O Bexiga, coração da Bela Vista, se acomoda em um pequeno vale que acolhe as águas de chuva que descem da encosta da avenida Paulista e do Morro dos Ingleses para desembocar na avenida 9 de Julho, lugar de direito do pequeno rio Saracura. Com platibandas, arcos, frontões, varandas diminutas, paredes desgastadas pelo tempo ou pintadas em cores vibrantes e alegres, o casario alinha-se rente às calçadas das ruas pacatas (1).
Homens consertam automóveis estacionados no meio-fio, mulheres cultivam flores plantadas em vasos dispostos na calçada. Em cômodo da casa aberto para a rua, muitos trabalham: mecânicos, manicures, barbeiros, cabelereiras, sapateiros, carpinteiros, serralheiros, costureiras, alfaiates, ofícios extintos em outros lugares da cidade. Atividades mais afamadas – bares, restaurantes, cantinas e padarias – disputam o endereço com depósitos de material de construção e ferro-velho, frequentados por carroças que trafegam com anacrônica lentidão pelas ruas estreitas da localidade.
O Concurso Nacional de Ideias para a Renovação Urbana e Preservação do Bexiga, organizado pela Empresa Municipal de Urbanização – Emurb – entre 1987 e 1992, pretendia organizar as transformações do bairro, evitando o fenecimento da vitalidade que lhe confere caráter. A primeira fase do concurso previa consultas à população, debates abertos e “registros fotográficos produzidos por Cristiano Mascaro” (2), segundo Vânia Lewkowicz Katz e Cecília de Moura Leite Ribeiro. Consultado, o fotógrafo revela a origem da encomenda:
“No período de 1991 a 1992, realizei uma série de documentações fotográficas para a Emurb durante o governo de Luiza Erundina. Fotografei as transformações por que passou o Anhangabaú, a criação do Boulevard São João, o restauro do Palácio das Indústrias e a recuperação paisagística do parque D. Pedro. Nesse contexto, me foi solicitada uma documentação com característica de ensaio fotográfico do Bexiga, pois havia um projeto de intervenção urbana no bairro. Realizei o trabalho, quase uma repetição do que já havia feito no bairro do Brás em 1975, fotografando suas ruas e vielas, a arquitetura, o conjunto de pequenos sobrados e também retratando as pessoas em suas casas e nos locais de trabalho” (3).
A convergência de fatos a princípio desconectados – a referência ao ensaio presente em um dos artigos do livro, a curiosidade do editor e a boa vontade do fotógrafo em pesquisar, em seu acervo, trabalho inédito de quase trinta anos – permitiu que uma raridade oculta fosse agora revelada, pois Mascaro preservou os negativos do seu ensaio fotográfico do Bexiga. E, graças ao seu método imersivo, se viabiliza o resgate do cotidiano local no início dos anos 1990:
“Acredito ter conhecido o Bexiga detalhadamente, guardando na memória instantes decisivos das diversas etapas do trabalho. Lembro-me muito bem do casario enfileirado em suas ladeiras, das pessoas caminhando em direção ao trabalho, dos interiores das casas que frequentei e até do som de um saxofone que se escoava por uma janela. Não resisti, bati na porta da casa e acabei fazendo um retrato do jovem músico responsável pela melodia” (4).
Como por encanto, um Bexiga antigo semelhante aos dias atuais surge diante de nossos olhos: pessoas sentadas na soleira do portão de entrada, nas muretas e no meio-fio; homens e mulheres de variadas idades em trânsito vagaroso pelas calçadas; crianças envoltas com bicicletas, brinquedos da praça e peladas de futebol disputadas em campinhos improvisados nas ruas e calçadas; idosos aos pares em prosa animada; a Igreja Nossa Senhora Achiropita imponente em meio à bruma matinal; o casario anônimo, de um ou dois pavimentos, recostados uns nos outros; o desengonçado Navio Negreiro, cortiço gigante ladeado pela escadaria monumental; o emblema ameaçador da corporação SS sombreando o Teatro Oficina; as vias expressas que sangram sem dó a carne do bairro…
Contudo, as fotos de Mascaro contrabandeiam um passado surpreendentemente superado de um Bexiga que não existe mais: a Vila Itororó anterior aos trabalhos de restauro, meio mágica, meio fantasmagórica; o estivador de tronco desnudo com imenso saco de farinha na cabeça; a propaganda política de Lula e Maluf, protagonistas do antagonismo histórico entre direita e esquerda, estampada em outdoor, muro e talude; os veículos de marcas extintas, tanto os populares como os de luxo; as marcas desaparecidas estampadas em placas fixadas em postes e paredes…
As sombras densas que se projetam em direção do observador, uma das predileções compositivas de Mascaro, sugerem enigmáticas um dos segredos da fotografia: a aura de existências capturadas, do tempo congelado, que nos avisam sobre a perenidade de coisas e gentes. “A contingência da fotografia confirma que tudo é perecível” (5), diz Susan Sontag. São tantos os fragmentos ali registrados que surge a suspeita que nem tudo foi racionalmente controlado pelo olhar do fotógrafo, como nos sugere Walter Benjamin:
Apesar de toda a perícia do fotógrafo e de tudo o que existe de planejado em seu comportamento, o observador sente a necessidade irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou imagem, de procurar um lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos, e com tanta eloquência que podemos descobri-lo, olhando para trás (6).
Resignado, Cristiano Mascaro afirma: “O tempo passou, deixei de realizar trabalhos para a Emurb e me parece que o projeto de intervenção no bairro acabou não sendo realizado” (7). O Bexiga se transformou ao largo dos projetos urbanísticos, a vida profissional do fotógrafo chegou à notoriedade, a Emurb não existe mais. Para o fotógrafo ainda estão vivas as memórias da experiência, da relação empática com o bairro e seus moradores. Para os leitores deste livro resta o deleite de absorver em cada fotografia os temas e os vestígios quase imperceptíveis de um mundo que se foi; sobra também o prazer em imaginar a música que brota de um saxofone do passado.
Notas
1Ver: GUERRA, Abilio. Grotão do Bixiga. Arquiteturismo, ano 06, n. 064.01, São Paulo, Vitruvius, jun. 2012 <https://bit. ly/3lYHqH4>.
2KATZ, Vânia Lewkowicz; RIBEIRO, Cecília de Moura Leite. Processo de preservação do bairro do Bexiga. In: SOMEKH, Nadia; SIMÕES JÚNIOR, José Geraldo (Orgs.). Bexiga em três tempos – patrimônio cultural e desenvolvimento sustentável. São Paulo, Romano Guerra, 2020, p. 91.
3MASCARO, Cristiano. Mensagem a Abilio Guerra. Carapicuíba, 13 out. 2020.
4Idem, ibidem.
5SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. 2ª edição. Rio de Janeiro, Arbor, 1983, p. 79.
6BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas, volume 1. São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 94.
7MASCARO, Cristiano. Op. cit.
Resenhista
Abilio Guerra – Arquiteto (FAU PUC-Campinas, 1982), mestre e doutor em História (IFCH Unicamp, 1992 e 2002), professor adjunto da FAU Mackenzie. Com Silvana Romano Santos, é editor da Romano Guerra Editora e do Portal Vitruvius.
Referências desta Resenha
SOMEKH, Nadia; SIMÕES JÚNIOR, José Geraldo (Orgs.). Bexiga em três tempos. Patrimônio cultural e desenvolvimento sustentável. Ensaio fotográfico de Cristiano Mascaro. São Paulo: Romano Guerra, 2020. Resenha de: GUERRA, Abilio. Bexiga segundo Cristiano Mascaro. Resenha Online. São Paulo, n. 228, dez. 2020. Acessar publicação original [DR]
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