Àqueles que estudam conforto no campo da arquitetura e urbanismo em ambientes internos e externos, encontram-se em face de uma negociação entre o mythos e o logos. Da lógica do logos, obtém-se valores de dados quantificados e oferecidos por equipamentos que são solucionados em equações matemáticas e, por amostragem, podem ser estimados parâmetros ao senso comum. Já em face do mythos, da subjetividade dos gostos e preferências, as experiências sensoriais perceptíveis dos sentidos humanos possuem ampla variação, sobretudo cultural. Desse ponto de vista, o livro Beyond Environmental Comfort se trata de uma relação biunívoca entre estes dois campos, estabelecendo, por critérios paramétricos do ambiente construído, uma simbiose interpretativa para qualificar a experiência sensorial espacial.
O dossiê – que visa familiarizar pesquisadores com onze textos (1) seminais dessa produção contemporânea, pela contribuição de oito autores – é organizado pelo chinês Boon Lay Ong, atualmente professor sênior da Escola de Design e Ambiente Construído da Universidade de Curtin, Austrália. Anteriormente foi professor titular de Design Ambientalmente Sustentável na Faculdade de Arquitetura, Construção e Planejamento Urbano da Universidade de Melbourne. Ong tem PhD pela Universidade de Cambridge, no Reino Unido, sobre o uso de plantas como complemento para arquitetura e design sustentável, pelo conceito de “paisagens cultivadas” referente ao uso de paisagens projetadas como um elemento ecológico na arquitetura e nos ecossistemas urbanos. Suas ideias sobre a integração de plantas e paisagismo na arquitetura contribuíram para o plano de desenvolvimento urbano em Singapura.
No prefácio e introdução de sua autoria, Ong explicita as dificuldades e embaraços encontrados no campo arquitetônico, onde as pesquisas são, comumente, desenvolvidas por especialistas de outras áreas, como das engenharias, geografia, meteorologia, entre outras e associadas na arquitetura. Ong destaca uma lacuna a ser superada, a qual se refere a barreira linguística – o que inclui também os jargões técnicos de cada área – para disseminar a troca de informações e, assim, aprimorar o desenvolvimento desse ramo; não surpreende a seleção e contribuição de autores de diversas nacionalidades. Por fim, ao tom do manifesto, Ong diz que este livro da voz as preocupações e pensamentos de especialistas arquitetos sobre as limitações em seus campos de atuação, além de elucidar ideias chave sobre conforto ambiental urbano pelo atual estado da arte.
Os capítulos um e dois, estruturam um viés deste campo do conhecimento – de forma mais abstrata, pela abordagem perceptiva – para as ciências sociais aplicadas a tecnologia da arquitetura e urbanismo. Assim, no capítulo um, também de autoria do organizador Boon Lay Ong deixa claro que oficialmente conforto ambiental ainda não e reconhecido como um campo de pesquisa autônomo, haja vista que ele está subordinado ao ramo tecnológico com diferentes temas relacionados as questões térmicas, acústicas, de luminosidade e, mais recentemente, qualidade do ar.
O capítulo dois é de autoria do biólogo canadense Michel Cabanac, reconhecido especialista em fisiologia. Ele desenvolveu teorias qualitativas e quantitativas relacionando o hedonismo psicológico (“aliestesia”) e o comportamento térmico da regulação neuroquímica da temperatura corporal (“anapirexia”). O foco de sua pesquisa é o papel fisiológico do prazer experimentado pela dimensão hedônica da consciência, o que o levou não apenas a novos discernimentos da própria consciência e emoção, mas também a uma melhor compreensão da motivação humana na saúde, bem como na doença, pelas influências do meio ambiente.
No seu capítulo, Cabanac conduz o leitor para uma discussão sobre o estado de conforto em termos biológicos. Em seu laboratório, de forma propositiva, o pesquisador promove condições constantes de “bem-estar”, pelo que a métrica de estudos anteriores indica como “estado neutro”, associando, desse modo, não apenas elementos hedonísticos – do bem-estar físico –, mas, também, holísticos – estado de paz mental –, além dos proporcionados pela taxa metabólica – alimentação e atividade física exercida – vestimentas, temperatura e umidade do ar adequados.
Apesar de Cabanac ater-se aos meios técnicos, a chave interpretativa do holismo proposta por ele abre espaço para o engenheiro britânico Derek Clements-Croome prestar as suas contribuições de forma mais filosófica no capitulo três, atuando no campo do sensível e etéreo, elevando, assim, a composição do livro para o outro nível, aprofundando-se em questões psicológicas que extrapolam as fisiológicas. Uma constatação que atravessa a métrica dos dados medidos e quantificados, por variáveis subjetivas e culturais, que levam em conta as experiências do vivido. Clements-Croome, professor emérito da Universidade de Reading no Reino Unido, tem experiência em construções inteligentes e design sustentável, realizando inúmeros projetos governamentais do Reino Unido, atualmente seu foco de atuação está no ensino e desenvolvimento de pesquisas de construções sustentáveis.
O capítulo quatro é de autoria do físico britânico Nick V. Baker, profissional que dedicou a maior parte de sua vida profissional ao ensino e à pesquisa da arquitetura e à construção no departamento de projeto de arquitetura da Universidade de Cambridge. Seus interesses investigativos recaem sobre eficiência energética, modelagens, iluminação e ventilação natural, conforto térmico e design sustentável. Dentro da perspectiva de sua atuação, Baker inicia o discurso em torno de um dos elementos compositivos do conforto: o térmico. Ele faz uma reflexão do ambiente global, resultante da escolha dos materiais, usos e recursos energéticos que impactam diretamente no design e na construção. Baker não deixa de lado fatores culturais e genéticos em detrimento aos estudos de conforto ambiental e discorre sobre a capacidade humana de adaptação.
O capítulo cinco cabe ao neozelandês Sir Harold Marshall, arquiteto, engenheiro e especialista em física, além de professor emérito da Universidade de Auckland. Reconhecido internacionalmente por suas contribuições no design de salas de concerto, recebeu em 2009 a condecoração de cavalheiro pelos serviços prestados ao campo da ciência acústica. Em seu capítulo, Marshall traz uma reflexão sobre as questões acústicas por ele desenvolvida e praticada, portando baseada em sua trajetória e experiência profissional. Sir Marshall reflete entre as possibilidades pelas quais acostumamos e adaptamos nosso sentidos e comportamentos na percepção do ambiente pela audição, pois, deste a pré-história, trata-se do principal sentido de alerta e de aprendizado humano.
Dando continuidade às ponderações dos instintos primitivos humanos, no capítulo seis o arquiteto finlandês Juhani Pallasmaa – cuja investigação científica tem foco nos sentidos sensoriais do corpo em relação a experiência espacial arquitetônica – discursa sobre o tato, o mais antigo, complexo e especializado dos sentidos, entendendo que todos os outros são extensões dele; pela pele, é possível sentimos a vibração do som, a proximidade de corpos térmicos e, inclusive, tocamos com os olhos. De renome internacional, Pallasmaa é professor emérito da Universidade de Tecnologia de Helsinki e professor visitante da Universidade Católica das Américas em Washington DC.
Croqui de Juhani Pallasmaa
Imagem divulgação
Considerando searas teóricas ainda pouco exploradas, no capítulo sete Boon Lay Ong faz observações diretas sobre suas percepções do ar. Com efeito, quando o pesquisador tem pouco ou nenhum controle sobre o fenômeno estudado, a contextualização recorre aos estudos de caso que, nesse caso, versam sobre os aeroportos. Ao deixarmos um local de condições controladas – o avião –, a oxigenação do corpo entra em contato com a nova atmosfera, percebemos gradativamente as interligações do biorritmo do corpo e das especificidades de cada local, pela umidade, temperatura e pressão do ar.
De forma poética, o arquiteto britânico Dean Hawkes faz no capítulo oito uma abordagem sobre a apreciação imagética da arquitetura. O pesquisador é professor emérito da Universidade de Cardiff e membro emérito do Colegiado de Darwin da Universidade de Cambridge. Sua carreira combinou prática, ensino e pesquisa, com foco na poética das artes visuais. Atualmente, é professor visitante na Universidade Chinesa de Hong Kong, da Universidade Nacional de Singapura, da Escola Mackintosh de Arquitetura, e da Escola de Artes de Glasgow. Segundo Hawkes, os efeitos anestéticos – estéticos e antiestéticos – traduzem o espaço real e o imaginado da experiência sensorial ocular. Aqui o conforto é discutido pela satisfação e prazer, como se constantemente contemplados em tela, a narrativa do ambiente construído se deixa levar por anotações, fotografias, desenhos e gravadores, mas a principal ferramenta são os sentidos humanos, que atuam nestes espaços, pela mediação e suporte da luz, da temperatura, dos ruídos e do ar, sejam estes isolados ou em suas variadas combinações.
Derek Clements-Croome faz outra contribuição, que dá continuidade, tanto ao capítulo três, de sua autoria, quanto à estrutura sequencial de pensamentos do livro. O autor acredita que o design arquitetônico é capaz de impactar nossos sentidos mais profundamente do que supomos. No capítulo nove, ele dá voz a autoridades como Daniel Libeskind que diz: “construções promovem mais do que espaços para habitar, elas dão ritmo, como o som, as formas do mundo”; e toma os dizeres de John Sorrell, “todos sabemos que um bom design promove inúmeros benefícios: na arquitetura escolar, encoraja crianças a aprender, nos hospitais a recuperação da saúde”.
Em face desse contexto de bem-estar, da saúde física e mental, no penúltimo capítulo Boon Lay Ong se debruça sobre o rol de conceituações acerca das relações de conforto e ecologia. O autor faz uma crítica ao uso do termo “sustentabilidade”, pois sua tradução é filtrada perifericamente – absorvendo apenas alguns princípios de um conceito tão amplo –, assim, em suas práticas, considera mais apropriado e toma por base os precedentes ecológicos, como cavernas, iluminação natural e hidrografia, e as demonstra neste texto.
Por fim, terminando o livro, temos a presença da única mulher da coletânea, a canadense Constance Classen. Historiadora cultural especialista em história dos sentidos, a autora é professora visitante do Centro Canadense de Arquitetura, onde investigou a dinâmica sensorial do movimento neogótico, trabalhou como pesquisadora na Universidade de Harvard e na Universidade de Toronto. Autora de inúmeras publicações, suas pesquisas exploram conexões entre práticas estéticas multissensoriais históricas e desenvolvimentos atuais da arte.
Neste último capítulo, Classen apresenta um ensaio sobre o ambiente sensorial urbano do futuro. A autora faz um vislumbre dos temas já abordados no livro e, com aridez, discorre sobre “sustentabilidade” e “prazer”, que parecem máscaras, pois tratam-se de probabilidades de uma prática puritana do ambiente construído que, de fato, é bastante agressivo. Constance também revisita outras obras e faz uma crítica a cidade moderna, pois, em seu ponto de vista, vivemos em um legado de anestesia dos sentidos na experiência espacial arquitetônica.
Com efeito, perpassa essas fontes todas, de forma mais ou menos explícita, certa reflexibilidade autônoma entre os capítulos. Para tanto, é necessário considerar também que, em meio a sua densidade de informações, requer certo conhecimento prévio por parte dos leitores dos tópicos abordados, haja vista que não são fornecidos, nem estão claros, os procedimentos didáticos-metodológicos, pois alguns ainda são estudos exploratórios. O que surpreende, uma vez que se trata de expressões tecnológicas da arquitetura é, justamente, embaralhar certezas e convicções, sem deixar de atender às convenções estabelecidas pela abstração da subjetividade afetiva, dos gostos e preferências.
Nota
1Estes são os títulos e autores dos capítulos do livro: Introduction: Environmental comfort and beyond (p. 1-16), de Boon Lay Ong; Sensory pleasure and homeostasis (p. 17-36), de Michel Cabanac; Consciousness, well-being and the sense (p. 37-46), de Derek Clements-Croome; Cultural responses to primitive needs (p. 47-60), de Nick V. Baker; Acoustical aesthetics, sound and space (p. 61-80), de Sir Harold Marshall; Existencial comfort: lived space and architecture (p. 81-96), de Juhani Pallasmaa; Outdoor environment indoor space (p. 97-110), de Boon Lay Ong; The poetics of environment (p. 111-138), de Dean Hawkes; Why does the environment matter? (p. 139-160), de Derek Clements-Croome; Biophilia, topophilia and home (p. 161-174), de Boon Lay Ong; Green pleasures (p. 175-186), de Constance Classen.
Resenhistas
Rafael Antonini – Designer, arquiteto e urbanista, especialista em docência no ensino superior, professor convidado da Universidade Paulista UNIP e proprietário do escritório de arquitetura e interiores StarHaus.
Sérgio Antônio dos Santos Júnior – Professor e pesquisador adjunto na Universidade Paulista e Anhanguera. Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo, Mestre em Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em Urbanismo Moderno e Contemporâneo, graduado em Turismo e em Arquitetura e Urbanismo.
Referências desta Resenha
ONG, Boon Lay. (Ed). Beyond Environmental Comfort. Nova York: Routledge, 2013. Resenha de: ANTONINI, Rafael; SANTOS JÚNIOR, Sérgio Antonio dos. Além do conforto ambiental. Meio ambiente, tecnologia, fisiologia, percepção e cultura. Resenha Online. São Paulo, n. 205, jan. 2019. Acessar publicação original [DR]
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