Biselli Katchborian Arquitetos | Francesco Perrotta-Bosch
“O arquiteto que se proponha acertar o passo com a tecnologia sabe agora que terá a seu lado uma companheira rápida e que, a fim de manter o ritmo, pode ser que ele tenha de seguir os futuristas e deixar de lado toda sua carga cultural, inclusive a indumentária profissional pela qual ele é reconhecido como arquiteto”.
Reyner Banham
Eles encontram coerência na correlação entre a nave espacial Mars Pathfinder e a cúpula que Brunelleschi projetou para a Catedral de Santa Maria del Fiore. O avião britânico Supermarine Spitfire é associado às caravelas Santa Maria, Pinta e Nina. De algum modo, a dupla conserva o espanto do ser do século 19 que testemunhou a invenção da lâmpada elétrica e do homem do século 20 que viu a força das reações nucleares. A admiração pelo funcionamento das máquinas revela-se quando uma parede é metaforicamente descrita como uma fuselagem, e as engrenagens de um motor subsidiam o vocabulário da operação de um aeroporto. A chave para a compreensão da obra arquitetônica de Mario Biselli e Artur Katchborian está no que os fascina.
Tanto na construção em si quanto na retórica, a técnica emerge nos projetos de Biselli Katchborian pelo viés da fantasia e do deslumbramento. Para o duo, a tecnologia é aquilo que proporciona o inacreditável: permitindo o ser humano atravessar um oceano no século 15, ir ao espaço e pisar na lua no século 20, e estar a um passo de Marte no século 21. A técnica faz com que a mais pesada das rochas se mova. O mais leve dos tecidos nos ampare. O mais monumental dos veículos voe, levando-nos consigo.
A interlocução e a convivência com Mario Biselli e Artur Katchborian demonstraram-me o pleno maravilhamento com que reverenciam as máquinas e a engenhosidade humana. Nisso a dupla guarda para si um pedaço da infância e – concomitante e paradoxalmente – alicerceia um profundo pragmatismo de índole científica em seus projetos arquitetônicos.
Pode parecer um par antitético, mas é nele que se encontram o encanto pelas descobertas, o desejo pela novidade, a busca pelas criações. Às vezes nos esquecemos, mas fábula e invenção podem ser sinônimos. A mais prática das decisões e o mais objetivo dos discursos contêm sedução.
Tais atributos conferem a Biselli Katchborian a possibilidade de conceber projetos cujo caráter emana da ênfase na estrutura e nas instalações técnicas, como nas propostas para a Casa Experimental Morar na Metrópole e para o Terminal 3 do Aeroporto de Guarulhos.
Os sócios fundadores do escritório paulistano formaram-se tendo em seu imaginário a Walking City do Archigram, as Dymaxion de Buckminster Fuller, as casas-nave-satélite de Jan Kaplický, membro do Future Systems. E o que poderia parecer quimérico materializava-se nos projetos de Renzo Piano, Richard Rogers e Norman Foster. Isto é, em sua origem, o farol da dupla é o que se convencionou chamar de high tech.
Não se pode perder de vista que esses últimos três arquitetos europeus citados também se distinguem pelo modo de funcionamento de suas atividades: a lógica do office – o grande escritório organizado objetivamente, em prol da produtividade e do uso mais avançado e racional da tecnologia, o que acaba por ser o oposto do caráter artístico e subjetivo do ateliê de arquitetura. Em virtude desse viés que Biselli Katchborian montaram uma empresa capaz de projetar um complexo habitacional do tamanho da Julio Prestes, executado em tempo recorde no Brasil atual.
Espero que o leitor deste livro também note outra característica de Mario Biselli, Artur Katchborian e sua equipe: a erudição. Em cada um de seus projetos há uma série de referências, de certo modo, claras, porém depuradas no desenho. Não é raro que decisões projetuais sejam atravessadas por lembranças afetivas, especialmente familiares, dos arquitetos. O italianismo atávico de Biselli atrai alusões compositivas de Andrea Palladio. Os parâmetros de leitura das formas e espaços arquitetônicos são, recorrentemente, a proporção e a simetria, tal como seria para um renascentista florentino. O interesse pelas tipologias é rapidamente associável às pesquisas de Aldo Rossi, mas o doutorado de Biselli revela que sua referência data de mais de um século antes: Jean-Nicolas-Louis Durand, em seus manuais, sistematiza o repertório de elementos arquitetônicos para uma edificação clássica, mostrando como eles podem ser dispostos a partir de critérios funcionais e construtivos. A ideia de sistematizar tipologicamente ainda é relevante – e importante para compreender o conjunto da obra de Biselli Katchborian.
Portanto, a tradição – em especial, os preceitos do classicismo – e a tecnologia – a velocidade das máquinas do século 20 – não se contrapõem. Não há conflito. Há sim a complementariedade. Há conciliação.
Se constatará isso na leitura deste livro a partir do perfil “Antes e depois do concurso”, que a jornalista Michele Oliveira escreveu sobre Mario Biselli e Artur Katchborian. Em seguida, o compromisso público e a dimensão urbana da obra do escritório paulistano são esmiuçados no artigo “A presença da arquitetura nos programas públicos de habitação”, de Elisabete França. Por sua vez, a aula “História da Arquitetura enquanto História da Técnica”, de Mario Biselli, é tanto uma rica e particular leitura da cronologia da evolução arquitetônica por meio dos marcos da evolução tecnológica, quanto o mais explícito modo de apresentação das referências do escritório. O texto dessa aula nos dá os subsídios para a análise e apreciação das mais de quatro dezenas de projetos apresentados em seguida.
Com obras construídas e não construídas, os projetos são organizados de modo não cronológico, mas seguem critérios que mesclam tanto a tipologia e a escala projetual quanto uma leitura subjetiva da gradação crescente da relevância do raciocínio tecnológico nos partidos arquitetônicos. A seleção de imagens e o projeto gráfico couberam à Luciana Mattar, enquanto os textos são de minha autoria. Selecionamos dez projetos centrais no portfólio de Biselli Katchborian para serem apresentados de modo detalhado, com ensaios mais aprofundados, mais desenhos e mais imagens.
O objetivo é desvelar a essência dos projetos de Mario Biselli e Artur Katchborian. Demonstrar os processos de decisão de cada proposta arquitetônica. Relatar as histórias das edificações: como as demandas dos clientes foram respondidas ou subvertidas, como os empreiteiros acabam por balizar características construtivas das edificações, como os concursos são momentos de experimentações.
Uma obra arquitetônica relevante é produto do modo como o imaginário do autor resiste às trivialidades e limitações da manutenção de um escritório no mundo. A admiração pela técnica é o cerne daquilo que provê um caráter especial ao trabalho de Biselli Katchborian. O olhar afetuoso para com as máquinas e seu movimento permite que um insuspeito encanto seja encontrado em meio ao pragmatismo. Assim, os dois arquitetos operam como equilibristas sobre uma corda que liga o engenho à fantasia.
Resenhista
Francesco Perrotta-Bosch – Arquiteto, ensaísta e curador. É arquiteto (PUC-Rio), mestre e doutorando em arquitetura (FAU USP). Foi curador das exposições Irradiações – Fabio Penteado (Casa da Arquitectura, Matosinhos, Portugal, 2019), curador adjunto das exposições Lutar. Ocupar. Resistir e Conjunto habitacional (Studio X, laboratório urbano da Universidade de Columbia no Rio de Janeiro, 2016 e 2017), e curador assistente do pavilhão brasileiro da Bienal de Arquitetura de Veneza, em 2016. Organizador do livro Biselli Katchborian (Acacia Cultural, 2019) e coautor do livro Entre – entrevistas com arquitetos por estudantes de arquitetura (Viana & Mosley, 2012). Atualmente escreve para a Folha de S. Paulo e membro do júri de arquitetura da Associação Paulista de Críticos de Arte – APCA.
Referências desta Resenha
PERROTTA-BOSCH, Francesco (Org.). Biselli Katchborian Arquitetos. Textos de Elisabete França, Francesco Perrotta-Bosch, Mario Biselli e Michele Oliveira. São Paulo: Acácia Cultural, 2019. Resenha de: PERROTTA-BOSCH, Francesco. Os equilibristas. O fascínio tecnológico de Mario Biselli e Artur Katchborian. Resenha Online. São Paulo, n. 211, jul. 2019. Acessar publicação original [DR]