Autoria e autoridade entre antigos e modernos | Revista de História | 2022

Herodotus Autoria e Autoridade
Herodotus | Imagem: BBC

O tema deste dossiê sugere uma série de questões voltadas para os processos de escrita e o papel dos que escrevem, sobretudo as inscritas nas relações entre autoria e autoridade. São exemplos disso a discussão sobre uma possível dimensão transcendental, legitimadora e incontestável de autoridade ou o debate acerca da existência de uma genialidade criativa inata, apenas dois dos variados problemas que permitem explorar a perspectiva de que atribuir um texto a uma identidade individual não é o suficiente para que se forme autoria, não sendo igualmente possível admitir a categoria “autor” em chave essencialista, pois são muitos os resíduos semânticos depositados nela. Essa agenda traz à tona a tarefa de reconstituir posições de autores historicamente situadas e os variados critérios de credibilidade dos discursos nas condições de autoria que lhes foram atreladas. A variação desses elementos ao longo do tempo se dá no horizonte de um diálogo com formas de autorização instituídas nos termos da rivalidade e da adesão, impulsionando tradições textuais e relações de valência epistêmica. Trata-se, assim, de processos de longa duração, cujas características subjazem discursos do presente mesmo quando não abordam direta e explicitamente temas do passado. A partir disso, podemos afirmar, então, que pensar a relação entre autoria e autoridade hoje, com base no contraste entre “antigos” e “modernos”, nos oferece aportes complementares, estruturantes e indispensáveis à reflexão sobre discursos de natureza diversa. O que ocorre quando tais recursos são mobilizados para pura e simples autopromoção? Existe autoridade sem verdade? O autor exerce responsabilidade sobre seu texto e, portanto, deve encarar as consequências daquilo que escreve, ou o texto tem uma vida independente de seu criador, de maneira que devemos separar o eu subjetivo da função-autor? Quando não existe autoria, é possível afirmar a existência de autoridade? Se sim, em que sentido? A quem pertence a autoridade? A indivíduos, artefatos, instituições, tradições – ou a autoridade é efetivamente constituída no cruzamento dessas instâncias? Eis as reflexões proporcionadas pelo dossiê autoria e autoridade entre antigos e modernos.

À luz dos diversos recursos retóricos-poéticos, político-institucionais e materiais mobilizados por indivíduos e coletividades na antiguidade, no medievo e nas épocas moderna e contemporânea para autorizar seus discursos, nos interessa refletir sobre os êxitos e dificuldades impostos pela questão da legitimidade de argumentos diante dos protocolos que os autorizavam. Além disso, os autores e autoras propõem, tomando como ponto de partida as particularidades dos casos de que tratam, um conjunto de meditações sobre a historicidade das noções de informação, prova e verdade à luz das relações entre paradigmas epistemológicos tradicionais e os desafios atuais, em um contexto de crise da noção de autoridade.

Nesse sentido, o dossiê se inicia com o artigo de Camila Condilo, Genealogy in the development of ancient historiography: Genealogy and history in Herodotus. Condilo explora a relação entre autoridade e retórica no discurso histórico antigo, utilizando a obra de Heródoto de Halicarnasso como estudo de caso. Sem menosprezar o uso de genealogias como uma forma de cronologia relativa, a autora sugere que genealogias contribuíram para o desenvolvimento da historiografia grega de outras maneiras. Através de um estudo comparativo do uso que Heródoto e Isócrates fizeram de genealogias, Condilo demonstra que os historiadores antigos utilizavam genealogias como prova retórica em debates polêmicos nos quais buscavam proporcionar uma contribuição para o conhecimento e ao mesmo tempo se destacar em relação a outros indivíduos que buscavam o mesmo objetivo em um mundo intelectual altamente competitivo. Nesse processo, evidências de naturezas diversas eram articuladas como lastro de fiabilidade para os argumentos que produziam, mas genealogias eram especialmente úteis em discussões que versavam sobre temas em torno dos quais testemunhos empíricos ou factuais eram escassos ou inexistentes por oferecerem uma demonstração lógica que fazia às vezes de prova, compensando, assim, pela ausência de informações mais concretas sobre o assunto em questão.

O artigo de Carolina Gual, The construction of auctoritas in Gratian’s Decretum: The role of tradition and the auctor in a 12th century legal text, segue na mesma linha de discussão acerca da relação entre autoria, autoridade, tradição e originalidade, mas agora no contexto do debate sobre textos jurídicos medievais. Gual realiza um estudo de caso sobre Graciano e sua obra Concordia discordantium canonum ou simplesmente Decretum, como é mais conhecida. Trata-se de um manual de lei canônica cuja primeira edição possivelmente data de 1140. A autora aponta que nos séculos XII e XIII havia uma multiplicidade de vozes competindo por autoridade no campo da lei canônica. Como consequência disso, novos sentidos em torno das noções de auctor e auctoritas estavam sendo criados, os quais culminarão com a individualização do conceito de autor na modernidade. Nesse contexto, Graciano – um personagem sobre o qual se sabe muito pouco, mas que possivelmente trabalhou como professor em Bolonha nas décadas de 1130 e 1140 – representa uma das muitas vozes em disputa. De acordo com Gual, o Decretum fazia parte de uma tradição dedicada ao estudo dos cânones da igreja e visava estabelecer um código comum que pudesse ser seguido por toda a comunidade cristã. Tal código tinha como base o uso de auctoritates, isto é, os ensinamentos da bíblia, dos primeiros pais da igreja, dos papas e dos conselhos religiosos, que eram os referenciais mais importantes no âmbito da lei canônica da época. Contudo, Graciano simultaneamente reformulou essa tradição, pois, para além de mera compilação, ele organizou e sistematizou a lei canônica. Nesse sentido, seu Decretum acabou por inaugurar uma nova maneira de se escrever sobre leis, dado que, a partir de então, ocorre uma mudança significativa nos textos jurídicos em termos de conteúdo, forma e metodologia. Isso porque o Decretum se tornou o principal manual escolar para o estudo da lei canônica em universidades em um período no qual já existiam manuais escolares, mas não para o estudo de leis. A autora sugere, então, que há neste caso uma intersecção entre auctor e auctoritas, na medida em que o produto final dos esforços de Graciano cria algo novo que, por sua vez, se torna uma nova fonte de autoridade. Assim, Gual questiona a visão de que, pelo menos até o século XIV, mulheres e homens medievais eram dependentes de seus ancestrais e incapazes de criar algo novo que tivesse o mesmo tipo de autoridade, sendo o Decretum de Graciano um exemplo ilustrativo de que autoridade e tradição no medievo não necessariamente eram ideias excludentes.

Ainda na esfera de discussão sobre manuais escolares de ensino superior, mas agora na contemporaneidade e no contexto brasileiro, temos o artigo Os poemas homéricos nos manuais de História Antiga: Autoria, autoridade sobre o passado e o mito das origens da sociedade grega antiga, de Gustavo Junqueira Duarte Oliveira. Oliveira analisa o uso da poesia homérica como fonte histórica em manuais escolares de história antiga e história da Grécia, apontando que a maioria deles negligencia o problema da oralidade na composição desses poemas e as implicações disso no entendimento que essas narrativas oferecem sobre o passado grego. Para o autor, isso tem relação com o fato de que esses manuais conferem a Homero uma autoridade sobre os textos e sobre o tempo que é muito problemática. A ideia de uma autoridade sobre os textos apresenta dificuldades porque tem como fundamento o entendimento da figura de Homero com base na lógica do conceito de autor moderno quando os poemas são, na verdade, resultado de um longo processo de composição no interior de uma tradição que abrange a contribuição de inúmeros poetas em diálogo com suas respectivas audiências através de séculos. A ideia de uma autoridade sobre o tempo apresenta limitações ainda maiores, pois sugere que os poemas são portadores de informações de um período originário e a-histórico, ideia esta expressa no uso de expressões recorrentes como “no tempo de Homero” ou “já em Homero”. Logo, Homero e seus poemas constituem nessas abordagens uma espécie de mito de origem, noção esta já muito criticada pela historiografia. Como forma de superar essas dificuldades, Oliveira ressalta a importância de se pensar as abordagens dos poemas homéricos como fonte histórica nos manuais de história antiga e de história da Grécia tendo em vista o debate atual sobre autoria como conceito historicamente construído e as teorias sobre composição oral.

Alegorias de uma guerra poética: figuras da autoridade na França do século XVII, de Luiz César de Sá, trata das relações entre autoridade e controvérsia na França de uma primeira época moderna. Tomadas na longa duração de práticas culturais calcadas na emulação de modelos “antigos” e “modernos” tidos por excelentes, as polêmicas sob exame, aponta o autor, convergiram para um sistema de autorização galante, cujo funcionamento levava em conta a necessidade de aplacar a memória da violência das guerras de religião, valorizar os dispositivos retórico-poéticos que permitiam encenar disputas supostamente indolores e aderir a instituições da monarquia francesa sob a lógica do mecenato. O estudo do livro Nouvelle Allégorique (1658), de Antoine Furetière, revela que as lutas por autoridade do período estiveram calcadas no teatro epidítico de virtudes e vícios aos quais determinados letrados eram vinculados por meio da atualização de um modelo de controvérsia específico, extraído da Querelle des Lettres (1624-1630). Antes de simplesmente mimetizar um “campo literário”, Nouvelle Allégorique instituía um universo de papéis a serem ocupados segundo decoros que previam não só o funcionamento dos embates, mas seu necessário encerramento sob a égide de um acordo de paz fadado a conceder a cada personagem, letrado, posição e ação seu devido lugar. A imagem da guerra é, assim, contrastada com a das justas que, longe de se esgotar na vitória absoluta de alguns competidores, reconheciam todos aqueles que fossem dignos de tomar parte nelas.

O artigo de Renata Silva Fernandes, por sua vez, põe em evidência que as questões ligadas à autoria e autoridade na época moderna não estiveram circunscritas às querelas letradas, participando de mecanismos persuasivos igualmente visíveis nos aparatos jurídico-institucionais e político-teológicos do período. O Conselho Ultramarino e as queixas e agravos do ultramar português (Minas Gerais, 1750-1808) explora formas coletivas de autoria expressadas em queixas (formalmente definidas como “querelas”) de modo a explicitar como a autoridade era constituída nas malhas da comunicação política. Ao rogar por “amparo” e “remédio” perante condutas deletérias de oficiais, indivíduos e coletividades acessavam os códigos de um vasto mercado peticionário legível em ritos destinados a assegurar a justiça do que era requisitado perante as autoridades visadas. Fora de qualquer pretensão de circunscrever as queixas a uma comunicação direta e modernamente burocrática entre as populações da monarquia portuguesa e seu princeps, Fernandes sustenta que as representações se fixavam em doutrinas prudenciais e lugares do ethos. Assim, embora as querelas fossem endereçadas ao monarca, sabia-se perfeitamente que este era um locus da dignidade do pleito e que seu tratamento efetivo ocorria sob diversos agentes tutelados, nos casos em análise, pelo Conselho Ultramarino; ao mesmo tempo, os remetentes, não raro abrigados sob o epíteto de “Povos”, comportavam uma profusão de vozes – inclusive por meio do uso de assinaturas não reconhecidas por seus supostos signatários, entre outros mecanismos recalcados pela representação coletiva – e interesses irredutíveis a critérios contemporâneos de autoria. Compartilhando recursos retóricos ostensivos, as engrenagens da autoridade em querelas jurisdicionais podem ser lidas em paralelo às querelas letradas, o que contribui para a elucidação de aparelhos discursivos instalados no centro das sociedades de Antigo Regime.

As ambivalências de dispositivos retórico-poéticos articulados a uma modernidade literária na escrita machadiana são o objeto das reflexões de Raquel Machado Campos em Nomes antigos, caracteres modernos: tradição retórico- -poética e modernidade literária em Machado de Assis. A autora sustenta que a construção da literatura oitocentista brasileira, no bojo de um projeto nacional, não desconsiderou gêneros e dispositivos antigos, os quais se mesclaram, nos escritos machadianos, a um paradigma de originalidade autoral cujo funcionamento consistia em recusar cânones realistas ou naturalistas para reelaborar anacronicamente a autoridade da tradição. Campos torna esses procedimentos – que qualifica de retóricos – evidentes com o estudo das práticas de nomeação construtoras, por antonomásia, de rimas com motivos poéticos, a partir de três contos: Virginius – narrativa de um advogado, O que são as moças, ambos de 1866, e Pílades e Orestes, de 1903. Ao invés de dar nome aos protagonistas do conto, Pílades e Orestes, por exemplo, funcionam como marcadores de referências que remontam a Sófocles, sinalizando para um conjunto de valores expostos nos meandros da narrativa; Júlia e Teresa, de O que são as moças, consistem em vetores de traição dos valores éticos e poéticos da tradição, ao passo que Virginius é exemplar de uma retidão que problematiza ideais e práticas da sociedade brasileira. Em todos os casos, nas negociações mais ou menos conflituosas entre “antigos” e “modernos”, se pode flagrar a pintura de caracteres universais, a exposição de moralidades e imoralidades cotidianas e a mobilização de recursos literários cujo rendimento oscilava da pedagogia moral à ironia.

Ainda na esfera do universo literário brasileiro, Marcelo Balaban propõe, em O assassinato de Annibal Theophilo: honra literária e conflitos entre escritores no Rio de Janeiro, considerar a autoridade depositada na honra literária a partir de um caso limite: o assassinato do poeta Annibal Theophilo pelo escritor Gilberto Amado em 1915. Transcorrido nas dependências do Jornal do Commercio a partir de um encontro prosaico em um elevador, o crime logo sobressai no circuito noticioso do Rio de Janeiro, gerando não só a espetacularização esperada do homicídio de um notável, mas uma demonstração dos valores supostamente inerentes àqueles homens de letras. Se Theophilo é imediatamente consagrado por uma profusão de elogios fúnebres, Amado, além de tudo deputado, ferve sob a execração pública que cumulativamente põe em jogo, ao identificar as falhas de caráter que o teriam levado a apertar o gatilho, concepções estéticas, horizontes políticos e paradigmas comportamentais da “vida literária”. Todos mostram que a honra, no Brasil do início do século XX, era matéria posicionada; a constatação leva o autor a investigar as condições de sua instabilidade ou mesmo ruptura entre violência verbal e crime passional, nas imagens públicas dos escritores em sua afinidade com o progresso nacional, e também nas tramas que faziam emergir a aparência de uma comunidade intelectual uniforme logo desfeita nas contradições exibidas pelo escândalo alegremente explorado nos jornais do período, escândalo que retira de Amado todo e qualquer traço civilizatório compatível com a dignidade do lugar que até então ocupara sem, no entanto, ser suficiente para condená-lo no banco dos réus.

O artigo de Roger Chartier fecha o dossiê discutindo as condições de possibilidade da verdade e a autoridade dos discursos históricos a partir de quatro movimentos. Primeiro, com um retorno à ordem do discurso foucauldiana, ponto de partida para contextualizar debates em torno das operações que conferem crédito à escrita da história, ameaçada por negacionismos e relativismos de toda sorte. O segundo movimento se volta para os lugares ocupados pela retórica e a verdade, assim como o caráter supostamente antirreferencial da representação, no célebre debate movido por Carlo Ginzburg em Relações de forças. Os limites de seu argumento são testados no uso da noção aristotélica de “prova”; uma consulta a tradições editoriais e tradutórias da Retórica convida a repensar o postulado de um “núcleo racional da retórica” diretamente acessível pelo termo “pisteis”, decisivo para as conclusões de Ginzburg. O terceiro diz respeito ao confronto do estatuto epistemológico da história com outras formas de conhecimento do passado, sobretudo as mediadas pela ficção tal como afirmada desde meados do século XVIII, isto é, no horizonte do aparecimento de uma economia literária, e, especialmente, entre os romances oitocentistas que assumiam a tarefa de produzir sínteses da sociedade. Tais elementos preparam uma série de comentários sobre a literatura do século XX, pulverizada em múltiplas formas de verdade literária aptas a colocar em jogo dispositivos de autenticação que se comunicam, em tensão criativa ou pura impostura, com os saberes históricos. Por fim, os dispositivos fiduciários da memória, desafiadores por reivindicarem uma relação autêntica com o passado, são contrastados com os aparelhos cognitivos e éticos da escrita da história em um contexto de ameaça à verdade e, mais fundamentalmente, seus vínculos com a democracia, a razão e a deliberação política.

A partir dessas diferentes contribuições, o dossiê espera oferecer aos leitores um ponto de partida para um debate mais amplo sobre o tema da autoria e da autoridade, tão polêmico e atual. Em um momento de perda de confiança nos discursos acadêmicos e disseminação maciça de informações falsas, recuperar o tema da fiabilidade das informações, dos mecanismos argumentativos e das responsabilidades de quem escreve é defender aspectos importantes e ameaçados do pacto social, como a ética, o direito ao conhecimento, o respeito pelas diferenças e um mundo sem violência.


Organizadores

Camila Condilo – Universidade de Brasília.

Luiz César de Sá – Universidade de Brasília


Referências desta apresentação

CONDILO, Camila; SÁ, Luiz César de. Apresentação. Revista de História. São Paulo, n.181, 2022. Acessar publicação original [DR]

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