MAYR, Ernst. Biologia, ciência única: reflexões sobre a autonomia de uma disciplina científica. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Prefácio de Drauzio Varella. Tradução de Marcelo Leite. Resenha de: FONSECA, Alexandre Torres. Varia História, Belo Horizonte, v.22, n.36, p. 574-576, jul./dez., 2006.
As contribuições feitas por Ernst Mayr à biologia evolucionária o colocariam certamente em qualquer lista dos maiores biólogos evolucionários do século XX. Edward Wilson e Stephen Jay Gould, colegas de Mayr em Harward, chegam a colocá-lo como o maior biólogo de todos os tempos. Mas as realizações de Mayr se estenderam para além da biologia. Além de seus trabalhos de divulgação da história natural e da evolução, ele também escreveu sobre a história e a filosofia da ciência, especialmente da biologia.
Se levarmos em consideração o volume, a abrangência e a profundidade do trabalho de Ernst Mayr, ele ocupa um lugar único no desenvolvimento da biologia evolucionária no século XX. E, para entendermos adequadamente este desenvolvimento, nós precisamos entender seu trabalho. E é exatamente isso que Biologia, ciência única nos permite. A cuidadosa edição da Companhia das Letras, com tradução de Marcelo Leite, transforma Biologia, ciência única: reflexões sobre a autonomia de uma disciplina científica (2005) em um livro indispensável tanto para historiadores da ciência quanto para os historiadores ambientais, e, naturalmente, também para os biólogos.
Mayr, que morreu em fevereiro de 2005 com cem anos, começou seus estudos em medicina, mudando depois para a biologia. Publicou seu primeiro paper aos dezenove anos, em 1923; tornou-se Ph.D. com 22 anos pela Universidade Humboldt em Berlim. Publicou quase 700 papers e 25 livros, dos quais o último é Biologia, ciência única, que é, segundo ele, uma versão revisada e mais madura de seus pensamentos.
Mayr, ao mudar-se para os Estados Unidos em 1931, considerava-se um ornitologista. Durante sua vida deu nome a 26 espécies e a 473 subespécies novas de pássaros, publicou cerca de 300 artigos discutindo e descrevendo a variação geográfica e a distribuição dos pássaros. Como muitos de seus contemporâneos acreditava na herança lamarkiana até se tornar amigo e interlocutor de Theodosius Dobzhansky, o qual vai exercer grande influência no pensamento de Mayr. Desse encontro surgirá a Moderna Síntese evolucionária.
A teoria evolutiva moderna surgiu entre 1936 e 1947, com a Síntese Evolucionária ou Síntese moderna. Este termo foi introduzido por Julian Huxley no livro Evolution: The Modern Synthesis, em 1942. Esta síntese é reunião da teoria de Darwin com a genética e as contribuições da sistemática e da paleontologia. Este processo começou com R. A. Fisher, J. B. S. Haldane e Sewall Wright. Alguns anos mais tarde, o paleontólogo George Gaylord Simpson, o biólogo Ernst Mayr e o geneticista Theodosius Dobzhansky irão alargar o paradigma neodarwinista. E da união entre o darwinismo e a genética nascerá o neodarwinismo.
O termo neodarwinismo ou teoria neodarwinista é usado correntemente como sinônimo de Síntese Moderna por quase todos os biólogos evolucionários, como por exemplo, Dennett, Gould, Futuyma e Dawkins. É neste sentido que este termo é usado neste artigo. Ernst Mayr, embora tenha usado neodarwinismo com esse sentido, mudou de idéia em Biologia, ciência única (2005). Por isso, a importância deste livro. Fica claro que a promessa feita na introdução do livro, de apresentar uma versão revisada e mais madura de seu pensamento, é realizada.
Neste livro (capítulo 7, Maturação do darwinsimo), ele diz que é um equívoco chamar de neodarwinismo à versão do darwinismo desenvolvida nos anos 1940, porque Romanes já havia usado este termo, em 1894, para qualificar o “paradigma darwiniano sem a hereditariedade leve [soft inheritance] (isto é, sem a crença na herança de características adquiridas)” (2005, p. 147). Na sua nova maneira de pensar, a teoria sintética da evolução, o “produto da síntese das teorias dos estudiosos da anagênese e da cladogênese” (p. 147), deveria ser chamada simplesmente de darwinismo, pois se trata
em essência, da teoria original de Darwin com uma teoria válida de especiação e sem a hereditariedade leve. Como essa forma de hereditariedade foi refutada mais de cem anos atrás, não pode haver equívoco na retomada do simples termo “darwinismo”, porque ele engloba os aspectos essenciais do conceito original de Darwin. Em particular, refere-se à inter-relação entre variação e seleção, o cerne do paradigma de Darwin, e confirma que é melhor referir-se ao paradigma evolucionista, após um longo período de maturação, simplesmente como darwinismo (p. 147).
Outro exemplo é a discussão sobre o que constitui uma espécie (capítulo 10, Um outro olhar sobre o problema da espécie). O conceito de espécie defendido por Mayr é ao mesmo tempo sua mais conhecida contribuição para o estudo da biologia, e o motivo pelo qual a maioria dos biólogos, hoje em dia, discordam da visão de espécie de Darwin. Neste capítulo ele critica o conceito de espécie dos “taxonomistas de poltrona”.
Mayr também descreve as causas que o levam a considerar a biologia uma ciência única, autônoma, com vários conceitos ou princípios específicos, necessitando, por isso, de uma filosofia da biologia específica, que difere de filosofia da ciência, segundo ele, mais ligada à física. No capítulo 9, As revoluções científicas de Thomas Kuhn acontecem mesmo?, discute as idéias de Kuhn sobre revolução científica e paradigma, chegando à conclusão que esta não é uma boa teoria para a biologia. Mayr considera que “as descrições da epistemologia evolucionista darwiniana parecem captar melhor a mudança em teoria em biologia” (p. 184), fazendo uma clara opção por esta última.
Ernst Mayr é importante para a história da biologia e para o pensamento biológico por ter sido tanto um participante ativo da história na criação da Moderna Síntese quanto por sua significativa obra reflexiva sobre a filosofia da biologia. Nos últimos vinte anos de sua vida, ele se dedicou mais à história e à filosofia da biologia. Seu grande trabalho nesta área é The growth of Biological thought, de 1982, um tour de force de 974 páginas, que demorou dez anos para ser concluído. Havia a promessa de um segundo volume que não se realizou. Além disso, ele influenciou consideravelmente três ou quatro gerações de biólogos. Mayr diz que “por toda a biologia há numerosas controvérsias não resolvidas, e que ele não era otimista a ponto de acreditar que [ele tivesse] resolvido todas (ou mesmo a maioria)” (p. 13-14) delas. E o desafio que ele propõe aos jovens pesquisadores evolucionistas é ir em busca tanto das questões não respondidas quanto, e isso é o mais importante, de questões não formuladas. Com certeza, Biologia, ciência única é um bom começo.
Alexandre Torres Fonseca – Doutorando em Ciência e Cultura na História. UFMG. E-mail: atfonseca11@gmail.com
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