Biografias e Trajetórias: vidas por escrito / Escritas do Tempo / 2020
Escritas biográficas e trajetórias: desafios no campo historiográfico
A biografia deixou de ser um pária no campo do conhecimento histórico acadêmico. Depois de vários anos de desdém pelo gênero, por parte das correntes dominantes da historiografia científica, hoje assistimos a uma proliferação de livros, artigos, teses de doutorado, dissertações de mestrado e trabalhos de conclusão de cursos de graduação na área de História que se voltam para a análise ou a construção de biografias. Obviamente, essa popularização de estudos biográficos aponta para importantes desafios e questionamentos que exigem nossa atenção: o que constitui uma biografia histórica? Que problemas teóricos, metodológicos, historiográficos e éticos as pesquisas biográficas ajudam (ou não) a resolver? Em quais âmbitos a investigação biográfica dá sinais de saturação e quais demandam mais investimentos?
De modo geral, verificamos que os principais caminhos trilhados pelos estudos biográficos, levados a cabo por profissionais de História, são a construção de biografias de personagens considerados representativos de um determinado grupo ou processo; a pesquisa sobre indivíduos que, ao contrário de representar, põem em xeque — por sua singularidade — a coerência e a homogeneidade de coletivos e movimentos; a análise de biografias sobre determinadas pessoas que verifica como essas foram construídas e disputadas nas memórias coletivas mais ou menos institucionalizadas.
Também é notável a capacidade da biografia de cruzar fronteiras, tanto as geográficas (quando se leva em conta os deslocamentos físicos e mentais dos personagens estudados) como as cronológicas (já que a duração das vidas não se limita a marcos temporais consagrados) e disciplinares. Sobre esse último ponto, a noção de espaço biográfico, de Leonor Arfuch (2010), aponta para uma multiplicidade de formas canônicas, inovadoras e novas dentro de tais manifestações, dando conta de biografias, autobiografias, memórias, testemunhos, histórias de vida, diários íntimos, correspondências, cadernos de notas e de viagens, rascunhos, lembranças de infância, autoficções, romances, filmes, registros artísticos e midiáticos, entre outras formas e suportes.
Os textos que compõem esse dossiê exemplificam as potencialidades da biografia, constituindo-se em uma excelente amostra do que vem sendo produzido no Brasil e no exterior nessa área. Iniciamos com um texto teórico, A biografia à prova da identidade narrativa, de François Dosse — um dos maiores especialistas no gênero na atualidade — traduzido por André Furtado e Emmanuel Wambergue. Nele, o autor tece uma excelente discussão em torno da percepção que o biógrafo precisa ter na redação de uma biografia. Para Dosse, só é possível chegar ao biografado acessando suas identidades plurais, levando em conta um mosaico de tramas, sentidos, temporalidades e ações. Os organizadores desse dossiê e a Escritas do Tempo agradecem por sua contribuição. Seguimos por artigos que examinam, a partir de referenciais e fontes diversas, vidas e memórias de professoras, desportistas, cangaceiros, intelectuais, médicos, operários, cantoras e mães de santo que viveram em espaços e períodos diversos.
Em Narrativas em três tempos: biografias em Octávio Tarquínio de Souza, Raimundo Magalhães Júnior e Ruy Castro, Manoel Messias Alves de Oliveira e Wilton C. L. Silva analisam parte da produção literária de três importantes biógrafos brasileiros, de períodos distintos, apresentando as características estruturais de suas obras e discutindo as relações entre literatura e História dentro do gênero biográfico.
Nas fronteiras entre o espaço biográfico e a literatura, o artigo de Flávio Weinstein Teixeira, De começos e anexações: primeiras apropriações de Álvaro Lins em Portugal, busca reconstituir as relações e as formas pelas quais se dá a recepção da obra de Álvaro Lins no campo intelectual e literário em Portugal, tendo como base de pesquisa a imprensa periódica desse país.
Assim como o campo literário, a trajetória de intelectuais também é uma seara bastante frutífera para a análise de obras e personagens. O discurso anisiano à luz de Pierre Bourdieu, de Karen Fernanda da Silva Bortoloti, submete as propostas de reforma educacional de Anísio Teixeira, defensor de um projeto de educação integral e para todos, a partir dos conceitos bourdieusianos de campo e capital cultural, identificando as estratégias discursivas que buscavam consolidar o campo educacional e legitimar a relevância do capital cultural para a reconstrução do país em um momento de grandes mudanças estruturais.
Assim como o projeto educacional reflete uma identidade sobre o país que somos ou gostaríamos de ser, os personagens icônicos da cultura popular também têm sua memória ligada aos desejos e às expectativas coletivas. Os artigos de Marcos Edilson Araújo Clemente, Lampião e o cangaço: trajetórias de vida, histórias como flagelo (1920–1938) e de Nathan Pereira Barbosa, Raça, Futebol e Identidade Nacional: disputas e atualizações da memória em torno das narrativas biográficas de Pelé, situam-se nessa confluência. No primeiro, Virgulino Ferreira da Silva, o notório cangaceiro Lampião, é identificado como uma representação das tensões e das contradições encontradas nos sertões do Nordeste do Brasil, em meio às formas de consolidação do poder político e econômico republicanos nas primeiras décadas do século XX. No segundo, apresenta-se um balanço de diferentes narrativas sobre Edson Arantes do Nascimento, o mítico jogador de futebol, cuja trajetória apresenta-se como base para determinados projetos de nação e de identidade nacional nas biografias analisadas.
A reflexão sobre projetos políticos, processos de exclusão e autoritarismo confluem-se nos dois artigos seguintes: Victor Klemperer: uma testemunha ocular, de Juliana Aparecida Lavezo, e “Que fizeram com meu pai?”: sindicalismo e ditadura no Amazonas, de César Augusto Bubolz Queirós. Juliana Lavezo utiliza-se da escrita autobiográfica de Victor Klemperer, professor universitário judeu-alemão, enquanto literatura testemunhal de uma vítima de nazismo, para problematizar tal relato e seu lugar na contemporaneidade, enquanto César Queirós busca dar visibilidade aos processos de resistência e repressão vivenciados na ditadura civil-militar brasileira (1964–1985) a partir da trajetória de Antogildo Pascoal Viana — presidente do Sindicato dos Estivadores no período da deflagração do golpe —, que foi uma das primeiras vítimas do aparato repressivo que se instaurava.
Utilizando-se das possibilidades analíticas da História Oral, Priscila Cabral de Sousa e Vera Lúcia Caixeta, com Considerações acerca das vivências de uma professora nordestina, dão visibilidade à experiência de vida de uma educadora que, distante do padrão das “grandes personagens históricas”, pertence às margens. Em seu relato, coloca sua vivência enquanto autoexpressão de uma identidade construída a partir de uma vida feminina e de suas formas de existência e resistências em território maranhense.
A História Oral também é o referencial teórico que fundamenta os artigos de Bruno Barros dos Santos e Rogério de Carvalho Veras, Maria Bonita de Tocantinópolis: história de vida de uma mãe-de-santo do norte tocantinense e de Daniel Lopes Saraiva, “Cá entre nós”: trajetória e memória de Wanda Sá. Bruno Santos e Rogério Veras adentram o campo do sagrado ao analisarem a vida de Rosário, mãe-de-santo da tenda São Jorge Guerreiro, mais conhecida como Maria Bonita da cidade de Tocantinópolis. O texto mescla um conjunto de narrativas míticas sobre caboclos, encantados e pombas giras na construção de sua identidade pessoal. Daniel Saraiva utiliza-se da trajetória artística da cantora Wanda de Sá, que integrou a geração que frequentava os primeiros shows do então embrionário movimento bossa novista, e que, em sua carreira e suas gravações, nas continuidades e nas rupturas, permite entender algumas dinâmicas da vida cultural brasileira.
Por sua vez, Felipe Augusto dos Santos Ribeiro, com Entre biografias e trajetórias de pesquisa(dores): memória operária e reflexões de um historiador nativo, faz um exercício de ego-história, refletindo, enquanto “historiador nativo”, sobre uma experiência de pesquisa relativa à memória operária. O artigo pontua desafios, inseguranças e aprendizados acumulados, ao mesmo tempo em que estimula o debate sobre novas formas narrativas na historiografia e as interrelações entre sujeito e objeto de pesquisa.
Por fim, Fernanda Dayara Salamon e Alfredo dos Santos Oliva, em A construção da subjetividade de C.G. Jung em “Memórias, sonhos, reflexões” (1957), colaboram com uma reflexão sobre a escrita autorreferenciada, a partir da autobiografia do psicanalista suíço, em que discorreu sobre sua vida, sua obra, seus sentimentos e suas experiências, enquanto campo privilegiado para discutir os processos de subjetivação na escrita de si, entendida como uma auto-organização afetiva e emocional.
Convidamos as leitoras e os leitores a percorrerem essas reflexões que, certamente, irão satisfazer aqueles e aquelas que buscam formas inovadoras de pensar a História.
Referência
LEONOR, Arfuch. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Trad. Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
Geovanni Gomes Cabral – Docente da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Doutor em História pela UFPE. Editor da Revista Escritas do Tempo.
Benito Bisso Schmidt – Docente do Departamento de História (desde 1994) e do Programa de Pós-Graduação em História (desde 2003) da UFRGS. Doutor em História pela UNICAMP.
Wilton Carlos Lima da Silva – Docente da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP, Campus de Assis. Doutor em História pela UNESP/ASSIS.
CABRAL, Geovanni Gomes; SCHMIDT, Benito Bisso; SILVA, Wilton Carlos Lima da. Apresentação. Escritas do Tempo, Pará, v.2, n.4, 2020. Acessar publicação original [DR]