Entre as grandes metrópoles energéticas contemporâneas marcadas por próspera economia e urbanização global, destaca-se a cidade de Baku, capital do Azerbaijão, nas margens do Mar Cáspio, eixo estratégico entre a Europa e a Ásia, cujo cenário arquitetural combina o antigo e o novo, ao contrário de Dubai a que é comparada. O país é rico em história, já fez parte do império persa, sofreu várias invasões (dos mongóis, entre elas), foi incorporado ao império russo em 1813, passando depois a pertencer à União Soviética, até declarar sua independência em 1991, quando essa dominação foi extinta. Baku conserva construções do século 7, muralhas da cidade fortificada do 12, mesquitas, palácios e minaretes que pontuam o centro antigo.
A cidade viveu o seu primeiro boom petrolífero a partir de 1870, cuja extração e comercialização impulsionou fases de desenvolvimento urbano singular, passando a ser conhecida como a “Paris do Cáspio” em 1901, quando a região era a maior produtora mundial de petróleo, com ampla rede de distribuição transnacional. Segue-se no século 20, um longo período sob o domínio soviético (1920-1991), quando a então “cidade do homem socialista” torna-se um grande centro de experimentos urbanísticos e culturais. Após a independência, Baku liga-se a consórcios internacionais que voltam a investir na área, tornando-a hoje, como no passado, o centro de uma das mais importantes regiões produtivas no mercado global energético do mundo, além de ser um dos territórios urbanos que mais se transformam sob projetos de star-architects (Zaha Hadid e HOK, entre eles). Assim, é palco de um programa de investimento e renovação maciço chamado “White City”, que inclui uma singular mimetização das fachadas urbanas legadas do passado. Empresas de engenharia ocidentais responsáveis pelos canteiros de obras, acrescentam fachadas “clássicas” aos grandes conjuntos de edifícios da era soviética, que se combinam a um skyline típico da arquitetura contemporânea, onde se destacam as três Torres de Chamas (Flame Towers). Parques, praças públicas, museus, teatros e grandes avenidas fazem de Baku “uma das mais belas capitais do mundo” (segundo informes turísticos…), cuja urbanização é marcada por “múltiplas temporalidades, espacialidades, escalas, deslocamentos e contradições implícitas no próprio conceito de paisagens de consumo” (1).
Toda essa história e as etapas da relação petróleo e urbanismo são objeto de um livro primoroso e original de pesquisa e imagens, Baku – Oil and Urbanism (Zurique, Park Books, 2018, 304 páginas, 159 ilustrações em cores e 176 pb), assinado pela professora Eve Blau (2), da Graduate School of Design, da Harvard University, com a colaboração de Ivan Rupnik, arquiteto e professor de design na North-Eastern University (Boston), autor dos inúmeros mapas históricos e analíticos, diagramas e gráficos que acompanham os três capítulos; neles inclui-se um caderno fotográfico do holandês Iwan Bann sobre a arquitetura e o dia a dia das pessoas, documentando a comunidade de Baku em interação com as infraestruturas petrolíferas que permeiam seu ambiente urbano compósito e pleno de contrastes.
Editado no final de 2018, o livro Baku – Oil and Urbanism recebeu o DAM Architectural Book Award 2019 do Deutsches Architekturmuseum na Feira do livro de Frankfurt. Eve Blau é autora de outros livros igualmente premiados, entre os quais: The Architecture of Red Vienna 1919-1934 (2014); Project Zagreb: Transition as Condition, Strategy, Practice (2007), que também conta com a co-autoria de Ivan Rupnik; Urban Form: Städtebau in der postfordistischen Gesellschaft (2003); Shaping the Great City: Modern Architecture in Central Europe (2000); Architecture and Cubism (2001/1997); and Architecture and Its Image: Four Centuries of Architectural Representation (1989).
Analisando três momentos da integração entre desenho urbano e indústria petrolífera, Baku – Oil and Urbanism é o primeiro estudo completo e interdisciplinar de uma estreita e peculiar interdependência, ou de como as condições políticas, econômicas e tecnológicas da produção do petróleo podem caminhar junto com a renovação física urbana em diferentes momentos históricos de uma cidade.
Entre as informações da Introdução que situa a relação do título, “petróleo e urbanismo”, destaco a menção a momentos em que a história do urbanismo liga-se à da mobilidade – por exemplo: graças ao advento do automóvel deu-se a criação de cidades-jardins e a suburbanização. Hoje a urbanização planetária, associando política, poder e transformação dos cenários urbanos pelos petrodólares, trouxe os exemplos de Dubai e Abu Dhabi, cujas diferenças com Baku também são assinaladas. O livro compõe-se de três capítulos, fartamente ilustrados, além do ensaio fotográfico que precede o capitulo III.
O capitulo I, “Oil Baron City” (1870-1918), enfoca as origens e o primeiro boom da indústria petrolífera pelos “barões petrolíferos” locais, que se uniram ao ramo russo da família Nobel (fabricantes de armas de origem sueca), e ao ramo francês da família de banqueiros Rothschild, além da associação com empresas de propriedade britânica, francesa, alemã, belga e grega. O capital estrangeiro e seus mercados articularam-se à economia petrolífera de Baku nos anos 1890, não só modernizando a exploração dos campos petrolíferos por meio de novos conhecimentos e competências, como também trazendo uma evolução diferenciada da cidade, quanto à sua arquitetura, meio ambiente, sociedade, cultura, planejamento urbano e industrial. Baku tornou-se, então, um “laboratório experimental”, com a presença de cientistas especializados que os barões do petróleo e os irmãos Nobel trouxeram – geólogos, engenheiros, químicos europeus fazem da cidade a capital mundial da energia, com uma rede impressionante de distribuição (bem mostrada nos mapas transcontinentais traçados especialmente para o livro por Ivan Rupnik). A cidade transforma-se assim, em um centro próspero da indústria e da cultura, entre os anos 1880 e o começo do século 20. Nesse período deu-se especial ênfase à educação pública, ao bem-estar social, com a construção de hospitais, organizações caritativas, parques e jardins, como o complexo urbanístico dos irmãos Nobel e “barões do ouro negro”, a Villa Petrolea, de 1882 (3), além de escolas técnicas, teatros, bibliotecas, dezenas de jornais e a primeira escola muçulmana para moças. Tais iniciativas e instituições fizeram de Baku uma cidade moderna e cosmopolita com amplas avenidas arborizadas, uma esplanada a beira mar, edifícios públicos monumentais, energia elétrica, redes de comunicação e as instituições culturais mencionadas.
No início desse período, destaca-se também a construção de uma pioneira zona industrial, a Cidade Negra, que Eve Blau qualifica como “o primeiro distrito industrial na história do planejamento russo”, onde se cruzaram infraestruturas do processo de refinamento de petróleo em “um tecido urbano disciplinado e geométrico”, com quarteirões extensos e ruas largas, para facilitar o escoamento da produção. A formação de um proletariado industrial ativo politicamente fez com que, “muito antes da Revolução de Outubro (1917), Baku tivesse a reputação de ser um foco de atividade revolucionária” (4).
O segundo capitulo, “Oil City of Socialist Man”, cobre o período de incorporação de Baku à União Soviética a partir de 1920 até 1991, e mostra a continuidade do planejamento conjunto de uma indústria petrolífera marcada pelas inovações de pesquisa e maquinário. Registram-se financiamentos ao conhecimento científico por um lado, e por outro, promove-se um projeto de cidade baseada em modelos experimentais de planejamento urbano-industrial, projeto habitacional e vasta infraestrutura social e institucional, incluindo habitações, transporte, espaços verdes “para o bem-estar dos trabalhadores”: a “cidade petrolífera do homem socialista”, onde a terra foi socializada e a propriedade urbana passou para as mãos do Estado.
As sete décadas de domínio soviético em Baku são descritas em detalhes no livro, destacando não só os aspectos econômicos da produção, como atores e trajetórias, entre elas a do engenheiro urbanista Aleksandr Ivanitskii (1881-1974, graduado em 1904 pelo Instituto de Engenharia Civil de São Petersburgo), que conhecia a Europa e os Estados Unidos, e introduziu o status profissional de “planejador urbano”, distinto do arquiteto e do engenheiro, além de ter chamado para trabalhar com ele os irmãos Vesnin, arquitetos construtivistas modernos. Juntos eles pensaram as cidades-jardins operárias modelo, como Stepan Razin e o Plano Geral de Baku no final dos anos 1920, que incluía o novo distrito urbano experimental de Armenikend, com as superquadras providas de infraestrutura completa (5).
Todos estes fatos de uma história urbana tão pouco conhecida são analisados por Eve Blau nesse livro, que resultou de seminários em Harvard e no local da pesquisa por meio de viagens e intercâmbios de estudo (6), com indicações de rica bibliografia, inclusive periódicos de época, cujas fotografias inéditas são do maior interesse, como as da revista USSR in Construction, nos anos 1931, que permeiam a narrativa. A maioria dessas reportagens fotográficas mostra a recuperação e o desenvolvimento do complexo urbano-industrial experimental de Baku, as novas condições de trabalho e melhoria da habitação para os operários, depois da nacionalização dos campos de petróleo pela União Soviética. USSR in Construction foi um jornal-fotográfico de grande-formato, publicado entre 1930-1941 em russo, inglês, francês e alemão, e a partir de 1938 também em espanhol, com claros propósitos de difusão e propaganda da indústria petrolífera, sua rede internacional e demais avanços e inovações sob o estado comunista. Maxim Gorky e Aleksandr Rodchenko entre fotógrafos, escritores e demais artistas contribuíram e participaram da produção da revista.
O primeiro Plano Geral de Urbanismo de Cinco Anos (1928-1932) é explicado em detalhes, como uma síntese local do regime socialista, mas baseada em traços dos modelos de planejamento da Europa do Leste e Central, especialmente a partir das lições desenvolvidas em Berlim, como o zoning funcional, infraestruturas, e procedimentos racionais, científicos e integrados para uma metrópole (e sua região) que fosse o exemplo da “cidade para o homem socialista. Este Plano associava a criação de centros industriais ligados a complexos exemplares de moradia, educação, cultura, recreação e saúde. Nesse período foi construída a universidade de Baku, a Academia de Ciências, o Instituto Politécnico, renomeado Instituto Petroquímico, bem como conjuntos de edifícios públicos monumentais, entre eles o palácio do governo na grande praça Lenin.
A invasão dos alemães na guerra causou o deslocamento da extração petrolífera soviética para o Cazaquistão e Turcomenistão, pois Stalin não queria que o petróleo de Baku caísse nas mãos dos nazistas – a estratégia funcionou, pois o exército de Hitler não foi além de Stalingrado. Dificuldades se seguiram no pós-guerra até a construção, em 1949, da primeira instalação de petróleo off-shore do mundo – Neft Dashlari ou Oil Rocks –, que merece considerações detalhadas no livro: uma cidade gigantesca sobre pilotis no Mar Cáspio, com mais de 300 quilômetros de pontes e estradas, 2000 plataformas petrolíferas, oleodutos, mas também edifícios de apartamentos, escolas, bibliotecas, instalações esportivas e outras estruturas sociais urbanas. Esse empreendimento tornou-se o emblema do segundo boom petrolífero de Baku na década de 1960, quando a pesquisa científica em torno da riqueza do petróleo fez da cidade um centro talvez até mais importante do que fora nos anos que antecederam a Segunda Guerra. Embora nos anos 1970 a Sibéria tenha se tornado o principal sitio de exploração petrolífera da Rússia, Baku mantém sua importância graças ao beneficiamento do petróleo, ao planejamento microrregional, e à manutenção da pesquisa científica.
Sob a gestão de Khrushchev deu-se a expansão industrial e a formação de “microrregiões” a partir de 1957 até 1970, objeto de uma análise fina de Eve Blau, tema devidamente enriquecido por fotos, diagramas e mapas. Microrregiões são uma espécie de “unidades de vizinhança”, ou unidades espaciais de 5 a 8 conjuntos habitacionais para 1000 a 1500 pessoas, com acesso a centros comunitários ou amenidades sociais (que, porém, em muitos casos, acabaram não sendo construídas…). A autora baseou-se em fontes raras de época como a revista Arkhitektura SSSR, de 1964, que descrevem a Microregion I com fotografias e plantas reproduzidas no livro.
A concepção de “cidade como região” dominou entre os anos 1969-1973 abrangendo Baku e toda a península de Absheron, como um sistema integrado de produção, inter-relacionando zonas industriais e civic centers em um conglomerado de mikroraiony, com o objetivo de redistribuir e balancear produção e população. O petróleo continuaria a ter um papel determinante no desenvolvimento urbano na República Soviética nos anos 1970-1980, incentivando a construção de habitações populares em larga escala, a restauração da cidade antiga, a construção de edifícios institucionais e hotéis na praça Lenin, fazendo de Baku uma cidade cada vez mais cosmopolita.
Como argumenta Eve Blau, “o legado mais importante do período soviético é a experiência urbano-industrial iniciada em 1920 para planejar juntos o petróleo e o urbanismo, que moldou a experiência vivida do socialismo na cidade” (7). Apesar disso, permaneceu também do século anterior, tanto “o valor atribuído à investigação e às competências dos cientistas e engenheiros da indústria petrolífera soviética”, como “o valor atribuído ao bem-estar dos trabalhadores do petróleo, que resultou na vasta infraestrutura urbana e institucional” em toda Baku.
Durante as políticas de liberalização da perestroika a cidade passou por revoltas, greves e um violento massacre de civis pelas tropas soviéticas sob Gorbachev, episódio conhecido como “Janeiro Negro”, em 1990 – as tensões com Moscou se exacerbaram, resultando na independência politica do Azerbaijão em 1991.
Entre esse capitulo II, que ocupa maior numero de páginas (95) em relação aos capítulos I, de 55 páginas, e o III, de 56 páginas, intercala-se o caderno com o ensaio fotográfico do holandês Iwan Baan (8), de 15 páginas com fotos, nas quais as infraestruturas fora do centro ligadas ao petróleo estão quase sempre presentes na paisagem urbana, ou permeiam cenas da vida diária da população, especialmente de baixa renda. A rede intrincada das tubulações de vários tamanhos acima do solo que canalizam o petróleo, gás e água através das ruas e ao redor dos edifícios, são como “monumentos” que, em múltiplos níveis, representam Baku e seus recursos como bens comuns. Pessoas são retratadas conversando e jogando no meio de uma infraestrutura petrolífera de oleodutos. Fotografias das habitações precárias e em mau estado são o outro lado da moeda das belas fachadas de pedra calcária do “lifting urbano maciço” das últimas décadas. Esse ensaio fotográfico sensível e atento aos habitantes e ao seu ambiente, deve “falar” por si só, já que não foi objeto de análise no livro.
Depois desse caderno fotográfico, vem o capítulo III, “Looking Beyond Oil”, em que Eve Blau trata do período dominado pelos Aliyev, uma vez que o pai Heydar e seu filho Ilham governam o Azerbaijão desde 1993. A transição para o período “pós-socialista” foi marcada pelo caos político, pelo colapso da indústria do petróleo de Baku, juntamente com o resto da economia soviética. Apesar dos soviéticos se apoiarem em técnicos, engenheiros e cientistas, seu legado foi marcado, afinal, por certo atraso tecnológico e sérios problemas ambientais, como a poluição, especialmente a da água e a do solo. Mas, em contrapartida, restava o legado da importância dada ao bem-estar social dos trabalhadores, à infraestrutura urbana e institucional (habitação, transportes, espaços verdes e instituições culturais) que a autora reitera.
Sob o novo governo “semi-autoritário” e liberal buscou-se a consolidação política e econômica de um país independente, ocasião para restaurar a indústria do petróleo por meio de uma diplomacia internacional aberta aos investimentos estrangeiros. Tais iniciativas resultaram no “contrato do século” de 8 bilhões de dólares – e Eve Blau assinala que “entre 2006 e 2008, o Azerbaijão teve a maior e mais rápida economia em crescimento no mundo”, marcada, todavia, pelo avanço da desigualdade social, da gentrificação e corrupção: “grandes lucros e poucos empregos”(9).
Em resenha publicada na Planning Perspectives, lemos que Blau “aponta habilmente o mal-estar de uma cidade que olha para o Ocidente”, na busca de uma imagem de modernidade, “manifestada pelas obras dos star-architects convidados a enriquecer seu skyline e sua reputação, embora arrastando a herança soviética como um fardo” (10). Busca-se, hoje, um paralelo com os “barões do petróleo” que direcionaram seus lucros para a construção de edifícios simbólicos e instituições de representação, mas não apenas, como vimos anteriormente.
Algumas características de “cidade pós-socialista” são inevitavelmente encontradas em Baku. O fato de o último Plano Geral soviético para a cidade não ter sido plenamente executado, deixou uma brecha para a privatização do espaço público para usos comerciais e residenciais privados de alto nível, e a multiplicação de arranha-céus. “Como no passado, o último boom petrolífero de Baku causou um boom na construção” (11). Entre 2000 e 2005 mais de quinhentas torres de 15 a 25 andares e inúmeras outras mais baixas foram construídas, em detrimento das propriedades comunitárias com infraestruturas para o bem-estar público, reapropriadas para outras funções.
Um programa de requalificação (recladding) acrescenta fachadas, ou melhor “conchas” “classicizantes” nos edifícios antigos, recobrindo os painéis Khrushchyovka (12) da era soviética, o que amplia ligeiramente seu espaço interno embora escureça os ambientes, resultando, segundo Blau, em uma “criação hibrida”, pois articula os velhos espaços da era socialista aos novos da era capitalista, inscritos numa espécie de urbanismo denominado “Potemkin Village” (13).
Entre os maiores projetos da atualidade, destaca-se a “White City” concebida pela empresa de engenharia ocidental Atkins e Foster + Partners, que está causando um processo de substituição dos antigos distritos industriais de Baku, onde outrora se encontravam a “Black Town” e a antiga “White Town”, local das refinarias dos irmãos Nobel e da Villa Petrolea no século 19 que, hoje restaurada, tornou-se um museu. A “White City” (14), ocupa 221 hectares no centro de Baku, e é concebida como um novo e vasto Distrito Empresarial Central (em inglês, Central Bussiness District/CBD), composto por dez distritos que transformam o cenário da cidade com torres de escritórios e hotéis, edifícios comerciais, residenciais e culturais, além das novas linhas de metrô, uma linha costeira de trem (VLT) e vias largas, como “o recentemente monumentalizado Bulevar Heydar Aliyev, que está se tornando a espinha dorsal de uma faixa de novos distritos urbanos que irão preencher a área entre o CBD e o aeroporto” (15). Embora Dubai seja, aparentemente o modelo de referência para a White City, Eve Blau destaca que as demolições em grande escala e as desapropriações de milhares de habitações, os tipos dos edifícios com as fachadas de pedra e as grandes avenidas sugerem analogias tanto com a Paris haussmanniana do Segundo Império, quanto com a política dos Grand Travaux da metrópole francesa dos anos 1980.
A autora analisa essa transição de Baku para um “urbanismo pós-petróleo, gerado pelos lucros do petróleo e não pela produção de petróleo”, urbanismo caracterizado por um intenso foco na diversificação da economia (serviços e turismo), e no investimento maciço em projetos assinados por “arquitetos-estrelas”, cujas realizações acabam gerando novas formas de exclusão social e desigualdade econômica, pois, como vimos, os cidadãos e instituições locais são deslocados do centro da cidade para a periferia (16), e há mesmo o risco de desaparecimento do tecido histórico.
Um destaque do programa de renovação da arquitetura urbana de Baku é o Centro Cultural Heydar Aliyev, projetado por Zaha Hadid (concluído em 2012), que foi seguido pelo Museu do Tapete (na forma de um tapete enrolado), projeto do arquiteto austríaco Franz Janz (2014), embora o maior impacto cenográfico seja o das três icônicas “Torres de Chamas” (Flame Towers), as mais altas da cidade, desenhadas por uma das maiores empresas de engenharia/arquitetura mundial, a HOK (2013). Esses novos marcos foram estrategicamente situados para serem objeto de visualização a partir das novas praças, parques, espaços verdes, e não mais como antes, quando eram criados para o bem-estar dos cidadãos de Baku, conforme alerta Eve Blau, mas como “locais de onde se podem ver os arranha-céus e outros edifícios brilhantes que servem de projeção de um espírito internacional. É o internacionalismo importado, não intrincado ou incorporado ao tecido urbano de Baku”, resultando em “indiferenciadas paisagens de consumo do urbanismo pós-petróleo” (17).
Para os empresários locais de Baku, desde o século 19, o petróleo foi um meio não só para a riqueza, mas também para a autodeterminação de transformações constantes que entrelaçaram o desenvolvimento urbano e a infraestrutura energética. Diante do futuro incerto do petróleo, a aspiração do governo e das elites é fazer da sua capital a primeira “cidade petrolífera do século 21 que se volta para o verde”, ou seja, promover o desenvolvimento da cidade e região circundante na península de Baku, utilizando tecnologias de energia renovável e práticas sustentáveis, como a criação de uma série de parques públicos interligados (18).
Eve Blau termina o capítulo III, observando que 100 anos depois, a rede de tubulações multicoloridas que serpenteia a cidade, constitui a presença visível da singular história da experiência industrial, urbana e social de Baku, legado diferente dos centros do capitalismo ocidental. “Os ambientes construídos e naturais da cidade confirmam que ela ainda está enraizada no petróleo e no seu passado socialista, independentemente do que os dignitários políticos atuais afirmam” (19).
Baseado em um projeto de pesquisa interdisciplinar de longo prazo, o livro da professora Eve Blau, Baku – Oil and Urbanism examina as condições políticas, econômicas e tecnológicas em que a produção de petróleo e a formação urbana evoluíram juntas, promovendo a inovação na indústria e criando um ambiente cultural urbano dinâmico único entre os demais locais de extração energética. Este livro denso em conteúdo e fartamente ilustrado por fotografias, mapas explicativos e uma série de documentos inéditos sob diagramação primorosa, “conta pela primeira vez a história da interseção entre uma cidade e sua indústria petrolífera, e revela o significado crítico dessa história, levando-nos a compreender os processos de urbanização global que estão remodelando o mundo contemporâneo” (20).
Notas
1Cf. BLAU, Eve. Oil and Urbanism. Topos, n. 109, Consumption (tema do número), 2019, p. 33. Todas as traduções são da autora da resenha.
2Eve Blau é historiadora da arte, professora no departamento de Estudos Urbanos da Harvard Graduate School of Design (GSD). Ela já foi curadora de exposições e publicações no Centre Canadien d’Architecture, CCA, em Montreal. Como pesquisadora junto a Andrew W. Mellon Foundation, foi responsável recentemente pela pesquisa e exposição internacional, “Urban Intermedia: city, archive, narrative” – uma proposta experimental sobre quatro cidades (Berlim, Boston Istambul e Mumbai), a partir de imagens e em torno de portais temáticos. Eve Blau coordenou comigo uma mesa no Segundo Congresso Ibero-americano de História Urbana, no México, em novembro 2019, em que, junto com professores argentinos, iniciamos pesquisa semelhante sobre São Paulo e Buenos Aires, na qual buscaremos aplicar a mesma metodologia.
3Com o complexo da Villa Petrolea (gênero Garden City), introduziu-se a noção de planejamento urbano intimamente ligada ao petróleo para além do lucro: foi construído um parque público no empreendimento, que continha uma “extensa infraestrutura técnica e cultural para os operários e suas famílias, incluindo além das habitações, escolas, uma biblioteca, bilhar, salas de reuniões, e o primeiro telefone em Baku” – um tipo de projeto integral comunitário que os soviéticos iriam expandir mais tarde. Cf. sinopse do livro: SHAFAIED, Charles. Eve Blau’s Baku: Oil and Urbanism. In NEWS. Harvard University, GSD, Dep. of Urban Studies, 13 dez. 2019 <www.gsd.harvard.edu/2019/12/further-reading-eve-blaus-baku-oil-and-urbanism>.
4“Joseph Stalin, que comandava essa atividade, viu Baku como o local perfeito para a organização do proletariado. O inicio da propaganda revolucionária, nos anos 1900 foi impressa em Baku e difundida na Rússia toda, usando a rede de distribuição do petróleo”. Cf. BLAU, Eve. Oil and Urbanism (op. cit.), nota 9, p. 39.
5Experiência notável do Plano Geral foi Armenikend (1925-1929), um novo distrito urbano situado “estrategicamente entre os locais de extração e processamento de petróleo”, e notável pelo uso de superblocos, “edifícios de apartamentos dispostos de forma variada e agrupados em torno de espaços ajardinados e instalações comuns”, que incluíam “instituições técnicas e acadêmicas, museus e teatros, bem como mercados, escolas regionais, lojas de departamentos, clubes e instalações desportivas”, além de uma quantidade considerável de “espaços para uso coletivo”. Em 1928, Maxim Gorky elogiou a integração dos trabalhadores na vida cultural de Baku. Essa lógica de empreendimento teve continuidade, pois diferentes líderes do período soviético aprovaram experiências urbanas de construção de superquadras habitacionais.
6Os seminários de pesquisa coordenados por Eve Blau a partir da primavera de 2011 no GSD (Harvard), foram estruturados em colaboração com o Ministério da Cultura do Azerbaijão e a Universidade de Baku. Foram estudados documentos diversos (mapas, planos, fotos, etc) de arquivos e escritórios de planejamento, junto a urbanistas, equipes de conservação e historiadores de Baku. Cf. SHAFAIED, Charles. Op. cit., nota 3.
7BLAU, Eve. Oil and Urbanism (op. cit.), p. 240.
8Iwan Baan (nasceu em Amsterdam em 1975), estudou na Royal Academy of Art de Haia, e é hoje um dos grandes fotógrafos de arquitetura, que ele associa, muitas vezes, à fotografia documental e humanista. Baan registra as maneiras como as pessoas e as comunidades criam e interagem com seu ambiente, os espaços comunitários, a arquitetura vernacular, e também a arquitetura da atualidade internacional. Publica em revistas de arquitetura e design (Architectural Record, Domus, Abitare e Architectural Digest), e em cadernos de jornais como The New York Times. É autor de ensaios fotográficos completos nos livros: Insular Insight: Where Art and Architecture Conspire with Nature (2011); Torre David: Informal Vertical Communities (2012), e Brasilia & Chandigarh – Living With Modernity (2010).
9Ver Capítulo 3: “Looking Beyond Oil”, p. 235-236. In BLAU, Eve; RUPNIK, Ivan. Baku – Oil and Urbanism. Zurique. Zurique, Park Books, 2018.
10Expressões de Clarence Hatton-Proulx em seu artigo: HATTON-PROULX, Clarence. Baku – Oil and Urbanism (resenha). Planning Perspectives, v. 34, n. 5, set. 2019, p. 925-926. DOI: 10.1080/02665433.2019.1644072
11Cf. BLAU, Eve. Oil and Urbanism (op. cit.), p. 034.
12Termo que se refere a um tipo de prédio de apartamentos de três a cinco andares, de baixo custo, com painéis de concreto ou tijolo, desenvolvido na União Soviética no início dos anos 1960, sob Nikita Khrushchev.
13Ver BLAU, Eve. Oil and Urbanism (op. cit.), p. 39.
14Não traduzo os termos “Town” e “City”, justamente pela diferença entre eles em inglês e falta de equivalência em português, levando em conta o significado da White City como distrito ou complexo empresarial que, porém, pode assumir outras funções, típicas das metrópoles globais hoje.
15Cf. BLAU, Eve. Oil and Urbanism (op. cit.), p. 34; BLAU, Eve; RUPNIK, Ivan. Baku – Oil and Urbanism (op. cit.), p. 259.
16Idem. Ibidem, p. 35; 271. Eve Blau cita: WIEDMANN, Florian. Post-oil Urbanism in the Gulf: New Evolutions in Governance and the Impact of Urban Morphologies. Saarbrücken, Südwestdeutscher Verlag für Hochschulschriften, 2012.
17Observações do autor, presente na sinopse do livro: SHAFAIED, Charles. Eve Blau’s Baku – Oil and Urbanism (op. cit.), nota 3; e BLAU, Eve. Oil and Urbanism (op. cit.), p. 39.
18Cf. “Baku, oil city”, enunciado do seminário de Eve Blau no GSD (Harvard University), primavera de 2011 <www.gsd.harvard.edu/course/baku-oil-city-spring-2011>; e o cap. III de seu livro, p. 271.
19Cf. HATTON-PROULX, Clarence. Baku – Oil and Urbanism (resenha), p. 936.
20Cf. texto da contracapa do livro resenhado.
Resenhista
Heliana Angotti-Salgueiro – Doutora em História da arte pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Pesquisadora em São Paulo é autora de inúmeros artigos e livros nas áreas de história urbana, história cultural da arquitetura e do urbanismo, geografia humana e história da fotografia moderna.
Referências desta Resenha
BLAU, Eve; RUPNIK, Ivan. Baku. Oil and urbanism. Zurique: Park Books, 2018.Resenha de: ANGOTTI-SALGUEIRO, Heliana. Petróleo e urbanismo em Baku. Uma singular articulação histórica. Resenha Online. São Paulo, n. 219, mar. 2020. Acessar publicação original [DR]
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