Bakhtine démasqué: Histoire d’un menteur, d’une escroquerie et d’un délire collectif – BRONCKART; BOTA (B-RED)

BRONCKART, Jean-Paul & BOTA, Cristian. Bakhtine démasqué: Histoire d’un menteur, d’une escroquerie et d’un délire collectif, Genève: Droz, 2011. 629 p. Resenha de: NOSSIK, Sandra. Bakhtiniana, Revista de Estudos do Discurso, v.9 n.spe, São Paulo, Apr./July 2014.

A publicação1 de Bakhtin desmascarado2, escrito por Jean-Paul Bronckart e Cristian Bota, faz eco às diversas e recentes exegeses francófonas dos escritos do chamado “Círculo de Bakhtin”, e especialmente à retradução de Marxismo e filosofia da linguagem por Patrick Sériot, lançada em 20103. Esses dois trabalhos independentes estabelecem, contudo, objetivos distintos: se o prefácio de Sériot empreendia uma recontextualização histórica e epistemológica da obra de Valentin Voloshinov, o livro de Bota e Bronckart se dedica principalmente a restabelecer a verdade sobre a paternidade dos “textos disputados” de Mikhail Bakhtin. Três textos lançados na URSS no fim dos anos 1920, Marxismo e filosofia da linguagem4 e O freudismo, um esboço crítico5, publicados sob a autoria de Voloshinov, e O método formal nos estudos literários6, publicado sob a autoria de Pavel Medvedev, foram de fato atribuídos a Bakhtin em numerosas edições e traduções a partir dos anos 1970, após a declaração, pelo linguista russo Vjačeslav Ivanov, de que esses textos tinham sido manifestamente escritos por Bakhtin (Ivanov [1973] 1975, KULL & VELMEZOVA, 2011). Essa afirmação sem prova foi rapidamente aceita e difundida, notadamente nas traduções francófonas, o que ensejou leituras e interpretações dessas obras como de um corpus unificado proveniente de um mesmo autor, e, portanto, uma apropriação científica que estabelece, sem discussão, pontes teóricas entre textos particulares. A obra de Bronckart e Bota defende a tese de que esses textos foram mesmo escritos pelos seus respectivos signatários Voloshinov e Medvedev, tese partilhada atualmente por muitos pesquisadores. O livro se propõe, todavia, ir mais longe no “desmascaramento” de Bakhtin, apresentando uma tese desta vez inédita: o célebre Problemas da poética de Dostoiévski7, lançado pela primeira vez em 19298 sob autoria de Bakhtin, e cuja paternidade nunca havia sido questionada até agora, seria ele mesmo resultado de uma combinação de textos distintos escritos por Bakhtin, mas também por Voloshinov.

A obra de Bronckart e Bota divide-se em duas partes: a primeira dedica-se a uma pesquisa sobre as sucessivas recepções no mundo ocidental (principalmente anglófono e francófono) dos escritos de Bakhtin, Voloshinov e Medvedev, comparando as diferentes reações que precederam e seguiram o anúncio da onipaternidade de Bakhtin, e desvelando suas contradições e incoerências. Esse panorama se completa pelo estudo dos depoimentos tardios fornecidos por Bakhtin pouco antes de sua morte. Numa segunda parte, Bronckart e Bota propõem um retorno aos escritos principais de Bakhtin, Voloshinov e Medvedev, visando, através de uma análise textual comparativa, a revelar as profundas divergências tanto formais quanto metodológicas e teóricas que distinguem essas três autorias, e ainda a demonstrar que o Dostoiévski resulta, ele mesmo, do trabalho de dois autores distintos. Se é impossível abarcar rigorosamente o conjunto de informações contidas nessa obra imponente (600 páginas)9, proporemos agora uma síntese necessariamente limitada das ideias importantes desse estudo.

A primeira parte do livro dedica-se então ao caso dos “textos disputados”, isto é, ao modo como a paternidade de Bakhtin sobre os três textos em questão foi anunciada e, em seguida, o mais amiúde, aceita, difundida e sustentada pelos pesquisadores ocidentais. O livro de Bronckart e Bota opera por arcos cronológicos complexos, comparando entre si as recepções dos textos posteriores e anteriores à eclosão do caso nos anos 1970, comparando também as biografias de Bakhtin escritas na década de 1980 a dados factuais provenientes de fontes mais tardias. Essas várias contextualizações comparadas trazem a lume as múltiplas e contraditórias argumentações que foram empregadas para provar a coerência e a importância da obra supostamente produzida por um autor único.

O leitor francófono encontrará assim, notadamente, o relato da recepção dos textos do “Círculo” na França a partir da publicação, em 1977, de Marxismo e filosofia da linguagem, na tradução realizada por Marina Yaguello, prefaciada por Roman Jakobson e publicada sob o nome de Bakhtin. Bronckart e Bota se detêm particularmente sobre o livro de Tzvetan Todorov lançado em 1981, Le principe dialogique [O princípio dialógico], que contribuiu consideravelmente para popularizar na França os trabalhos de Voloshinov e Bakhtin, ao mesmo tempo naturalizando de fato a paternidade de Bakhtin sobre o conjunto desses textos, que se viam apresentados como um corpus único, graças, particularmente, a capítulos temáticos reunindo excertos oriundos de textos assinados por autores distintos.

Uma atenção particular também é dedicada aos trabalhos dos eslavistas americanos Katerina Clark e Michael Holquist, cuja obra Mikhail Bakhtin, publicada em 198410, constitui o “apogeu hagiográfico” dos estudos bakhtinianos (BRONCKART & BOTA, 2012, p.119). A glorificação da obra de Bakhtin aí se dá paralelamente a uma depreciação das figuras de Voloshinov e de Medvedev, brevemente apresentados, um como um intelectual medíocre, o outro como um arrivista cínico. Conquanto tenha influenciado de maneira duradoura o campo dos estudos literários, essa hagiografia foi seguida de textos reticentes denunciando o desenvolvimento da Bakhtin Industry, a exemplo da importante contrabiografia de Gary S. Morson e Caryl Emerson (1990)11. Bronckart e Bota sublinham a importância desta última obra que se empenha em destacar as incoerências da tese da onipaternidade bakhtiniana; mas denunciam, ao mesmo tempo, o posicionamento ideológico dos autores americanos, que seguramente concorreu para sua determinação em distinguir entre as obras de Voloshinov (mais marxizantes à primeira vista) e as de Bakhtin.

Enfim, Bronckart e Bota examinam os depoimentos tardios fornecidos por Bakhtin nos anos que precederam sua morte em 1975, e publicados por seus editores e divulgadores no início da década de 1990. Longe de trazerem dados novos que permitam atestar a paternidade dos textos disputados, essas entrevistas e depoimentos recolhidos avolumam, pelo contrário, as inúmeras contradições que permeiam os sucessivos relatos de Bakhtin sobre as condições de redação de todos esses textos no fim dos anos 20. Eles não acrescentam, no mais, nenhum dado preciso sobre a existência do suposto círculo de intelectuais batizado posteriormente “Círculo de Bakhtin”, e confirmam a relação flutuante que Bakhtin parecia manter com a própria biografia, que ele apresentou, ao longo de sua vida, em versões variadas.

Bronckart e Bota oferecem assim, nesta primeira parte de sua obra, um panorama das incoerências factuais e das justificações contraditórias que se supõe, desde 1975, sustentarem a tese da onipaternidade de Bakhtin. A recusa de Bakhtin, até sua morte, em assinar um documento reconhecendo oficialmente sua autoria, a ausência de outros testemunhos diretos além daquele do próprio Bakhtin e de sua mulher sobre a redação dos textos disputados, ou ainda as incompatibilidades biográficas (tais como a suposta produtividade de Bakhtin, que teria escrito quatro livros e nove artigos entre 1926 e 1929, demonstrando um ritmo de escrita inédito em sua trajetória, haja vista sua produção anterior e posterior) são todos, portanto, argumentos factuais que desacreditam a tese da onipaternidade. Bronckart e Bota também enfatizam a ausência de dados que provem a existência do chamado “Círculo de Bakhtin”, ou de uma influência do suposto mestre Bakhtin sobre seus discípulos: se vários intelectuais soviéticos, incluindo Bakhtin, Voloshinov, Medvedev, mas também Matvei Kagan ou Lev Pumpiânski, de fato costumavam se encontrar e trabalhar juntos nos anos 1920, verifica-se, por um lado, que cada um deles participava de diferentes reuniões e não de um círculo único, e, por outro, que nenhum desses círculos parece ter sido dirigido (nem material nem intelectualmente) por Bakhtin.

O acúmulo das explicações contrárias invocadas para justificar as assinaturas dos textos disputados contribui igualmente para desacreditar a tese da autoria de Bakhtin: com efeito, a publicação desses textos sob os nomes de Voloshinov e de Medvedev foi sucessivamente interpretada como um “presente” de Bakhtin para os seus amigos, ou, pelo contrário, como o estratagema de um Bakhtin premido pela necessidade de poder publicar seus textos e recuperar seus direitos autorais, argumento este refutado pela publicação, no mesmo ano de 1929, do Dostoiévski, sob seu próprio nome. Bronckart e Bota mostram ainda o curioso expediente de argumentação, que eles qualificam de “hermenêutica especular”, através do qual os exegetas ocidentais de Bakhtin sustentaram a tese de sua onipaternidade: esse procedimento hermenêutico consiste em justificar a substituição de autores por meio de conceitos oriundos dos próprios textos de Bakhtin, como se sua trajetória editorial tivesse sido o reflexo prático de “sua” obra. Bakhtin teria, então, feito publicar certos textos sob o nome de Voloshinov ou de Medvedev pelo gosto da máscara, em razão da atmosfera carnavalesca que dominava em seu círculo, ou ainda porque seu trabalho era dirigido a esses signatários numa interação dialógica… Assim reunidas e postas em confronto por Bronckart e Bota, essas justificações múltiplas e contraditórias demonstram a fragilidade da afirmação segundo a qual Bakhtin seria o autor dos textos disputados.

A segunda parte do livro de Bronckart e Bota pretende ser uma análise detalhada dos respectivos escritos de Bakhtin, Voloshinov e Medvedev, examinados individualmente de modo linear, “em sua globalidade e em sua coerência geral” (BRONCKART & BOTA, 2012, p.288). Longe da montagem de excertos de obras apresentada por Todorov em seu tempo, trata-se aqui, portanto, de estudar o “corpus bakhtiniano” no seu conjunto, a fim de discernir seus contornos teóricos e estilísticos.

A análise dos autores se dedica, num primeiro momento, aos textos de juventude de Bakhtin, três artigos escritos nos anos 1920 e não publicados: Para uma filosofia do ato12O autor e o herói13, e O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária14. Bronckart e Bota distinguem aí as principais características da “ontologia religiosa” de Bakhtin (BRONCKART & BOTA, 2012, p.309), marcada por uma exaltação do estatuto religioso da vida humana, bem como da responsabilidade do sujeito sobre seus atos: essa responsabilidade determina especialmente o trabalho do escritor, que, no exercício de sua arte, tem por dever transmitir através de seu personagem a essência moral dos atos humanos. Os autores destacam igualmente “o estilo empolado”, o “caráter obscuro” e a “ausência de planejamento textual explícita” dos escritos bakhtinianos (BRONCKART & BOTA, 2012, p.287), essa escrita confusa e identificável desempenhando um papel importante na argumentação dos dois sobre a paternidade dos textos estudados.

A obra de Volóshinov, em seguida, especialmente O freudismo e Marxismo e filosofia da linguagem, é objeto, ao contrário, de um estudo laudatório, que destaca as divergências ao mesmo tempo teóricas e formais que a opõem à obra de Bakhtin. É abordada particularmente “a deliberada fundamentação” do trabalho de Voloshinov “no marxismo” (BRONCKART & BOTA, 2012, p.351), assim como temas que garantiram a posteridade de Voloshinov entre os linguistas contemporâneos, como o dialogismo, as formas do discurso reportado, ou ainda os gêneros do discurso. Bronckart e Bota notam que esses temas, igualmente presentes em Medvedev, estão ausentes dos primeiros textos de Bakhtin. Enfim, O método formal nos estudos literários é por sua vez analisado pelos autores, que novamente sublinham o contraste entre a “poética sociológica” e “marxista” proposta por Medvedev e o programa religioso de Bakhtin (BRONCKART & BOTA, 2012, p.402).

O estudo comparado desses diferentes escritos, cuja complexidade e exaustividade uma síntese concisa como a nossa não chega a refletir, permite assim aos autores afirmar que as “abordagens radicalmente apartadas e amplamente antagônicas” de Bakhtin, Voloshinov e Medvedev, “nos planos teórico, conceitual, metodológico” e “estilístico”, não mais admitem a dúvida quanto à paternidade dos textos disputados (BRONCKART & BOTA, 2012, p.423). Mais ainda: essa análise textual lhes permite fundamentar a tese-chave da obra, segundo a qual o Problemas da poética de Dostoiévski não teria sido escrito unicamente por Bakhtin, mas resultaria de uma combinação de textos de Bakhtin e de Voloshinov. A primeira edição do livro em 1929, segundo eles, contém de fato capítulos curiosamente contrastantes, e mesmo “incompatíveis” (BRONCKART & BOTA, 2012, p.452), uns correspondendo aos objetos de estudo trabalhados por Voloshinov na época, mas ausentes dos estudos de Bakhtin (o dialogismo, o discurso reportado, abordados numa ótica sociologizante e marxizante), outros evocando, ao contrário, a tonalidade “religiosa e tradicionalista” dos primeiros textos bakhtinianos (BRONCKART & BOTA, 2012, p.490). A segunda edição do livro, em 1963, impulsionada e dirigida pelos divulgadores de Bakhtin, mostra, por sua vez, uma redução das fórmulas sociologizantes e das passagens dedicadas ao tema do dialogismo, ao passo que é acrescentado um capítulo sobre o tema bakhtiniano da carnavalização.

Além da análise textual, Bronckart e Bota fundam sua demonstração sobre dados biográficos: em seus depoimentos tardios, Bakhtin parece ter sempre renegado essa obra, e lamentado sua tonalidade marxizante. Por outro lado, a obra é publicada uma primeira vez em 1929, quando Bakhtin é preso por suas atividades religiosas e se vê ameaçado de um exílio nas ilhas Solovski: a essa prisão se seguiu na época uma campanha de apoio a Bakhtin iniciada por seus amigos, período durante o qual a boa recepção crítica do Dostoiévski certamente contribuiu para abrandar a pena prevista. Segundo Bronckart e Bota, no contexto dessa campanha de apoio, é plausível que Medvedev e Voloshinov tenham pretendido acelerar a publicação de uma obra de Bakhtin, e tenham consequentemente escolhido reunir esboços de Bakhtin com escritos de Voloshinov para produzir e publicar o Dostoiévski sob o nome de Bakhtin. Bronckart e Bota advertem, contudo, “não disporem de prova material” para sustentarem sua tese (BRONCKART & BOTA, 2012, p.490).

Os autores concluem, enfim, sua obra com um capítulo dedicado aos textos tardios de Bakhtin, como o célebre Os gêneros do discurso, textos que, segundo eles, revestem-se do mesmo caráter “apócrifo” (BRONCKART & BOTA, 2012, p.464). É, assim, a uma releitura total e a um questionamento profundo dos escritos publicados sob o nome de Mikhaïl Bakhtin que Bronckart e Bota convidam.

Antes de comentar o propósito dessa obra de fôlego, notemos que, apesar da impressionante quantidade de informações aí comunicadas, e apesar dos retornos cronológicos complexos que caracterizam sua construção, a leitura de Bakhtin desmascarado revela-se surpreendentemente leve e agradável, graças à sua estruturação habilmente orquestrada, e ao cuidado constante dos autores para com o leitor, conduzindo-o, particularmente, através de numerosas sínteses explicativas ao longo de todo o seu estudo. Notemos igualmente que, refletindo o subtítulo da obra (História de um mentiroso, de uma fraude, de um delírio coletivo), o tom radicalmente polêmico de Bronckart e Bota destoa do estilo universitário usual, os autores afirmando claramente seu posicionamento no seio dessa “tenebrosa questão” (BRONCKART & BOTA, 2012, p.19), e qualificando, por exemplo, sem concessão, os escritos de Bakhtin como “literatura ateórica bem-pensante”, como “trama de considerações ultrafenomenológicas e devotas” (BRONCKART & BOTA, 2012, p.430), ou ainda mencionando a biografia de Clark & Holquist como uma “prosa” capaz de provocar “desgosto” (BRONCKART & BOTA, 2012, p.136).

Para além de sua forma inabitual, pela soma de pistas e propostas novas que apresenta, o livro motivaria múltiplos comentários e desdobramentos, que ele não deixará de suscitar. Dentro dos limites de nossas competências, vamos nos contentar aqui em comentar brevemente sua metodologia, e em propor algumas comparações de pontos específicos com outros trabalhos francófonos atualmente disponíveis.

O livro de Bronckart e Bota assenta inteiramente em traduções dos textos russos estudados. As traduções utilizadas (somente uma tradução para cada texto no original russo), diretamente comparadas entre si, divergem pelos seus autores, pelas suas datas, e às vezes pelo seu idioma de chegada (francês, italiano, inglês). A imprecisão terminológica e conceitual que poderia resultar dessas fontes secundárias heterogêneas é tanto mais problemática considerando-se que o objetivo anunciado dos autores é trazer à luz as divergências “estilísticas” entre os textos de Bakhtin, Voloshinov e Medvedev, divergências “decorrentes de sua organização argumentativa global, tanto quanto de sua organização sintática e macrossintática” (BRONCKART & BOTA, 2012, p.424). Se a lista das traduções utilizadas é explicitamente apresentada nas páginas de abertura da obra, poderíamos, contudo, lamentar a ausência de comentários reflexivos onde os autores evocassem os obstáculos suscitados por sua metodologia. O corpus de traduções sobre o qual se apoia exclusivamente a pesquisa, porém, limita necessariamente o número de fontes consultadas, a interpretação dos depoimentos tardios de Bakhtin, assim como a interpretação dos próprios textos de Bakhtin, Voloshinov e Medvedev. Assinalemos, por exemplo, que a comparação textual entre a primeira e a segunda edição do Dostoiévski (comparação destinada a fundamentar a tese-chave do livro, segundo a qual o Dostoiévski foi em parte escrito por Voloshinov) se apoia sobre a confrontação entre a tradução em italiano da sua primeira edição e a tradução em francês da sua segunda edição, a mudança na língua de chegada pesando talvez sobre a comparação entre os dois textos.

Na leitura interpretativa detalhada que Bronckart e Bota propõem das obras de Bakhtin e de Voloshinov, os autores se detêm particularmente sobre o caráter marxista dos escritos de Voloshinov, inscrevendo-se, pois, contra a leitura “desmarxizante” de Voloshinov que se podia fazer nos anos 1980, quando se tratava de demonstrar que seus textos e os de Bakhtin provinham de uma mesma e única instância autoral. Os autores se empenham, assim, em demonstrar que, longe de ser um verniz superficial e retórico, a orientação marxista integra plenamente os programas de pesquisa de Voloshinov e de Medvedev, que não podem, portanto, ser confundidos com o de Bakhtin. A leitura de Bronckart e Bota se opõe, nesse ponto, àquela de outros exegetas russistas contemporâneos, como Sériot ou ainda Alpatov, que observa que, se para Volóshinov o marxismo constituía “uma base de referência”, “uma tonalidade sociológica geral” de seus trabalhos, estes não deixavam de lhe tomar distância desde que ali não mais se achassem as ferramentas conceituais necessárias (2003, p.19). Sériot (2008a, 2010, 2011) ou Ageeva (2008), por sua vez, chamam atenção para os falsos amigos que são os conceitos de “ideologia” ou de meio “social”, por estes induzirem nos leitores francófonos contemporâneos “efeitos de reconhecimento” que não correspondem necessariamente à acepção que mantêm em seu contexto sócio-histórico e epistemológico de produção. Posicionando-se explicitamente à distância das interpretações propostas por Sériot, que aproxima notadamente os escritos de Voloshinov de certas correntes filosóficas europeias reacionárias do século XVIII (2008b, p.89), o livro de Bronckart e Bota delineia por sua vez uma oposição axiológica entre a figura de Bakhtin, plagiário, mentiroso e medíocre escritor místico-religioso, e as de Voloshinov e Medvedev, intelectuais brilhantes e corajosos, mortos demasiado cedo (um de tuberculose, o outro fuzilado), e cuja “obra fundadora” (BRONCKART & BOTA, 2012, p.387) e engajada continuaria a incomodar certos críticos americanos liberais. Esses últimos perfis traçados contrastam novamente com aqueles, mais matizados, propostos por Sériot e, particularmente, com um Voloshinov descrito como adepto ele mesmo do ocultismo e dos círculos místicos em sua juventude (2010, p.52).

“Parece haver tantos Bakhtins quantos sejam os países de recepção [de sua obra]” (SÉRIOT, 2007): parece até mesmo haver tantos Bakhtins e Voloshinovs quantos sejam os leitores, e a essa multiplicidade de interpretações, brevemente esboçada aqui, nós acrescentaríamos a multiplicidade de reconstituições históricas e científicas dessas obras atualmente disponíveis. Essas exegeses recentes e divergentes, entre as quais o livro de Bronckart e Bota, estimulam o linguista francófono, convidando-o a uma releitura mais historicizada e rigorosa dos textos tão frequentemente citados nos estudos discursivos contemporâneos.

Contudo, para além da recontextualização de que essas obras são objeto, e para além dos questionamentos levantados atualmente sobre as suas condições de escrita, a influência profunda dos textos de Bakhtin, Voloshinov e Medvedev nos estudos francófonos parece seguir seu singular destino desde as primeiras traduções francesas: extremamente heurísticas no que concerne a apreensão do já dito, do já existente, dos discursos outros discerníveis num texto, as noções de dialogismo e de polifonia, de bom grado conjugadas ao interdiscurso de Pêcheux, ao campo enunciativo de Foucault ou ao sujeito dividido de Lacan, suscitaram assim, continuamente, um bom número de propostas teóricas e de trabalhos fundadores para a análise do discurso. Da heterogeneidade enunciativa teorizada por Jacqueline Authier-Revuz e da polifonia enunciativa de Oswald Ducrot às noções mais recentes de fórmula (Alice Krieg-Planque) ou de memória interdiscursiva (Sophie Moirand), dos trabalhos da praxemática aos da corrente escandinava da ScaPoLine, os escritos de Voloshinov e de Bakhtin, tais como tinham sido compreendidos e reinvestidos na França muitas décadas atrás, continuam a inspirar uma certa esfera linguística, cuja produtividade não parece entravada pelos mal-entendidos de paternidade provocados por suas primeiras traduções…

Referências

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SERIOT P. Vološinov, la philosophie du langage et le marxisme, Langages, 182, p.83-96, 2011.         [ Links ]

Traduzido por  Michelle Jácome Valois Vital – michellevalois7@gmail.com.

1 Esta resenha foi publicada primeiramente em francês em Semen n. 33, pages 209-217, 2012, http://semen.revues.org/
2 A cada menção ou citação, o leitor será remetido à tradução de Marcos Marcionilo: BRONCKART, Jean-Paul & BOTA, Cristian, 2012. Bakhtin desmascarado: história de um mentiroso, de uma fraude, de um delírio coletivo. São Paulo: Parábola, 509 p. (N. da T.)
3 Ver referências bibliográficas do original em francês no final da resenha. (N. da T.)
4 Cf. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1979. (N. da T.)
5 Cf. BAKHTIN, Mikhail. O freudismo: um esboço crítico. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Perspectiva, 2001. (N. da T.)
6 Cf. MEDVIÉDEV, Pável Nikoláievitch. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Trad. Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2012. (N. da T.)
7 Doravante Dostoiévski.
8 Cf. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981. A primeira edição da obra, não traduzida em português ou francês, levava o título de Problemas da obra de Dostoiévski. (N. da T.)
9 A edição brasileira tem 509 páginas. (N.daT.)
10 Cf. CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. Trad. Jacó Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1998. (N. da T.)
11 Cf. MORSON, Gary Saul; EMERSON, Caryl. Mikhail Bakhtin: criação de uma prosaística. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Edusp, 2008.
12 CF. BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. do italiano aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
13 Cf. BAKHTIN, M. O autor e o herói. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. (a partir do francês) de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992.; BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. (a partir do russo) Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (N. da T.)
14 Cf. Bakhtin, M. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. In: Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Hucitec, 1988.

Sandra Nossik – Université Franche-Comté, Besançon, Franche-Comté, França; sandra.nossik@gmail.com.

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