O bandeirantismo e a história das bandeiras paulistas já foi um tema nobre na pesquisa histórica brasileira, do século XVIII, quando surgiriam as primeiras descrições circunstanciadas sobre o assunto, até as primeiras décadas do século XX (ABUD, 1985). Mas, com a afirmação e consolidação dos estudos históricos nas universidades, tais estudos foram, aos poucos, sendo deixados em segundo plano, em função da diversificação das abordagens, das variações dos temas pesquisados e do maior volume de estudos sobre outras regiões do país. Entretanto, nos últimos vinte anos, novamente o tema tem despertado a atenção dos pesquisadores, mas com o fim, não de vislumbrar a importância da capitania, depois, província, e atualmente estado de São Paulo, junto a Federação, e sim com o propósito de inquirir quais as marcas que aquele empreendimento deixou em outras regiões, como os letrados do passado fizeram uso de certas estratégias para abordar o passado e o visualizar como opção a ser reproduzida no presente, quais as relações entre o local, o regional e o nacional, de que maneira se constituíram as fronteiras territoriais e como o bandeirantismo serviu de base para a construção de uma identidade regional, na qual São Paulo se veria distintamente do resto do país.
Nessas circunstâncias, para Antônio Celso Ferreira (2002) o período de 1870 a 1940 teria representado, na historiografia paulista, o momento de auge na produção de uma história do bandeirantismo, entre os letrados e as instituições, constituindo-se numa época de conformação da “epopéia bandeirante”. Para ele:
As letras históricas paulistas, congregando um arco de manifestações discursivas inter-relacionadas, no qual germinaram a historiografia e a literatura, constituíram-se como meios privilegiados de edificação de um saber sobre a terra e a gente de São Paulo, antes do advento de saberes profissionalizados desde os anos de 1940. Elas expressaram a busca de uma identidade regional no espaço amplo e movediço da modernidade, voltando-se simultaneamente para o passado e para o futuro. Na recriação (sempre mítica) do passado, elas buscavam as energias capazes de garantir coesão social e durabilidade cultural para uma sociedade acometida por intensas e rápidas mudanças. Ao se projetarem para o futuro, deixaram entrever os conteúdos utópicos próprios aos regionalismos e nacionalismos (2002, p. 353).
Ao buscar rever o tema do bandeirantismo na historiografia, Márcio Santos (2009) acrescentará a avaliação de Ferreira, que o tema basicamente esteve permeado por uma abordagem “tradicional”, que visualizaria “um passado paulista glorioso, no qual o bandeirante exerceria o papel de elemento desbravador e integrador do interior do território nacional” (2009, p. 29). Mas, se a “maioria dos Históriadores do período lastrearam seus estudos no mito do herói bandeirante, é de assinalar que houve pelo menos um estudioso importante – Capistrano de Abreu – que fez o movimento contrário, revelando na ação do sertanista de São Paulo o que ela teria tido de negativo e condenável”. No mesmo caminho, “Alcântara Machado é outro autor que se pode destacar do conjunto da produção historiográfica do período, por ter se distanciado da perspectiva valorativa da ação do bandeirante, para apontar as condições materiais objetivas que definiram a existência paulista no Seiscentos” (p. 30).
Em vista disso, preocupou-se em circunstanciar as principais características daquela abordagem, em que se encontrariam: Teodoro Sampaio, Pandiá Calógeras, Capistrano de Abreu, Basílio de Magalhães, Oliveira Vianna, Alfredo Ellis Júnior, Afonso de Taunay, Cassiano Ricardo, Jaime Cortesão e Vianna Moog, que “articulam a heroicização da figura do bandeirante vicentino a uma defesa fortemente regionalista dos valores e da história do Estado de São Paulo” (p. 42). Num percurso distinto estariam às abordagens de Alcântara Machado e Sérgio Buarque de Holanda, que visualizariam nem “heróis que cumprem um destino glorioso, nem monstros condenáveis por suas ações imorais”, mas sim “mestiços paulistas, homens concretos as voltas com recursos escassos, que lhes exigiram deixar seus povoados e sítios e enveredar pelo sertão em busca de mão-de-obra indígena [e metais preciosos]” (p. 47).
Após rastrear as principais linhagens historiográficas sobre o bandeirantismo, e de que maneira se propagavam, se metamorfoseavam e se dissolviam no tempo, além de indicar suas aproximações com os trabalhos de Sérgio Buarque de Holanda e John Manuel Monteiro, levanta a hipótese: “os casos de fixação paulista no sertão nordeste, com a conseqüente formação de sociedades de base pecuária, são um contraponto à mobilidade bandeirante e permitem relativizar o caráter itinerante das incursões vicentinas pelo interior da América portuguesa”, uma vez que além de “exploradores e conquistadores envolvidos com o apresamento indígena e a pesquisa mineral, os paulistas também foram, em determinadas regiões do interior, colonizadores responsáveis pelo estabelecimento de núcleos povoadores permanentes” (p. 23). Como procura demonstrar, ao estudar o médio superior São Francisco e o Verde Grande, que “compreende lugares de formação antiga, resultantes da associação entre a exploração bandeirante paulista e a expansão pecuária, como Guaicuí, São Romão, São Francisco, Pedras de Maria da Cruz, Januária, Manga, Matias Cardoso e Montes Claros [no estado de Minas Gerais]” (p. 24). Para tanto, propõe um estudo circunstanciado do período de 1688 a 1734, quando se iniciam os registros documentais sobre a região, e quando ocorreram as primeiras viagens exploratórias do sertanista Joaquim Quaresma Delgado.
Nesse sentido, abordaria o contexto de fixação dos povoados na região, como foram as incursões bandeirantes no período, e de que maneira a pecuária se colocaria como estratégia de manutenção e consolidação dos povoados ao longo do tempo. Mas, como indica:
A força econômica do setor meridional da zona pecuária nordestina na primeira metade do século XVIII, representada pelas inúmeras fazendas de gado e povoações que surgiram nas margens dos rios e nos campos da região estudada, pouco seria sem os caminhos terrestres e as rotas fluviais que a percorriam naquele período. As vias terrestres e os cursos fluviais possibilitavam a conexão da região com os diversos territórios coloniais da América portuguesa, entre eles as áreas mineradoras das Minas Gerais e de Goiás, as vias paulistas, o Recôncavo Baiano e as distantes capitanias setentrionais (p. 151).
Assim, o estudo “da região situada entre o médio superior São Francisco e o Verde Grande revelou os elementos dinâmicos da ação colonizadora paulista” (p. 168), dando ainda mais ensejo a desconstrução do mito “bandeirante [que] se fez articulada à ideia de que o comportamento itinerante dos sertanistas de São Paulo era um elemento constitutivo de sua ação nos sertões da América portuguesa” (p. 167).
Por esses motivos, o trabalho em pauta é um belo exemplo da retomada dos estudos sobre o bandeirantismo, mas o circunstanciando de modo complexo no interior da história da historiografia brasileira, para descortinar seus mitos, revelar questões pouco discutidas e espaços ainda muito pouco explorados.
Referências
ABUD, K. O sangue intimorato e as nobilíssimas tradições. A construção de um símbolo paulista: o bandeirante. Tese de Doutorado em História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, 1985.
FERREIRA, A. C. A epopéia bandeirante. Letrados, instituições, invenção histórica (1870-1940). São Paulo: Edunesp, 2002.
Resenhista
Diogo da Silva Roiz – Doutor em História pela UFPR. Professor na UEMS.
Referências desta Resenha
SANTOS, M. Bandeirantes paulistas no sertão do São Francisco: povoamento e expansão pecuária de 1688 a 1734. São Paulo: Edusp, 2009. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. A história da historiografia e o bandeirantismo paulista. Fronteira: Revista de História. Dourados, v.14, n.25, p.185-187, jan./dez. 2012. Acessar publicação original [DR]
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