Becoming Black Political Subjects (T. S. Paschel)
01PASCHEL, Tianna S. Becoming Black Political Subjects: Movements an Ethno-Racial Rights in Colombia and Brazil. New Jersey: Princeton University Press, 2016. 311p. Resenha de GARRIDO, Mírian Cristina de Moura. História v.36 Franca 2017.
O estudo das relações raciais e do movimento social negro tem se alargado nas últimas duas décadas1. Em grande medida, pelo sucesso dos ativistas em pressionar governos, transformando demandas em legislações. No Brasil, é o caso da aprovação da Lei 10.639 de 2003, que determina a introdução da História e Cultura da África e dos afro-brasileiros nos currículos escolares. Aquela foi a segunda lei decretada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e uma antiga reivindicação do movimento negro – o Movimento Negro Unificado, por exemplo, já trazia a questão no Ato Público de 7 de julho de 1978.
Becoming Black Political Subjects insere-se na compreensão do movimento negro contemporâneo pelo viés transnacional. Ou seja, rompe com a concepção que ativistas negros, por influência do imperialismo estadunidense, agem em seus países locais2, observando como válida a noção de que existe – dado o caráter globalizado do contexto atual – uma circularidade de informações sobre diferentes realidades e lutas contra o racismo e suas consequências, sendo essas (re)interpretadas de acordo com as realidades e referências locais, bem como colocadas em termos de atuação política por esses ativistas. Para tanto, a autora toma como exemplo o processo de organização da militância na Colômbia e no Brasil e o desenvolvimento da atuação dessas entidades negras, fenômenos que ocorreram ao longo das décadas de 1970 a 2010. O uso da abordagem comparativa é um elemento que reforça a impossibilidade de se pensar movimentos sociais como cópias de modelos, uma vez que demonstra as especificidades desses movimentos em dois contextos distintos – Brasil e Colômbia -, ao mesmo tempo em que aponta as similaridades possíveis.
Ademais, o objetivo da autora é demonstrar o processo no qual a negritude (blackness) se torna legítima como categoria de contestação frente ao Estado, tornando esses militantes poderosos atores políticos. Destaca-se para a escolha dos países a serem analisados o fato de ambos terem, nos anos 1990, legitimado as demandas do movimento negro em suas legislações, muito embora a constituição e o imaginário de raça para ambos se configurem de forma distinta. No Brasil, um projeto bem-implementado de “brasilidade” resultou na negação do racismo e a concepção de pertencimento dos diferentes a uma raça específica; na Colômbia, houve a negação da existência do próprio negro, tendo a sociedade colombiana edificado sua hereditariedade racial da mistura entre indígenas e europeus. Somado a isso, a pesquisadora identifica o caráter mais regional e rural para o movimento colombiano, enquanto no Brasil ele teria se formado, em grande medida, nos centros urbanos e disseminado em diferentes regiões do país.
O livro é composto por oito capítulos. A construção do texto é elaborada de forma cronológica, permitindo que o leitor tenha a oportunidade de compreender como se constituiu o movimento negro e as diferentes fases que o levaram a se tornar agente político importante dentro do Estado. A autora demonstra domínio da bibliografia sobre raça e movimento social, tendo entre suas referências pesquisadores dos dois países, além dos brasilianistas que se debruçaram sobre o tema. Além disso, ressalta-se o esforço de Tianna Paschel que, ao longo de dez anos de pesquisa, realizou inúmeras viagens para Brasil e Colômbia e entrevistou ativistas de diversas entidades e políticos ligados a eles, como Benedita da Silva (atualmente deputada federal pelo PT-RJ, e ex-vereadora, governadora, deputada e senadora, cuja assessoria do primeiro mandato contava com a experiência da militante e acadêmica Lélia Gonzalez).
O primeiro capítulo, “Political field alignments”, toma o corpo de uma introdução à obra. Dessa forma, a autora busca explicar o objetivo geral de seu esforço, compreender como a negritude tornou-se legítima como categoria de contestação frente ao Estado, por conseguinte ator político. Ao mesmo tempo, busca definir elementos gerais que teriam tangenciado esse fenômeno. A autora é enfática na recusa da visão imperialista sobre a ação da militância, mas indica a importância do contexto internacional de garantia de direitos e a estratégia de ativistas colombianos em utilizar-se das discussões acadêmicas internacionais e legislações existentes em âmbito internacional, como legitimadoras de suas próprias demandas.
Em “Making mestizages”, a autora, que escreve para o público estadunidense, explica como o conceito de raça se construiu nos dois países alvo de sua análise. No caso brasileiro, a pesquisadora aponta os caminhos que levaram à interpretação da degeneração da sociedade (Oliveira Vianna e Nina Rodrigues) e à construção de uma teoria na qual as relações raciais no país, desde a colonização, se deram de maneira mais harmoniosa, formando o que conhecemos por “democracia racial”. Cientificamente identificada como criação de Gilberto Freyre, mas amplamente divulgada pelo governo varguista, para o qual interessava retirar o estigma da mão de obra. O caso da Colômbia é menos familiar para pesquisadores das relações raciais no Brasil, mas a autora auxilia com propriedade na sua compreensão. Assim como em outros países, houve movimentos eugênicos por parte dos intelectuais e leis de restrição de imigração. Contudo, nunca houve um “pai”, termo por ela usado, da teoria do “mestiço”, como no caso brasileiro. Mesmo assim, no discurso oficial e no imaginário coletivo, definiu-se a exclusão dos negros na constituição da concepção de nação, e ser colombiano passou a significar ter sangue europeu e indígena. Em tradução livre, a autora define: “Se o Brasil fosse um caldeirão de culturas, a Colômbia seria uma colcha de retalhos” (PASCHEL, 2016, p. 46).
O terceiro capítulo explora a formação do movimento negro em um “campo sem cor” (colorblind field). Paschel busca reconstruir o meio pelo qual ativistas passam a se organizar em um campo no qual suas demandas são vistas com descrédito; afinal, não haveria um problema racial nos dois países. Ao mesmo tempo, a socióloga identifica que em ambos os países o envolvimento dos militantes se inicia por outros meios, que não envolvem a questão racial, ou seja, esses indivíduos começam a mobilizar-se em entidades religiosas, políticas, cujas demandas muitas vezes envolvem a questão de classe. Somente com a experiência adquirida, esses homens e mulheres começam a vislumbrar a possibilidade de organizações eminentemente raciais, cujas bandeiras giram em torno da luta contra o preterimento racial negro. As principais entidades negras do Brasil (MNU, UNEGRO, CONEM, Geledés, Ceert) e colombianas (Cordobismo, Hola Negro, Cimarrón) são abordadas na sua constituição e demandas apresentadas. O capítulo ainda ressalta que as referências desses ativistas circunscreviam as lutas africanas pela independência, o Movimento por Direitos Civis dos Estados Unidos, o Partido dos Panteras Negras, bem como leituras que se realizavam em diferentes continentes, como Franz Fanon e Aimé Césaire.
O capítulo seguinte, “The multicultural alignment”, indica o papel que a discussão sobre o multiculturalismo, de uma forma global, teve na aprovação de demandas locais nos dois países. A observação recai sobre a organização de ativistas na construção das Constituições de seus países (1988, Brasil e 1991, Colômbia), indicando como salto qualitativo o reconhecimento do direito de posse e exploração dos recursos das terras quilombolas. Para a pesquisadora, sua análise indica que os congressistas não tinham dimensão do território a ser “cedido” e, em grande parte, isso explica a dificuldade de efetivar essa regularização, assunto que será tratado novamente em capítulos subsequentes. No caso colombiano, somam-se as dificuldades enfrentadas pelo Estado com a guerrilha e os cartéis do narcotráfico.
No quinto capítulo, denominado “The racial equality alignment”, ressalta-se que a situação e as demandas que envolviam os negros urbanos ainda estavam por ser melhor compreendidas e absorvidas pela legislação. Para a autora e boa parte dos estudos que envolvem ganhos do movimento negro, a Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, ocorrida em 2001, representou uma melhora substancial na forma que ativistas, entidades e demandas passaram a ser interpretadas. Dito de outra maneira, a atuação e ratificação das reivindicações militantes na Conferência Internacional trouxeram maior credibilidade ao discurso do movimento negro e, ao mesmo tempo, permitiram-lhe maior representatividade junto aos Estados.
Em “Navigating the ethno-racial State”, Tianna Paschel argumenta que à medida que a pesquisa se aproxima temporalmente dos anos 2010, o movimento negro, em ambos os casos, se aproxima do Estado. Inclusive, fisicamente com suas instituições ou ocupando cargos em Ministérios, caso da ativista e socióloga Luiza Barros (1953-2016), na época da entrevista Ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Ao longo do capítulo, delineiam-se as disputas ideológicas das entidades negras, tal como a aceitação ou não do financiamento de agências financeiras para manutenção do movimento negro e suas atividades. Ao mesmo tempo, o período presencia a formação de organizações não governamentais cuja proximidade com essas entidades internacionais permitiu a manutenção dessas entidades (desde o aluguel até as atividades desenvolvidas para promoção de suas demandas) e a profissionalização dos ativistas (parte deles, inclusive, passa a participar do meio acadêmico por intermédio da formação facilitada). O caso colombiano seria um pouco mais conflituoso na medida em que o Estado ainda tinha que lidar com a violência interna, bem como uma não definição clara na eleição de militantes negros na participação de Conselhos de Comunidade, que lhes garantia assentos no Congresso. Mas a despeito dos conflitos e dificuldades, principalmente nos anos 2000 ocorreu larga aproximação dos ativistas com o corpo burocrático do Estado.
O capítulo sete, “Unmaking black political subjects”, objetiva apreender a extensão das leis destinadas à comunidade negra e as possibilidades de mudança nessas sociedades a partir da implementação daquelas leis. Para a autora, no conjunto de demandas e promessas, ainda que com limitações, duas áreas parecem realmente institucionalizadas: a construção de uma educação étnica e a demarcação do território de quilombos. As limitações, em grande medida, correspondem às dificuldades que essas áreas possuem de enfrentar os interesses econômicos de grupos sociais mais bem privilegiados, seja no acesso à universidade pública no Brasil ou no direito de extração de minérios, na Colômbia. Conjuntamente, a autora indica a forte reação da classe média, que se posicionou contra os ganhos das militâncias negras. Para exemplificar, ela cita a carta “Todos temos direitos iguais na República Democrática”, de 29 de junho de 2006, direcionada ao Congresso, e a reação dentro do espaço acadêmico, no qual alguns pesquisadores emprestam seu prestígio e empenho argumentando contra as políticas afirmativas.
O último capítulo, “Rethinking race, rethinking movements”, oferece uma reflexão a título de considerações finais. Ao abordar os famosos rolezinhos – encontros de jovens da periferia, marcados pelas redes sociais, geralmente em shoppings e contra os quais houve forte reação das administrações desses espaços e da polícia militar -, ocorridos em sua maioria em 2014, a autora visualiza nessas manifestações, em especial na reação contra sua repressão, um alargamento das discussões sobre o preterimento racial, fenômeno que credita aos anos de articulação e funcionamento do movimento negro. Fato é que sensivelmente os mitos da democracia racial ou da inexistência do elemento negro na formação da sociedade colombiana caíram por terra. A questão que Tianna levanta é interessante: como entidades que não possuíam estruturas organizadas, não contavam com apoio da elite ou da opinião pública, nem mesmo tinham habilidade de mobilizar grandes massas (à exceção de momentos esporádicos, como a Marcha Zumbi dos Palmares, em 1995), conseguiram que o Estado as ouvisse? A resposta da pesquisadora envolve o conceito de transnacionalidade, já abordado neste texto. Portanto, discursos internacionais em defesa dos direitos humanos, somados à possibilidade de financiamento internacional, teriam auxiliado a articulação do movimento negro em diferentes países. Ainda assim, Brasil e Colômbia configuram exemplos dentro da América Latina de legislações e ações governamentais mais bem definidas em relação à reversão do preterimento histórico das comunidades negras, apesar das limitações apontadas ao longo do livro, tais como conflitos nacionais, embate com narcotráfico, reação das elites etc.
Tianna Paschel doutorou-se em Sociologia pela Berkeley (2011), Universidade da Califórnia, instituição à qual está vinculada no Departamento de Estudos Afro-Americanos. Pela atualidade de seu texto e densidade de sua pesquisa, o livro de Paschel necessita em breve de uma tradução para o português, o que possibilitará o maior acesso ao texto que, acredito, em breve se tornará referência indispensável aos que desejam entender o movimento social negro como ator político na contemporaneidade.
Referências
ALBERTI, Verena; PEREIRA, Amilcar Araújo. Histórias do movimento negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: Pallas, CPDOC-FGV, 2007. [ Links ]
ANDREWS, George Reid. América afro-latina 1800-2000. São Paulo: EDUFSCar, 2014. [ Links ]
ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). São Paulo: EDUSC, 1998. [ Links ]
BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loïc. The Cunning of Cultural Imperialism. Theory, Culture and Society, v. 16, n. 1, p. 41-58, 1999. [ Links ]
HANCHARD, Michael George. Orfeu e o poder: movimento negro no Rio de Janeiro e São Paulo. (1945-1988). Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2001 [1994]. [ Links ]
HASENBALG, Carlos. Discriminações e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979. [ Links ]
HASENBALG, Carlos; SILVA, Nelson do Valle. Estrutura social, mobilidade e raça. São Paulo: Vértice/IUPERJ, 1988. [ Links ]
HOFBAUER, Andreas. Uma história do branqueamento ou o negro em questão. São Paulo: Ed. Unesp, 2006. [ Links ]
PEREIRA, Amilcar. O mundo negro: relações raciais e a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, Faperj, 2013. [ Links ]
1Destaco aqui: ANDREWS (1998; 2014); HANCHARD (1994); HASENBALG (1979); HASENBALG; SILVA (1998); HOFBAUER (2006); PEREIRA (2013); PEREIRA; ALBERTI (2007).
2Viés defendido por BOURDIEU; WACQUANT (1999).
Mírian Cristina de Moura Garrido – Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, campus Assis. Av. Dom Antônio, 2100 – Parque Universitário, Assis – SP, 19.806-900. E-mail: miriancristinagarrido@gmail.com.