Big Data, pós-verdade e democracia | PerCursos | 2020
As tecnologias de informação e comunicação têm permitido capturar, armazenar e disseminar quantidades massivas de dados, sejam eles de indivíduos, governos ou corporações. Por seu volume e complexidade, tais dados exigem um tratamento cada vez mais sofisticado, o que traz novos desafios para diferentes profissionais, com destaque para cientistas da informação, programadores, estatísticos e matemáticos. Simultaneamente, o uso massivo desses dados no ambiente de negócios acende a luz de alerta para ameaças a direitos fundamentais dos cidadãos-consumidores. Dados pessoais são registrados de múltiplas formas e com frequência cedidos inadvertidamente, nas numerosas interações dos usuários da Internet. Com isso, os sistemas de monitoramento e vigilância se tornam uma constante, num fluxo quase indiscriminado entre as dimensões do público e do privado. Construir, analisar e controlar esses gigantescos repositórios de dados torna-se vital para conquistar ou assegurar hegemonias (econômicas, políticas, culturais) e exercer poder. Em paralelo, conjuntos expressivos de registros escritos, visuais e audiovisuais têm sido propositadamente disseminados, em larga escala, de forma errônea e distorcida, com grande peso na formação de opinião e, de forma bastante visível, enorme influência nos processos eleitorais recentes, em vários países, pondo em xeque os mecanismos tradicionais de garantias democráticas.
A teia que enreda Big Data, pós-verdade e democracia é tema do dossiê da edição de 2020/1 da revista PerCursos. Seu debate é em tudo oportuno, ainda mais se considerado o terrível momento atual, de pandemia de Covid-19, vivenciado em países de todos os continentes: o isolamento e o distanciamento sociais, defendidos como medidas preventivas fundamentais na ausência de uma vacina para a doença, reforçaram ainda mais, no cotidiano dos indivíduos, a relevância dos serviços e das sociabilidades não presenciais, efetuados pela comunicação remota proporcionada pelas tecnologias eletrônicas. Por outro lado, o monitoramento dos efeitos da pandemia e as articulações necessárias para sua gestão e combate têm também demonstrado o papel fundamental das trocas de informação em tempo real, em nível global, bem como do tratamento e da análise rigorosos e cientificamente embasados de dados massivos.
Proposto em tempos pré-pandêmicos, o dossiê é composto por três artigos e uma tradução, cabendo salientar que uma das resenhas dessa edição dialoga diretamente com ele. Os três artigos foram elaborados por estudiosos de diferentes formações, o que contribui para proporcionar o debate entre campos disciplinares que a revista objetiva estimular. Sem deixar de mencionar autores referenciais nas discussões iniciais sobre o “ciberespaço” e a “cibercultura” – como Pierre Lévy e Manuel Castells –, os artigos em questão abarcam contribuições recentes sobre a “infosfera”, sobre o “capitalismo de plataformas”, o “tecnocapitalismo” ou o “semiocapitalismo”, mobilizando autores como Byung-Chul Han, Derrick de Kerchhove, Luciano Floridi, Franco Berardi, Evgeny Morozov, Nick Srnicek, Hartmut Rosa, Karel Kosik, Klaus Schwab, Guilherme Wisnik e Luís Suarez-Villa.
No primeiro desses artigos – “Nuvem: Plataforma: Extração”, de Moysés Pinto Neto – a imagem da “nuvem”, fundamental nas ofertas de armazenamento de dados dos usuários, por parte das plataformas digitais (e que, na perspectiva das corporações que mantêm as plataformas, envolvem uma atividade de “extrativismo” dos dados desses mesmos usuários), é explorada como metáfora das novas formas de operação do capitalismo e da “plataformização” da vida, já que as implicações do uso das plataformas sempre estão, em alguma medida, encobertas. Referindo-se especificamente às redes sociais, o autor assinala o mal-estar frequente provocado pelas interações que elas supõem, que simultaneamente esgota e vicia os indivíduos, engajados em um permanente exercício de produção de identidades.
“Democratização e Tecnocapitalismo: o Brasil na Era Liberal”, de Giovanni Antonio Pinto Alves, Luís Henrique do Nascimento e Ana Celeste Casulo, situa historicamente a emergência do tecnocapitalismo e os desafios que coloca à democracia, tendo em vista, em especial, as sociabilidades e transformações geradas a partir do ambiente da infosfera. No artigo, os autores se interrogam sobre as relações entre essas mutações do capitalismo e a democracia no Brasil (considerada estruturalmente frágil), sobretudo a partir dos anos 1990.
Já Roberta Fantin Schnell, Ademilde Silveira Sartori e Valdeci Reis, no artigo “Big Data, Psicopolítica e Infoética: repercussões na cultura e na educação”, põem em relevo aspectos éticos da cultura digital, dadas as ameaças aos direitos humanos observadas de forma cada vez mais frequente nas interações online.
Mirtes Dâmares Santos de Almeida Maia e Danilo Garcia da Silva tiveram a iniciativa de encaminhar à revista PerCursos a tradução do artigo de Ben Kei Daniel intitulado “Big Data e Ciência de Dados: uma revisão crítica de questões para a pesquisa educacional”. Publicado originalmente em 2019, no British Journal of Educational Technology, o artigo de Daniel (doutor em Ciência da Computação e Tecnologias Educacionais e de Comunicação e autor de várias publicações a respeito de comunidades virtuais) discute as potencialidades e desafios que os Big Data oferecem aos pesquisadores, particularmente os pesquisadores do campo educacional.
Em resenha sobre a edição brasileira de Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política, Lucas Kammer Orsi apresenta as linhas gerais do livro, no qual Evgeny Morozov insiste na necessidade de superar a visão positiva das plataformas digitais, em grande medida criada pelas próprias corporações responsáveis pela sua criação, disseminação e sustentação de tais plataformas. Para Morozov, as dimensões políticas das inovações geradas pelo Vale do Silício e suas graves consequências para o exercício democrático devem ser o eixo de um debate incontornável na contemporaneidade.
A primeira edição de 2020 da revista PerCursos apresenta ainda outra resenha e cinco artigos, autônomos em relação aos temas do dossiê.
Quanto à segunda resenha, André Luís Andrade Silva aborda o livro Ser mãe é… A maternidade normalizada pelo discurso jornalístico, publicado, assim como o livro de Morozov, em 2018. Com o livro, a autora, Ariane Carla Pereira, divulga os resultados de sua pesquisa de doutorado, defendida em 2014 na UFRJ, na qual investigou o discurso jornalístico sobre as mulheres a partir da maternidade, tendo como base documental a revista Pais & Filhos, no período entre 1968 e 2008. Quanto aos artigos, em sua maioria enfocam diferentes realidades vivenciadas no Brasil contemporâneo, que com frequência ressoam problemas sociais, culturais e políticos com longa inscrição temporal. Jéferson Silveira Dantas discute os efeitos da atuação de uma “nova direita” nas questões educacionais, com ênfase na Educação Pública; uma “nova direita” (abarcando, na perspectiva do autor, grupos conservadores, neoliberais autoritários e a classe média empreendedora) que disputa os recursos públicos e se mostra favorável à privatização. Ana Clara Borges e Juliana Vinuto, a partir dos dados de uma pesquisa de campo em Niterói, põem em xeque o racismo institucional das estruturas do Judiciário brasileiro. Roselma Lopes Ribeiro, Ricardo Santos de Almeida e Cirlene Jeane Santos e Santos, também com base em pesquisa, apresentam dados sobre o acesso à terra e às políticas públicas de apoio à atividade agrícola em dois povoados do município de Limoeiro de Anadia, Alagoas, refletindo sobre as condições de reprodução da vida e de recriação dos modos de vida dos camponeses. Jaqueline Longen Rossatto, Lisandro Pezzi Schmidt e Pierre Alves Costa analisam os efeitos de uma obra viária (o Contorno Norte de Maringá) sobre os espaços urbanos, as atividades de serviços e de comércio no eixo conurbado entre os municípios de Maringá e Sarandi, no Paraná. Finalmente, Heloise Vargas de Andrade e Jacira Helena do Valle Pereira Assis, partindo de um recorte temporal mais recuado (décadas de 1930 a 1960), analisam os percursos formativos de alguns intelectuais matogrossenses, com ênfase nas formas como representaram sua passagem pelo ensino secundário.
É, portanto, com essa rica gama de temas e problemas, predominantemente abordados de maneira questionadora e intensamente comprometida com a compreensão de processos históricos da contemporaneidade, que a revista PerCursos inicia suas edições de 2020. À leitura!
Organizadora
Janice Gonçalves – Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Editora-Chefe.
Referências desta apresentação
GONÇALVES, Janice. Editorial. PerCursos. Florianópolis, v. 21, n. 45, p. 01 – 04, jan./abr. 2020. Acessar publicação original [DR]