Ao contrário do que a combinação do título (Before the Flood) e da imagem da capa (uma foto da usina de Itaipu) pode sugerir, o livro do historiador Jacob Blanc não é prioritariamente uma história do que há quase 50 anos era propagandeado como o “projeto do século” (Itaipu Binacional). Trata-se de uma história social centrada na narrativa de três grupos-chave (pequenos proprietários de terras, trabalhadores rurais sem a posse da terra e indígenas Avá-Guaranis) que lutaram contra o significado essencial da construção do reservatório de águas da usina: a perda do lugar onde habitavam. De acordo com o autor, cerca de 40 mil pessoas foram removidas para dar lugar ao maior lago artificial do mundo, com mais de 1300 quilômetros quadrados (p. 3; 122).
O livro explicita dois objetivos principais. O primeiro é mostrar como as pessoas do Oeste do Paraná experimentaram a Ditadura Militar no interior do Brasil. Para tanto, nos três primeiros capítulos, respectivamente, o autor escreve sobre as raízes geopolíticas e militares do projeto Itaipu; sobre como o “projeto do século” foi acompanhado por fortes mobilizações na mídia em uma “batalha pela opinião pública”; e sobre as experiências de trabalhadores rurais do interior do Brasil com os conceitos de ditadura e democracia. Essa primeira parte do livro apresenta uma narrativa mais linear, desde as primeiras negociações sobre o uso conjunto do rio Paraná por Brasil e Paraguai (década de 1960), até a formação do reservatório de Itaipu (1982).
O segundo objetivo do livro é observar certos movimentos de base para revelar uma mudança de significados de terra e de legitimidade.
Concernente a esse objetivo, uma segunda parte do livro reúne os capítulos seguintes nos quais se encontra os traços de histórias mais específicas. Além da experiência de jornalista denominado “o último preso político” (capítulo 5), que se conecta com a narrativa das lutas de pequenos proprietários contra a política de expropriação da Itaipu, os capítulos 4, 6 e 7 tratam dos mencionados grupos de pequenos proprietários, indígenas e sem-terras.
Para o grupo dos pequenos proprietários, há o destaque para o fato de serem descendentes de europeus chegados à região após a década de 1960. Compreendiam a terra como propriedade privada e sua luta (com acampamentos em protesto contra a Itaipu) foi centrada na busca por melhores indenizações às suas propriedades (p. 61; 70). Há fartos materiais que documentam essa luta dos agricultores contra a política de expropriação da Itaipu, que, entre 1980 e 1982, agruparam-se sob o Movimento Justiça e Terra (MJT). Nesse aspecto, Jacob Blanc lança mão de uma explicação segundo a qual “a experiência de deslocamento em Itaipu foi definida principalmente pelo relacionamento com a terra” (p. 84).
Nesse sentido, o MJT foi um movimento importante, mas excluiu os outros dois grupos-chave compostos por indígenas e sem-terras. O autor dedicou o capítulo 4 a tratar dos indígenas Avá-Guaranis, que eram um número pequeno de cerca de 20 famílias, mas sua relação com a terra era bastante distinta dos demais grupos. Os indígenas compreendiam a terra como um way of life e a defenderam não somente como indígenas, mas também como cidadãos brasileiros lançando mão de recursos legais existentes na época (p. 129). Ainda que este capítulo pareça destoante dos demais, nele o leitor encontrará um detalhamento de como a direção da Itaipu tratou a problemática questão indígena no contexto da formação do lago.
Assim como os indígenas, os sem-terra também ficaram de fora dos objetivos definitivos do MJT. Ao contrário dos pequenos proprietários, aqueles que não tinham a posse da terra se viram em uma situação complexa.
Às vésperas de formar-se o reservatório, poucas opções sobravam para aqueles que não receberiam compensação pela inutilização das terras nas quais trabalhavam e residiam. Nesse sentido, as reivindicações desses trabalhadores promoviam o debate sobre a reforma agrária em um contexto de abertura democrática e de demanda pela terra enquanto direito coletivo (capítulos 6 e 7). Para o autor, é nesse contexto de demandas à Itaipu que deve ser buscada a origem do Movimento Sem Terra (MST), que não por acaso foi fundado no Oeste do Paraná em 1984 (p. 219).
Portanto, ao abordar esses três grupos-chave em função do projeto de Itaipu, o livro torna-se uma referência importante para a compreensão do Oeste do Paraná entre as décadas de 1970 e 1980. Em outras palavras, a visibilidade do Brasil rural é sinônimo da visibilidade da realidade agrária do Oeste do Paraná. Nesse sentido, a leitura de Before the Flood é também uma oportunidade para revisitar a História do Paraná. Além da conexão dos acontecimentos com os movimentos sociais pela terra em nível nacional, especialmente o MST, outros dois insights a propósito da história regional parecem oportunos.
Primeiro, o MJT foi um movimento que caracterizou uma luta considerada aceitável para os padrões da época. Oficialmente, o movimento se colocava como sendo formado por proprietários rurais que não eram contra o projeto do governo, mas pediam melhores indenizações por suas terras. A esse respeito, o autor traz vários exemplos de como a questão era tratada por Itaipu. Em relação ao preço do pagamento, mesmo após reajustes, uma pesquisa de um instituto estadual concluiu que Itaipu pagava 30% abaixo do preço de mercado (p. 113). Portanto, a demanda parecia justa a diversos setores da sociedade, especialmente aos políticos. Na disputa por espaço nacional, o MJT contou com a simpatia de movimentos sociais dos grandes centros do país, da mídia nacional, e principalmente de políticos como, dentre outros, os paranaenses José Richa e Álvaro Dias (p. 123). No âmbito da política, talvez o caso mais emblemático seja a disputa travada entre o Diretor da Itaipu e o Governador do Paraná. O General Costa Cavalcanti e Ney Braga, respectivamente, eram considerados possíveis candidatos à Presidência da República, lidavam com o MJT travando um debate discursivo de olho em possíveis resultados eleitorais (p. 110).
Esse aspecto da história política do Paraná possui considerável espaço para ser explorado, assim como o outro insight sobre história regional.
De acordo com o autor, no centro da relevância do MJT em pleitear uma demanda aceitável estava a questão racial. No discurso oficial do movimento, os pequenos proprietários de terra eram descendentes de europeus que fixaram residência na região após a década de 1960. Ainda que Jacob Blanc confronte essa versão à luz de fontes (p. 93), em mais de um ponto no livro ele indica que ser eurobrasileiro era um elemento influenciador de decisões e tratamentos (p. 60; 93; 168; 186). Os próprios membros do MJT reconheciam as diferenças irreconciliáveis com os indígenas e sem-terras.
Aqueles pequenos proprietários consideravam tanto os indígenas quanto os sem- terras como personagens com os quais já tinham travado disputas pela defesa de suas propriedades privadas (p. 87).
Em geral, o contexto acadêmico do autor não o levou a considerar a dimensão de sua contribuição para a história do oeste do Paraná. Sem que a importância de seu livro seja por isso diminuída, um conhecedor da História do Paraná poderá notar a ausência de uma bibliografia clássica sobre a região.
O livro de Ruy Wachowicz foi igualmente escrito sob o contexto before the flood e sua ausência na análise da história deixa uma lacuna em relação à origem daqueles que viviam às margens do rio Paraná e não detinham a posse da terra. De acordo com Wachowicz, aquelas pessoas eram remanescentes do fim do extrativismo natural (erva-mate e madeira) que predominou na economia do final do século XIX até meados do século XX, quando então chegaram os agricultores eurobrasileiros (WACHOWICZ, 1982).
Ao contrário do que ocorre em relação à História do Oeste do Paraná, é pertinente a expectativa de que o autor dialogasse com um novo campo de estudos históricos sobre a tríplice fronteira Argentina, Brasil e Paraguai.
Jacob Blanc, juntamente com Frederico Freitas, organizaram uma coletânea intitulada Big Water: The Making of Borderlands Between Brazil, Argentina and Paraguay. Na introdução à coletânea, os organizadores defenderam esse novo campo no âmbito dos Latin American Studies por se tratar de “uma das áreas mais dinâmicas e menos estudadas” da América Latina (BLANC e FREITAS, 2018, p. 6).
Em resumo, a proposta de um novo campo de estudos históricos reuniria uma vasta área territorial não delimitada por Estados Nacionais, mas por processos históricos transnacionais. Essa “fronteira histórica” abarcaria desde Assunção (Paraguai), passando por todo o território de Missiones (Argentina), partes do Paraná, do Mato Grosso do Sul, de Santa Catarina, e do Rio Grande do Sul. O recorte temporal inclui desde os Jesuítas e Guaranis no passado colonial; passando pela demarcação dos Estados Nacionais pós-independências nacionais; por projetos nacionalistas dos anos 1930 (especialmente Parques Nacionais); até chegar nos planos estatais de desenvolvimento após 1950. A publicação de Before the Flood é, portanto, um convite a indagar como o autor dialoga com essa proposta contida em Big Water.
De modo amplo, pode-se dizer que Before the Flood contribui diretamente para esse novo campo de estudos históricos ao ter como objeto os antecedentes da formação do reservatório da Itaipu, ambos no território que compreende a região delimitada como tríplice fronteira. Em termos políticos, o “projeto do século” foi possível mediante ações que consideravam a geopolítica regional, tendo a questão de Itaipu levado o Brasil a superar a Argentina como principal potência regional (p. 24), em um contexto de debate entre ditadura e volta das democracias na América Latina. Logo, se dentro da estante dos Latin American Studies há um nicho para uma nova área denominada South American Triple Frontier (BLANC e FREITAS, 2018, p. 9), o livro de Jacob Blanc certamente estará lá.
Contudo, de modo mais específico, constata-se que o autor não faz referência ao possível novo campo de estudos. Isoladamente, essa ausência não representa um problema, mas na única referência que o autor faz à tríplice fronteira como uma região (capitulo 4) há pelo menos duas inconsistências em relação à proposta do novo campo South American Triple Frontier. A primeira está no próprio uso do termo que é mencionado como “the triplefrontier zone” e “the triple-border region” (p. 130). Seria mais consistente a problematização e a adoção de um conceito que de fato represente o novo campo de estudos. A segunda inconsistência é a exclusiva associação do conceito de tríplice fronteira à questão indígena. Pontualmente, a ferramenta conceitual foi utilizada apenas para justificar que dois grupos de indígenas guaranis (Mbya e Ñandeva) circulavam pela região muito tempo antes da formação dos Estados Nacionais. Portanto, Before the Flood poderia ter tido uma contribuição mais específica a esse possível novo campo histórico de estudos dentro dos Latin American Studies.
A título de considerações finais, vale ressaltar que por sua qualidade e relevância seria bem-vinda uma tradução de Before the Flood para o português. A história de centenas de trabalhadores rurais que viveram (muitos dos quais ainda vivem) no Oeste do Paraná “antes da inundação” está contemplada nas páginas do livro. Trata-se de uma leitura mais que oportuna às vésperas de se completar o primeiro cinquentenário da usina.
Igualmente oportuno é o diálogo entre democracia e desenvolvimento regional, em um momento no qual a Itaipu Binacional voltou a ser dirigida por quadros militares.
Referências
BLANC, J.; FREITAS, F. Big Water: The Making of Borderlands Between Brazil, Argentina and Paraguay. Chicago: University of Arizona Press, 2018.
WACHOWICZ, R. Obrageiros mensus e colonos: história do oeste paranaense. Curitiba: Vicentina, 1982.
Resenhista
Micael Alvino da Silva – Professor Adjunto, Instituto Latino-Americano de Sociedade Cultura e Política, subárea de Ciência Política e Relações Internacionais. E-mail: micael.silva@unila.edu.br
Referências desta resenha
BLANC, Jacob. Before the Flood: The Itaipu Dam and the Visibility of Rural Brazil. Durhan and London: Duke University Press, 2019. Resenha de: SILVA, Micael Alvino da. A Usina de Itaipu e o Brasil rural. História: Questões & Debates. Curitiba v. 69, n. 2, p. 251-256, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [IF]
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