Roberto Leher é professor titular da Faculdade de Educação, foi reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro de 2015 a 2019 e é um importante pesquisador na área de educação e universidade brasileira. Historicamente, o professor também se encontra ao lado daqueles que lutam por uma educação pública de qualidade, tendo atuado como presidente da Seção Sindical dos Docentes da UFRJ (Adufrj-Ssind) de 1997 a 1999 e do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (AndesSN) de 2000 a 2002. O livro Autoritarismo contra a Universidade: o desafio de popularizar a defesa da educação pública foi publicado pela editora “Expressão Popular”, que é vinculada aos movimentos sociais e cumpre um importante papel na produção e popularização de obras comprometidas com as lutas sociais e com a compreensão da realidade brasileira.
O livro de autoria de Leher é composto de 232 páginas e organizado em cinco capítulos, intitulados: A ofensiva reacionária contra a universidade, a ciência, a tecnologia e a cultura; Sistemas de acumulação, autonomia universitária e luta pelo pensamento crítico; Universidade, ciência e tecnologia no capitalismo dependente; Mercantilização da educação; Resistências requerem pedagogia crítica.
No conjunto, o autor traz um relevante debate sobre a defesa da educação pública, com ênfase no uso e no sentido da produção de ciência nas universidades brasileiras, dentro dos limites do que é colocado para a produção de tecnologia e inovação aos países que se encontram na periferia do capitalismo. Esse debate pretende dialogar com o dilema que os movimentos em defesa da universidade se depararam no tempo recente, de tornar a ciência e o conhecimento produzidos nas universidades um elemento factível para a maioria da população brasileira. Ainda, ajuda a situar quais as condições históricas, econômicas e políticas que abriram caminho para que o governo Bolsonaro pudesse agir com a brutalidade ideológica e econômica que vem consolidando o desmantelamento das universidades públicas no país hoje.
Leher introduz a discussão a partir das grandes manifestações que ocorreram em 2019, contra os cortes de verbas das universidades e o projeto Future-se. O autor retoma que nessas lutas buscou-se responder às investidas mais duras contra a liberdade de expressão e o financiamento das universidades realizadas pelo governo Bolsonaro, levantando as bandeiras de ampla e irrestrita defesa da ciência, da pesquisa e da educação.
No primeiro capítulo é destacado que os ataques bolsonaristas já vinham se expressando no período da campanha eleitoral presidencial de 2018, quando Jair Bolsonaro e os seus seguidores buscavam atribuir a qualquer aspecto crítico da universidade a alcunha de “marxismo cultural”, alegando que o pensamento de esquerda supostamente predominaria nas universidades públicas. Essas investidas foram legitimadas pela atuação de setores do judiciário que no mesmo período de campanha eleitoral buscaram criminalizar e coibir os espaços de debate e posicionamento político contra a eleição deste governo, invadindo instituições públicas por meio de decisões judiciais que visavam recolher materiais de manifestação como faixas, cartazes e proibir a realização de assembleias sobre o tema.
No ano de 2019, uma das questões que levou a juventude às lutas era a disputa da narrativa sobre o papel das universidades públicas, acusadas pelo Ministro da Educação Abraham Weintraub de produzir balbúrdia e de serem pouco eficientes, com o intuito de justificar cortes de verbas que inviabilizariam a continuidade do funcionamento das universidades. Nesse momento, debates e tentativas de produzir experiências propícias para que o conhecimento produzido na universidade se expandisse para além do próprio meio acadêmico convulsionaram.
Muitos estudantes e pesquisadores se viram impelidos a sair às ruas em ações de popularização do conhecimento e das pesquisas produzidas na universidade pública, com o intuito de demonstrar que havia um trabalho científico caro à população brasileira e serviços de extensão que atendem às parcelas da população que vão além da própria universidade, tentando responder ao fato de que a maior parte do que a universidade produz ainda se apresenta desligado e desconectado de uma grande fração de trabalhadores.
Mas a questão sobre tal desligamento, que se apresentava na aparência como falta de divulgação do trabalho científico, das formas e possibilidades de acesso e entendimento da linguagem acadêmica, dificilmente conseguia perpassar uma questão mais complexa em torno da produção de conhecimento e ciência nas universidades: a serviço de que interesses se coloca a produção de conhecimento, ciência, tecnologia e inovação nessas instituições? É sobre essas questões que Leher se debruça para trazer alguns elementos históricos que ajudam a situar esses dilemas que não são recentes, mas ganham maior dimensão frente aos ataques perpetrados pelo bolsonarismo. O debate central feito pelo autor busca desvendar o que está perpassando as condições de produção de conhecimento e ciência da universidade.
No segundo capítulo, Leher faz uma retomada histórica das investidas contra a universidade pública a partir da ditadura empresarial militar, o que nos ajuda a melhor visualizar um projeto de silenciamento da crítica e refuncionalização instrumental vigente há pelo menos seis décadas. Esse marco histórico leva em consideração que a criação de universidades é um processo muito tardio no país e a tentativa de formular e consolidar experiências que permitissem a existência de universidades soberanas foi violentamente sufocada pelas contrarreformas da ditadura.
Assim, alguns elementos são demarcados pelo autor para considerar o que dá a base para a universidade brasileira como a conhecemos hoje: a contrarreforma de 1968 e o intento de aproximação da universidade com o modelo de modernização conservadora, executado durante o regime militar, abafando as tentativas de propor um modelo de universidade soberana para o país; o intuito de responder ao sistema de acumulação de industrialização por substituição das importações, que ganha corpo a partir da nova república, indo do governo FHC aos governos petistas; e a mercantilização da educação, que ganha grande alcance no fenômeno de financeirização do ensino superior, inflado durante os governos petistas.
Um aspecto importante destacado por Leher é como as contrarreformas executadas pela ditadura nas universidades não foram devidamente repensadas e discutidas, seguindo o fluxo da transição pelo alto que marcou o advento da nova república. Isso permitiu que processos abertos durante o regime militar pudessem ser ressuscitados ou aprofundados, tanto em regime da dita normalidade democrática, quanto com um novo endurecimento de regime como o que vivemos a partir do golpe de 2016. Alguns exemplos são os subsídios públicos de universidades privadas, o fornecimento de créditos estudantis, a empreitada pela eliminação do marxismo e pela contenção das teorias críticas dentro das universidades, o foco em pesquisas utilitaristas, entre outros problemas.
Ainda, como elemento estruturante da universidade na conjuntura atual, e que contribui com o processo de sufocamento do seu papel crítico, o autor apresenta que uma das principais mudanças emplacadas pela reforma ditatorial foi uma total reconfiguração da forma de fazer pesquisa: essa foi restringida ao âmbito da pós-graduação, dissociando-a da graduação. Por isso, a pós-graduação foi largamente ampliada, passando de 40 para 1160 programas durante os vinte anos de ditadura que assolaram o país. Além disso, a autonomia acadêmica das pesquisas foi flagrantemente cerceada com a retirada da responsabilidade do fomento à ciência e tecnologia do interior das instituições, que na época foi passado para as mãos da Secretaria de Planejamento “condicionando as pesquisas aos programas e projetos prioritários, processo que culminaria, em meados dos anos 1980, com a política dos editais (LEHER e SILVA, 2014 apud LEHER, 2019, p. 52)”.
O autor ainda destaca medidas que foram aprovadas nos governos FHC que significaram perda de soberania tecnológica e de autonomia das universidades: a Lei de patentes, a reforma do Estado, o fechamento dos departamentos de Pesquisa e Desenvolvimento das antigas estatais; seguidas pelo enrobustecimento da inovação nos governos Lula, como a Lei de Inovação (2005) e a Lei do Bem (2006).
No terceiro capítulo, Leher debate o sentido da produção de ciência que está consolidado hoje nas universidades. Ele aborda como as políticas de inovação têm tomado as instituições de ensino superior de forma bastante contraditória, pois não há empresas nacionais voltadas para a pesquisa e desenvolvimento, para as quais poderiam ser orientadas as políticas de inovação. Para o autor, no fim, isso acaba levando laboratórios de pesquisa a cumprirem papéis muito instrumentais, de oferecerem serviços de atualização tecnológica de empresas, reproduzindo o que já existe, sem de fato se proporem ao desenvolvimento científico e tecnológico de algo verdadeiramente novo.
Além disso, os critérios do que é legítimo como política de inovação e as formas de certificar e legitimar tais critérios, acabam sendo definidos pelo financiamento e premiação de pesquisas universitárias por parte de empresas transnacionais e privadas, que acabam delimitando o que pode ser colocado no campo da crítica ou não. Leher apresenta a problemática de que isso tem como efeito imediato a corrupção do sentido ético da universidade, da forma como se compromete com a produção de conhecimento, porque muitas vezes o que essas empresas necessitam para perpetuar seu modelo de produção, vai na contramão das lutas dos movimentos sociais e em defesa da vida da população brasileira. O autor apresenta uma série de estudos de caso que auxiliam na compreensão de como a aproximação de empresas e fundações do capital ferem a heteronomia da universidade e contribuem com o silenciamento de importantes pautas levantadas pelos movimentos sociais.
No quarto capítulo, Leher apresenta brevemente o processo de mercantilização da educação, outro grande ataque contra o sentido público e crítico da educação. O autor retoma o papel do Estado nesse processo, que impulsionou a sua financeirização com repasse do fundo público para os fundos dos grandes capitais, por meio de títulos gerados pelo Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES) e pelas isenções tributárias do Programa Universidade Para Todos (Prouni). Esses programas foram criados sob a justificativa de ampliar o acesso da população ao ensino superior, entretanto, receberam muito mais recursos e permitiram um crescimento muito maior de matrículas nas universidades privadas do que os investimentos em expansão das universidades públicas. Além disso, possibilitaram que as maiores empresas de educação do mundo ganhassem corpo em nosso país.
No quinto capítulo, Leher busca trazer alguns recursos que nos ajudam a pensar a construção de saídas para esses complexos problemas que envolvem a universidade brasileira, debatendo algumas contribuições das práticas de educação popular Paulo-freirianas e ressaltando o fato de que a defesa da universidade e da educação não podem se dar de forma setorial. Uma importante reflexão enfatizada pela obra é que para defender a universidade é preciso estar junto dos movimentos sociais do campo e da cidade, dos atingidos por barragens, dos povos originários, dos trabalhadores sobrantes, entre outras formas da classe trabalhadora organizar suas lutas. Assim como, para disputar o sentido da produção do conhecimento, é preciso que aqueles que lutam pela universidade brasileira estejam atentos e orientados pelas pautas levantadas por esses movimentos, como uma forma de expressão dos dilemas da população brasileira.
Essa é uma contribuição necessária de se ter em mente quando paramos para refletir sobre as reconfigurações e ataques que seguem se aprofundando na universidade, dois anos após a publicação da obra. As intervenções em nomeações de reitorias seguem sendo aplicadas pelo governo Bolsonaro, deslegitimando os processos de consulta à comunidade universitária; apesar de amplamente rejeitado, o programa Future-se vem sendo adotado de forma parcelada e silenciosa; já o novo programa de Bolsonaro, o Reuni Digital pouco tem sido debatido pelos movimentos em defesa da universidade, apesar da gravidade do que significa a expansão do EAD e a adoção do ensino híbrido como elementos que devem ser permanentes na educação, mesmo quando a pandemia efetivamente acabar.
A contribuição de trabalhos como os de Leher e de demais pesquisadoras e pesquisadores que se colocam ao lado das lutas da universidade, é uma das ferramentas necessárias para aqueles que buscam estar à altura dos complexos desafios que estão postos para que a universidade brasileira enfrente o projeto de destruição que a tem assolado por anos e possa se reinventar junto às verdadeiras necessidades da classe trabalhadora do país.
Referência
LEHER, Roberto. Autoritarismo contra a Universidade: o desafio de popularizar a defesa da educação pública. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, Expressão Popular, 2019. 232 p. – (Emergências).
Resenhista
Ana Aparecida Zandoná – Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. E-mail: zanazandona@gmail.com
Referências desta Resenha
LEHER, Roberto. Autoritarismo contra a Universidade: o desafio de popularizar a defesa da educação pública. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, Expressão Popular, 2019. Resenha de: ZANDONÁ, Ana Aparecida. Linhas. Florianópolis, v. 23, n. 52, p. 356-362, maio/ago. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]
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