Béla Guttmann: uma lenda do futebol no século XX | Detlev Claussen

Parte significativa da história do futebol foi construída sobre a trajetória de grandes técnicos: toda uma geração de torcedores brasileiros lembra, nostalgicamente, dos feitos de Telê Santana, que desenvolveu, para muitos, o futebol mais próximo da perfeição estética. 3 Sir Alex Ferguson, por outro lado, preocupado mais com a competitividade de suas equipes do que com a beleza do jogo, é o principal responsável por alçar o cambaleante Manchester United ao posto de marca mais importante do futebol globalizado (TWEEDALE, 2017). No entanto, capaz de produzir nas equipes que treinou um estilo de jogo tão bonito quanto competitivo, a relação entre a trajetória de Béla Guttmann e a história do esporte bretão é muito mais íntima do que a dos técnicos anteriormente citados. O húngaro colocou seu nome entre os grandes do esporte ao desenvolver um estilo ofensivo que influenciou diversos treinadores, mas só pôde se colocar em tal posição por estar em contato com diversas transformações sócio-políticas determinantes para o fenômeno do futebol como o conhecemos.

A singularidade de sua história nos coloca em contato não apenas com uma figura particular e significativa para o esporte, mas também com todo arcabouço necessário à sua emergência. É precisamente a articulação entre esses dois fatores que Detlev Claussen explora na biografia Béla Guttmann: Uma lenda do futebol do século XX, original em alemão, que fora detalhadamente traduzido por Daniel Martineschen e Alexandre Fernandez Vaz. Em oito capítulos e 176 páginas, o pesquisador da Universidade de Hannover (formado em sociologia sob a orientação de Theodor W. Adorno) nos leva, seguindo os passos do treinador húngaro, a viagens intercontinentais, contínua troca de clubes e países, migrações ou transferências de técnicos e jogadores, e, indelevelmente, ao desenvolvimento do futebol profissional no século XX. Tudo isso ligado pela figura do personagem biografado, mas também, e de forma deveras original, pelo evento apoteótico que define a importância de Guttmann para a história do futebol: a final da Liga dos Campeões de 1962.

Após uma difícil campanha, o Benfica de Guttmann encontrou o pentacampeão e potência europeia Real Madrid, no dia 2 de maio de 1962, no jogo único da final da Liga dos Campeões, disputado em Amsterdã. Ainda que fossem os atuais campeões, surpreendendo a todos no ano anterior ao vencer a poderosa equipe do Barcelona por 3 a 2, os comandados do treinador húngaro tinham a sua frente Púskas, Di Stéfano e um experiente time espanhol. Depois de sair atrás no placar, o empate da equipe portuguesa foi arrefecido pelo terceiro gol de Púskas na partida; o primeiro tempo encerravase com o escore de 3 a 2 para os espanhóis. Por mais que a diferença fosse de apenas um gol, Guttmann volta do intervalo com um time ainda mais ofensivo e é bem-sucedido em sua aposta: após o empate benfiquista, Eusébio, a estrela portuguesa (de origem moçambicana) foi responsável pelos dois gols que decretaram a vitória dos portugueses por 5 a 3, consagrando o trabalho do húngaro e apresentando uma nova geração de jogadores ao mundo (responsáveis por uma das melhores campanhas de Portugal na Copa do Mundo de Futebol Masculino da FIFA, em 1966).

Antes de alcançar a felicidade no fatídico 02 de maio de 1962, é possível dizer que a carreira do genioso técnico Béla Guttmann foi tão vitoriosa quanto turbulenta, além de relativamente atrelada ao que aprendeu e vivenciou ainda enquanto jogador. Após passar por times de Budapeste – sua cidade natal – e Viena, onde possuía a função de meia criativo, Guttmann exerce a relativamente nova profissão de jogador de futebol na American Soccer League, atuando por equipes de Nova Iorque. Depois de encerrar sua carreira como jogador profissional em 1932, o húngaro, então técnico, retorna para Viena com o intuito de assumir o time em que passou a maior parte da sua vida enquanto futebolista, a saber, o Hakoah.

Dono de forte personalidade, desde o início de sua carreira de mais de 40 anos, Guttmann já apresentava a forma de armar suas equipes que o fez vitorioso em contextos distintos (clubes, países, continentes) e principalmente na final em Amsterdã: “ofensividade intrépida, dedicação incansável, ataque constante à meta adversária” (p. 17). A marca do treinador húngaro sempre fora o desejo pelo gol acima da cautela exagerada; ainda que cedesse um ou outro gol ao adversário, acreditava na capacidade do seu time de produzir mais pontos que o oponente, negando-se a produzir um time defensivo. Tal proposta de jogo, ancorada na grande dedicação física dos jogadores em campo, só poderia ser plenamente alcançada com a atenção distinta que Guttmann dedicava aos treinamentos e ao preparo físico. Além de exigir de seus futebolistas mais horas de treino do que era comum à época, o técnico também demandava que os atletas cuidassem de seu corpo mesmo longe dos centros de treinamentos e dos estádios.

Não seria demasiado audacioso dizer que as vitórias dos outsiders4 de Guttmann contra o Barcelona de 1961 e o Real Madrid de 1962 abriram os olhos do mundo para o que se tornou a “era do condicionamento físico”, por assim dizer. Ao derrotar equipes mais tradicionais e talentosas, o Benfica demonstrou a importância dos elementos que permeiam a peleja, inaugurando, no futebol, a grande atenção dada ao treinamento e à vida dos jogadores.

Ainda que seja do interesse das grandes instituições que comandam o esporte que este apareça completamente separado de qualquer discurso ou posição política, tanto a história de Guttmann – seguindo a forma que os acontecimentos são mobilizados por Claussen –, sua vida como jogador e treinador, quanto o trabalho de Flávio de Campos (2016) nos mostram que o tempo todo há contato entre as duas esferas. A impossibilidade de separar a peleja de todo contexto político que a envolve ficou explicita para Guttmann ainda enquanto jogador, pois, como já dito, ele fez parte do Hakoah, um clube sionista austríaco fundado com a intenção de ser a opção de lazer para a comunidade judaica de Viena, impedida pelas elites de frequentar os principais clubes da cidade.

O tempo do húngaro como treinador lhe reservou experiências muito mais terríveis. Se em princípio o nazismo utilizou o esporte como forma de propaganda para seus ideais de superioridade da raça ariana – permitido por um Comitê Olímpico Internacional omisso – (CAMPOS, 2016), a partir do momento em que a máquina de extermínio do Terceiro Reich começa a funcionar, um grande número de pessoas, relacionadas ou não com o esporte, se vê obrigada à reclusão e ao exílio para defender a própria vida. Nesse período, Guttmann, sendo judeu, se apoiou na ajuda de amigos e conseguiu escapar, escondendo-se em Budapeste por quase todo o período da guerra, obviamente impedido de exercer sua profissão. Contudo, essa não foi a última interferência política direta na vida de Guttmann. Em meio ao uso dos Jogos Olímpicos como forma de disputa simbólica entre os eixos capitalista (encabeçado por Estados Unidos) e socialista (liderado pela União Soviética), como demonstrado por Campos (2016), a crescente repressão soviética obriga Guttmann ao exílio junto com o time do Honvéd Budapest em 1956 (das estrelas Puskás, Czibor e Kocsis).

Entretanto, a diversificada trajetória de Guttmann não se resume a deslocamentos forçados. Ao contrário, a migração constante de um clube a outro é uma das grandes marcas da sua carreira. Naquela final de 1962 havia algo interessante a ser notado: Puskás, jogador do time espanhol, também era húngaro; Di Stefano tinha nacionalidade italiana, apesar de ter nascido na Argentina; Eusébio e Mario Coluna, estrelas do time português, provinham de Moçambique. José Sérgio Leite Lopes (1994) afirma, inclusive, que o fluxo internacional de jogadores pode ser visto muito tempo antes, já na década de 1930, com as idas de jogadores argentinos, uruguaios e brasileiros para times europeus – principalmente aos italianos.

É bem verdade, porém, que o caso de Guttmann é bem peculiar. O técnico considerava-se um verdadeiro profissional, completamente destituído de quaisquer laços clubísticos, não via problema algum em trocar um time pelo outro, ainda que fossem rivais – foi o caso da sua ida para o Benfica depois de treinar o Porto FC. Mais que isso, suas constantes migrações também eram fruto de sua forte personalidade: demitia-se com frequência pois não permitia qualquer tipo de insubordinação ou acomodação por parte dos jogadores e não aceitava (com raras e justificadas exceções) interferências de dirigentes no seu trabalho. Ou ainda, e este é o aspecto mais famoso, gostava de sair de uma equipe com ela em seu auge – como fez após o bicampeonato europeu do Benfica –, aumentando o mito que criara em torno de si mesmo.

O que Claussen afirma ao longo de toda a biografia é que são exatamente tais migrações e a relação entre diferentes contextos, com o sucesso de outsiders, que permitiram o espetáculo do 5 a 3 da equipe portuguesa; mais ainda, são tais características – junto com a profissionalização do esporte – que produziram o sucesso do futebol no século XX. Guttmann e a sua vitória sobre o Real Madrid são o grande exemplo que o livro fornece a respeito da importância do intercâmbio cultural no futebol. E a relação do técnico húngaro com o Brasil deixa isso muito claro.

Após circular por diversos países e clubes, seja como jogador ou como técnico, Guttmann desembarca – com gigantesca experiência advinda de tais contextos – na capital paulista para treinar o São Paulo Futebol Clube, no ano de 1957. 5 A formação tática desenvolvida pelo húngaro no time paulistano (a saber, o 4-2-4) não apenas conseguiu resultados fantásticos, transformando a equipe em uma máquina de fazer gols, campeã do título estadual, como foi utilizado por Vicente Feola, técnico da seleção nacional, na campanha que resultou no primeiro título mundial do Brasil, em 1958. Mais incrível que perceber a importância indireta de um técnico húngaro na conquista da Copa de 58, é atestar como esta equipe exerceu forte influência na vitória de Guttmann em 1962.

A migração – e consequentemente todos os desdobramentos relacionados a ela pelo autor alemão – está completamente atrelada à profissionalização, outro fator ao qual o autor atribui a vitória do futebol no século XX; de fato, ambos os termos se tocam e se determinam mutuamente ao longo do desenvolvimento do esporte bretão. Em diversos contextos, principalmente na América Latina, é precisamente por causa da migração que os dirigentes de clubes e federações se veem obrigados a permitir o pagamento aos atletas; tanto Brasil (em 1933) quanto Argentina instauraram a profissionalização do futebol para impedir a ida dos melhores jogadores para a Itália (LEITE LOPES, 1994), além do risco da naturalização.

Uma análise historiográfica (HOBSBAWM & RANGER, 2008), que em dado momento vasculha as origens da profissionalização no esporte, volta-se para outro contexto importante, a saber, a Inglaterra de meados de 1870. Pensando um período temporal ignorado por Claussen, Eric Hobsbawn & Terence Ranger (2008) atribuem o início do pagamento aos atletas ao surgimento de uma cultura urbana operária e também à espetacularização do esporte. É precisamente quando a prática foge do controle das elites das public schools que grandes empresários não escolarizados passam a cobrar ingressos para as partidas, replicando, com muita eficiência, a lógica das fábricas dentro das agremiações futebolísticas: pagando por empregados qualificados, buscando melhores jogadores (HOBSBAWM & RANGER, 2008).

No Brasil, Leite Lopes (1994) mostra que o que permitiu a profissionalização e a espetacularização do futebol, além do medo de perder os jogadores, foi toda a criação de uma crônica especializada. Junto com novas formas de jogar, cobrar pela peleja e formar o time, também se fez necessário a produção de um torcer inédito; só assim o esporte conseguiu sair do jugo das elites e tomar as classes populares. Contudo, não se pode dizer que o processo se desenrolou sem resistência; ao contrário, a relutância de certos cartolas em admitir a profissionalização foi violenta a ponto de cindir o campeonato carioca, formando uma liga de profissionais e outra de amadores (LEITE LOPES, 1994) – que posteriormente cederam à profissionalização, componente indissociável da competitividade.

Assim, ainda que tratem de contextos distintos, Hobsbawn, Leite Lopes e Claussen concordariam em um ponto, qual seja: o amadorismo era um ideal discriminatório. Não se pode negar que o esporte nasce como passatempo amadorístico das elites. Entretanto, e o exemplo brasileiro deixa isso claro, a manutenção ativa das práticas esportivas como amadoras, repelindo qualquer tipo de pagamento, era uma estratégia para manter toda a distinção atrelada aos esportes na passagem do século XIX para o XX (LEITE LOPES, 1995). Claussen afirma que a profissionalização é a principal causa para o triunfo do futebol exatamente por ela possibilitar “que pudessem jogar cada vez mais pessoas que, de início, não eram incluídas: trabalhadores, judeus, imigrantes, descendentes de escravos” (p. 154). Sem a profissionalização do futebol, a final de 1962 seria completamente distinta: o time espanhol não poderia ter na sua equipe nem húngaros nem argentinos; os moçambicanos jamais teriam integrado a esquadra do Benfica.

Tanto a final de Liga dos Campeões de 1962 quanto a vida de Béla Guttmann estão, na biografia escrita por Claussen, intrinsicamente ligadas pelos fatores responsáveis pelo sucesso do futebol, a saber: as já citadas migração e profissionalização, presentes na modalidade, durante o século XX.

Pode-se dizer que a biografia de Béla Guttmann é um esforço bem-sucedido de literaturização do futebol, concebendo toda a beleza de uma carreira vitoriosa por meio de uma narrativa heterodoxa que gira em torno da partida entre Benfica e Real Madrid, ignorando o relato cronologicamente linear para desenhar contextos e explorar personagens a partir da final de 1962. Se é inegável que o texto flerta com possível abordagem sociológica, permitindo-se, em certos momentos, ser ensaísta, é bem verdade também que ele tem pouco a acrescentar aos estudos acadêmicos desenvolvidos com base no esporte. Ainda que seja viável traçar relações – como visto neste texto – entre o livro de Claussen e alguns estudiosos do esporte, pouco de novo ou frutífero pode advir de tal contado. Não podemos, contudo, ser injustos com a biografia de em questão: ela é a execução quase perfeita da proposta de pensar a trajetória de um grande nome do futebol para além dos eventos imediatamente atrelados à sua trajetória. O livro é, então, leitura agradável para todo/a amante do esporte, que não se contenta em saber o que acontece apenas dentro das linhas de jogo, mas se preocupa com contextos sóciopolíticos que circundaram a modalidade esportiva mais praticada do planeta e a vida de um ilustre grande homem.

Notas

3 A seleção brasileira que disputou a Copa do Mundo de Futebol Masculino da FIFA-1982 é considerada como uma das melhores equipes do Brasil de todos os tempos, mesmo sem conseguir o êxito esperado em tal competição.

4 O termo aqui reproduzido a partir do texto de Claussen não encontra consonância direta com o famoso termo utilizado por Howard Becker (2008) em suas análises sociológicas. Enquanto o outsider deste sociólogo pode ser suscintamente definido como referente àquele que não vive de acordo com certa regra de determinado grupo, sendo um desviante que se encontra além das margens de tal grupo, o uso de Claussen tende a significar “azarão”. Portanto, refere-se aos times ou jogadores dos quais não se espera vitória. Entretanto – e aqui cabe destacar a brilhante tradução –, o autor alemão brinca com a ambiguidade da palavra, pois é de extrema importância para ele que ela também se refira a alguém de fora, um forasteiro, um imigrante (em dadas situações).

5 Interessante notar que a circulação de técnicos e jogadores entre países já era tamanha naquela época que Guttmann não é sequer o primeiro técnico húngaro a treinar uma equipe do Brasil. Diversos nomes foram bem-sucedidos aqui antes dele. É o caso de Eugênio Medgyessy, que treinou o Botafogo em 1926, antes de passar por Fluminense e São Paulo. O Botafogo também fora multicampeão com Nicolas Ladanyi na primeira metade da década de 30 do século XX. E ainda vale lembrar do trabalho de Izidor Kürschner, no Flamengo de 1937, que influenciou a seleção da Copa de 1938 (STEIN, 2014).

Referências

BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

CAMPOS, Flávio de. A política no pódio: episódios de tensões e conflitos nos Jogos Olímpicos da Era Moderna. In: Revista USP, São Paulo, n. 108, janmar,11-20, 2016.

HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence (Org.). A invenção das tradições. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2008.

LEITE LOPES, José Sérgio. A vitória do futebol que incorporou a pelada. In: Revista USP, São Paulo, n. 22, 64-83, 1994.

______. Esporte, emoção e conflito social. In: Mana, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 1, 141-166, 1995.

STEIN, Leandro. Béla Guttmann: último mestre húngaro a transformar o futebol brasileiro. Trivela, 2014. Disponível em http://trivela.uol.com.br/bela-guttmann-o-terceiro-e-ultimo-mestre-hungaro-transformar-o-futebolbrasileiro/. Acesso em 15 dez. 2016.

TWEEDALE, Alistair. Manchester United return to top of rich list, ending Real Madrid’s 11-year hold on first place. The Telegraph, 2017. Disponível em http://www.telegraph.co.uk/football/2017/01/19/manchester-unitedreturn-top-football-rich-list-ending-real/. Acesso em 19 jan. 2017.


Resenhistas

Luiz Felipe de Oliveira – Mestrando em Antropologia Social. Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: luiz_f_17@hotmail.com

Wagner Xavier de Camargo – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: wxcamargo@gmail.com


Referências desta Resenha

CLAUSSEN, Detlev. Béla Guttmann: uma lenda do futebol no século XX. Trad. Daniel Martineschen e Alexandre Fernandez Vaz. São Paulo: Estação Liberdade, 2014. Resenha de: OLIVEIRA, Luiz Felipe de; CAMARGO, Wagner Xavier de. Béla Guttmann e o futebol no século XX. Recorde: Revista de História do Esporte, v.10, n.2, jul./dez. 2017. Acessar publicação original [DR]

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