprego das novas formas de comunicação.
Goldstein também se preocupou em ampliar o enfoque da sua análise e, por conseguinte, tratou de localizar o fenômeno Bolsonaro dentro do cenário político internacional. O autor argumenta que o presidente brasileiro pode ser perfeitamente enquadrado como parte da nova onda populista de extrema-direita que desabrochou, nos últimos anos, em diversos países. Goldstein cita nominalmente alguns líderes da extrema-direita europeia e estadunidense para compará-los com Bolsonaro e salientar algumas características compartilhadas entre eles. São elas: a reconstrução idealizada de um passado, a construção de um discurso que explique a decadência atual e a tradicional polarização schmittiana entre amigo e inimigo, o que possibilita a manutenção de uma base de seguidores fieis. O autor também engendra uma comparação entre Donald Trump e Jair Bolsonaro, argumentando que este apresenta um maior risco ao regime democrático, uma vez que as instituições brasileiras (meios de comunicação, Poder Judiciário e Poder Legislativo) são menos autônomas e possuem um menor contrapeso em relação às suas equivalentes nos EUA.
Por fim, Goldstein apresenta um prognóstico do que ele acredita que será o governo Bolsonaro. Em primeiro lugar, o autor assinala que haverá um forte alinhamento com os EUA na política externa. Em segundo lugar, ele observa que a a agenda do novo governo será pautada por uma associação entre neoliberalismo e neo-autoritarismo. Finalmente, ele atenta para o fato do surgimento de uma nova elite política fortemente apoiada nas bancadas parlamentares da bala, da bíblia e do boi, que não são exatamente novas, mas que saíram das sombras, chegaram ao poder e descararam-se, por assim dizer.
Em suma, Goldstein apresentou o cenário de crise política, econômica e social a partir do qual Bolsonaro soube projetar-se, instrumentalizando o microfascismo popular, a descrença quase geral em relação à classe política e o surgimento de novas formas de comunicação de massas. O ponto central que, do início ao fim, permeia a sua argumentação é que, apesar de Bolsonaro ter sido democraticamente eleito, sua ascensão representa um perigo para o regime democrático, seja porque o próprio processo eleitoral foi contaminado pela disseminação de notícias falsas e pela atuação parcial do Poder Judiciário, seja porque a forma e o conteúdo da sua política não condiz com os fundamentos básicos de uma democracia liberal. Para justificar tal argumento, o autor salienta que o temerário amálgama de instituições enfraquecidas, elites tecnocráticas, discurso salvacionista, polarização social, desrespeito à laicidade do Estado, desprezo pelos Direitos Humanos e idealização dos opositores como inimigos constitui um nada desdenhável processo político e social que pode acabar por esvaziar de conteúdo o regime liberal-democrático ainda vigente no Brasil.
Nota
2 GOLDSTEIN, Ariel. Bolsonaro. La democracia de Brasil en peligro. Buenos Aires: Marea Editorial, 2019
Resenhista
Rafael Rezende – Doutorando e mestre em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio De Janeiro (IESP-UERJ). Pesquisador do Núcleo de Teoria Social e América Latina (NETSAL). Bolsista do Programa Bolsa Nota 10 da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). E=mail: rafaelrezende@iesp.uerj.br https://orcid.org/0000-0001-5082-7186
Referências desta Resenha
GOLDSTEIN, Ariel. Bolsonaro. La democracia de Brasil en peligro. Buenos Aires: Marea Editorial, 2019. Resenha de: REZENDE, Rafael. O fenômeno Bolsonaro e a democracia brasileira. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.25, n.2, p. 340-345, 2019. Acessar publicação original [DR]