“O QUE É O TEMPO? Quem poderia explicá-lo fácil e brevemente? (…) O que é o tempo, então? Se ninguém me perguntar, eu sei; mas, se quiser explicar a alguém que me pergunte, não sei”. Dificilmente, alguma reflexão sobre o fenômeno do tempo consegue escapar à aporia colocada por Santo Agostinho (2017, 249) em suas Confissões. Nesse sentido, a proposta do dossiê temático Atualismo e teorias contemporâneas do tempo histórico é reunir trabalhos que pretendam, de algum modo, atualizar, do ponto de vista da Teoria e Filosofia da História, o questionamento fundamental apresentado pelo bispo de Hipona. Se a obra de Reinhart Koselleck representa um marco decisivo nos estudos sobre a experiência do tempo durante a modernidade, a hipótese “presentista”, de François Hartog, anunciada em 2003, com a publicação de Régimes d’historicité. Présentisme et expériences du temps, marcou o início de importantes estudos que seguem se esforçando para interpretar as linhagens decisivas da experiência do tempo na contemporaneidade. Contemporaneidade que poderia ser definida pelo que já não mais é, ou seja, moderna. Assim, para Hartog, ao invés do futurismo moderno identificado pela temporalidade da espera, da autoridade do historiador como profeta dos tempos vindouros e narrador da história nacional, de uma clara distinção entre história/memória e passado/presente, a contemporaneidade poderia ser visualizada pela prevalência de um presentismo alastrado e de futuro fechado, da crise da autoridade do historiador – agora obrigado a dividir espaço com uma miríade de discursos sobre o passado – e por uma patrimonialização que a tudo envolveria no seu desejo de memória (Hartog 2013).
Foram muitas, no entanto, as respostas ensejadas pela hipótese “presentista”. Respostas essas que, mais do que invalidar a hipótese (o presentismo) ou o instrumento de análise (regimes de historicidade), acabam por sofisticá-la e desdobrá-la, estabelecendo uma extensa conversa que, nas últimas duas décadas, foi responsável por concentrar as atenções no âmbito da Teoria da História e da História da Historiografia. Fernando Nicolazzi, já em 2010, bem notou que uma das críticas mais constantes sobre as reflexões de Hartog se mostrava pertinente ao tocar na questão das relações entre regimes de historicidade e regimes historiográficos. Estaria em jogo, assim, a problemática referência mútua na obra entre historicidade e historiografia, afinal, um regime de historicidade poderia comportar formas distintas de escrita da história. Mais recentemente, Rodrigo Turin (2016; 2019), assim como Zoltán Simón (2020), observaram que as pretensões de normatividade contidas na hipótese “presentista” dificultavam a percepção de como a estrutura temporal das sociedades contemporâneas, ao invés da sincronicidade do regime temporal moderno, apontava para uma dessincronização das temporalidades subjacentes a diversos domínios da ação humana.
Seria o caso então, como afirmaram Marek Tamm & Laurent Olivier (2019), de desenvolver uma noção mais nuançada de análise da temporalidade do que aquela historicista e moderna, e que Hartog talvez tenha acabado por reproduzir ao apostar numa sucessão de regimes de historicidade relativamente homogêneos. Mais decisivos ainda, do ponto de vista ético-político, são os argumentos de Chris Lorenz (2019) e Géssica Guimarães & Luísa Rauter (2021), quando indicam a dificuldade da hipótese “presentista” em “situar-se” ou “provincializar-se”, para fazer alusão à Dipesh Chakrabarty, ao não estabelecer uma necessária conexão entre experiências temporais e posições sociais.
Diante disso, cremos que a discussão sobre o problema do atualismo no âmbito das teorias contemporâneas do tempo histórico é uma oportunidade, inclusive, para tensionarmos a “dependência acadêmica” no campo da Teoria da História no Brasil (Cf. Pereira 2018). Afinal, diante da fecundidade das pesquisas no campo teórico e historiográfico entre nós, já é possível deixarmos a posição de meros receptores e consumidores de teorias da história produzidas na Europa ou nos Estados Unidos. Aliás, um dos objetivos de Araujo e Pereira ao cunharem o conceito de atualismo era, precisamente, mostrar as limitações dos conceitos de presentismo (Hartog 2013) e presente amplo (Gumbrecht 2015), sobretudo, no que diz respeito a um fechamento do futuro para novos horizontes de expectativa. No presentismo há “um presente onipresente, onipotente, que se impõe como único horizonte possível e que valoriza só o imediatismo” (Hartog 2013, 15), ao passo que o atualismo procura compreender como nossa relação com o passado e futuro não diminuiu quantitativamente, mas foi transformada qualitativamente. Nesse sentido, o argumento é que, a despeito da ênfase no presente, existe sim uma abertura para o passado e para o futuro. A grande novidade é a maneira como a atualidade realiza a sua temporalização:
acredita-mos que deveríamos pensar em nossa situação contemporânea não por uma afirmação negativa, como sem futuro, com futuro fechado ou, ainda, de um futuro presentista (e mesmo de um passado presentista visto apenas a partir de um presente estendido), mas com um tipo particular de futuro (Araujo e Pereira 2018, 203).
O breve panorama que apresentamos acima sobre a hipótese “presentista” pode nos auxiliar a situar de modo mais preciso em qual debate a tese do “atualismo”, de Mateus Pereira e Valdei Araújo, busca se inserir. Como os próprios autores reconheceram, na primeira edição do livro de 2018, o diagnóstico de Hartog e sua “fixação do olhar sobre o que supostamente se foi ou desapareceu pode nos impedir de ver as reconfigurações e deslocamentos” (Araujo e Pereira 2018, 71). Nesse sentido, a aposta dos autores é por observar as complexas dinâmicas da experiência do tempo no mundo contemporâneo ligadas à lógica do capitalismo financeiro combinada com o tempo da tecnologia e suas demandas por atualização permanente, bem como por alguns fenômenos como o desejo pela transparência e os desafios do digital, da obsolescência e do pós-humano.
Com isso, seria possível ir além daquela que é uma das principais limitações da hipótese presentista, a saber, da ausência de uma teoria do tempo histórico, perceptível no tratamento da temporalidade “apenas como indicadora de fenômenos que lhe são aparentemente externos e determinantes” (Araujo e Pereira 2018, 81), e não como elemento constitutivo e transformador desses fenômenos mesmos. A retomada de uma dimensão analítica do presente que o retire de certa unidimensionalidade, só seria possível, assim, recorrendo à análise ontológica de Heidegger, em Ser e Tempo, na qual o presente aparece com diferentes dimensões. Nesse caso, afasta-se a compreensão do presente como uma realidade auto evidente, e se revelam suas diversas possibilidades de temporalização. Para o que nos interessa mais diretamente, cumpre notar que a atualização atualista é a “forma específica de o presente se temporalizar na compreensão imprópria de Heidegger” (Araujo e Pereira 2018, 91). Assim, a atualização, desejo tão alastrado pelo caminho da tecnologia, seria a resposta à experiência do tempo como uma sucessão vazia de agoras, um mundo que parece se reproduzir automaticamente. Tal autocentramento do presente acaba por perder de vista a constituição mais própria do ser-aí (Dasein), que é não ser apenas para o seu mundo, mas para a própria possibilidade de mundo, haja vista que o presente é inundado por gestos que o excedem, como compreender, decidir e projetar. Todos esses movimentos estão relacionados à futuridade e indicam um presente que não está fechado sobre si mesmo.
Bem entendida, a hipótese do atualismo permite problematizar o diagnóstico do presentismo, seja do ponto de vista metafísico-existencial, seja do ponto de vista ético-político. Em termos existenciais, embora pareça estar presa no presente, a temporalização do atualismo não está desprovida de futuro, pois isso faria com que o tempo histórico deixasse de ser tempo humano (Cf. Mendes 2022) Apesar de não alimentarem grandes projetos revolucionários em relação ao futuro, no seu cotidiano as pessoas continuam construindo expectativas de futuro. Perguntas como “o que vou fazer amanhã?” ou “como me organizar para realizar o que é urgente?” não deixaram de ser colocadas. A diferença é que no modo inautêntico e impróprio de temporalização, o futuro parece ser apenas uma extensão do presente. Em texto que compõe o presente dossiê, Hélio Rebello Jr. defende que um dos méritos da categoria de atualismo é justamente sua dupla dimensão, a saber, histórico-transcendental e heurístico-historiográfica, que permite salvaguardar a dimensão heurística do conceito, impedindo que ele seja confundido com a realidade que procura compreender. A despeito disso, Rebello Jr. critica a assimilação que Pereira e Araujo realizam dos conceitos de presentismo e presente amplo, indicando que a categoria de Gumbrecht não mereceria as mesmas objeções que as de Hartog.
O GIRO ÉTICO-POLÍTICO, O ATUALISMO E AS HISTORICIDADES (ANTI)DEMOCRÁTICAS
Diante de um mundo atualista em crise – notadamente, a crise dos valores democráticos – torna-se ainda mais desafiador empreender um giro ético-político na Teoria da História e na História da Historiografia contemporânea. Nos termos de Marcelo Rangel e Valdei Araujo (2015), o giro ético-político é um traço da produção historiográfica contemporânea disposta a pensar e intervir no mundo. Considerando que um dos principais legados do giro linguístico é o questionamento acerca da impossibilidade de que o fato histórico represente de maneira idêntica a realidade do passado, o texto historiográfico se insere no mundo, motivado pelos seus efeitos de leitura que ultrapassam a mera descrição da realidade. Isto é, a ênfase agora está sobre a articulação valorativa entre a linguagem e a experiência, indicando uma maior preocupação com os efeitos práticos da nossa relação com o passado. Nesse sentido, são prerrogativas do giro ético-político: “(1) o sujeito do conhecimento não pode produzir enunciados privilegiados em relação à realidade, a despeito das teorias e métodos em questão e (2) a historiografia possui uma determinação específica, a de pensar e intervir no mundo que é o seu. (Rangel e Araujo 2015, 328). Ou seja, o jogo passado-presente-futuro que constitui a matéria da história inclui, decisivamente, o poder de mobilizar as pessoas para os problemas de seu tempo, promovendo uma abertura para uma reflexão-intervenção.
Isto que Rangel e Araujo chamam de giro ético-político, associando a verdade do passado a uma ética da ação no presente, identifica-se com um pressuposto caro à concepção benjaminiana de história, segundo o qual, mais importante do que conhecer o passado tal como ele foi, o propósito central de qualquer historiografia é articular historicamente o passado. Trata-se, assim, de uma condição específica de leitura e escrita da história, balizada pelo conjunto de interlocutores no presente, próxima ao que Jeanne Marie-Gagnebin chamou de dimensão constrangedora da tarefa do historiador: “lutar contra o esquecimento e a denegação, lutar, em suma contra a mentira, mas sem cair em uma definição dogmática de verdade” (Gagnebin 2006, 44). Ou ainda, ao que Berber Bevernage denominou de dimensão performativa da historiografia: extrapolando funções tradicionais da história, tais como a de representar o passado, buscar a verdade e produzir sentido tendo em vista a necessidade de regular eticamente a distância entre passado e presente (Bevernage 2018, 44), a questão passa a ser não apenas dar sentido à realidade pretérita, “mas também seu potencial de produzir efeitos sócio-políticos, provocando a efetivação de um estado de coisas que pretende [a princípio] meramente descrever” [Grifo nosso] (Bevernage 2018, 45).
Com efeito, uma das formas de intervir intelectualmente em sua própria época é elaborando representações de futuro. Conforme apontado pelo texto de Flávio Giarola que consta no presente dossiê, a passagem do século XX para o século XXI foi um momento propício para tais projeções nas quais o futuro seria uma espécie de ponto culminante de um enredo que envolve também o passado e o presente. As conclusões do autor apontam que naquele contexto havia uma demanda por projeções que pudessem, de certo modo, acalmar as expectativas mais pessimistas.
Como já destacamos, a teoria do atualismo enquanto forma de compreensão da temporalidade contemporânea traz à tona e desafia a historiografia especializada contemporânea naquilo que é subjacente ao ofício do historiador e se torna ainda mais urgente em contexto atualista, isto é, a dimensão ético-política implicada na enunciação do discurso historiográfico. Afinal, estamos falando também de um tempo de crise da democracia, experimentada em escala internacional pela emergência de governos e discursos de extrema direita – notadamente em ascensão em países como Estados Unidos, Hungria, Nicarágua, Filipinas, Turquia, Ucrânia e Brasil. É consenso entre os estudiosos de ciência política que após a segunda guerra mundial a democracia veio ganhando legitimidade em escala internacional crescente. Contudo, o programa democrático estabelecido nesse contexto não contempla os projetos de futuro de lideranças que forjaram sua identidade política em aversão aos valores democratizantes tais como a defesa dos direitos humanos e do meio ambiente, o enfrentamento ao racismo, à xenofobia e ao machismo. Donald Trump nos Estados Unidos e Jair Bolsonaro no Brasil são exemplos dessas lideranças que, à despeito de terem sido eleitas pelas instituições da democracia liberal representativa, deslegitimam-na em seus discursos, prometendo demagogicamente devolver a democracia ao povo, fortalecendo a ideia de que os mecanismos formais de representação seriam incapazes de manifestar a vontade popular (Runciman 2018; Levitsky e Ziblatt 2018).
Além disso, o negacionismo, em suas mais diversas vertentes, integra, de maneira decisiva, o repertório de provocações contemporâneas, lançando mão de falsificações e distorções de toda ordem, e no caso da história, promovendo usos e abusos políticos e isto impõe enormes desafios aos especialistas deste campo disciplinar (Avelar e Valim 2020). Em um mundo atualista, crescem as manipulações e o consumo de passados distorcidos e falseados por meio das mídias digitais, as quais facilitaram a difusão de narrativas negacionistas sob o véu do anonimato e da impunidade. Aliás, é importante lembrar que o fortalecimento do negacionismo é um atentado “contra a ordem democrática na medida em que visam destruir a existência de uma “comunidade do fato” (…), que se baseia em consensos básicos sobre a verdade de determinados acontecimentos e representa a própria condição de possibilidade da vida institucional (Avelar, Valim e Bevernage 2021, 10).
A partir desse background, destacamos que o debate acerca das teorias contemporâneas do tempo histórico tem apontado para uma notável politização do tempo. Como nos lembra Rodrigo Turin, politizar o tempo é uma forma de repensarmos a disponibilidade da história para a ação e intervenção humana “sem a dimensão redentora e singularizante da modernidade clássica, mas também escapando ao narcisismo autodestrutivo do éthos neoliberal” (Turin 2019, 49). Neste dossiê, também como revisão crítica à hipótese “presentista”, Fabio Wasserman, procurou mostrar, analisando o discurso político do ex-presidente Maurício Macri, na Argentina, como o presente é povoado por invocações ao passado e ao futuro e por sua capacidade de orientar atores individuais e coletivos e dar sentido às experiências sociais, na contramão de um presente como extrato autônomo e autocentrado da temporalidade. Outros trabalhos também passaram diretamente por essas questões. É o caso de “Detente. La actualización no automática como función emancipadora del conocimiento”, de Maria Eugenia Gay, ao repassar outras concepções de “atualização”, especialmente na análise da tradição filosófica e da obra HansGeorg Gadamer, procurando disputar o conceito e suas possibilidades estéticas e políticas no presente, mais do que observá-lo como simples instrumento de um tempo que apenas sabe reproduzir o mesmo, ainda que com distintas aparências. Colocar o fenômeno da temporalidade no horizonte das disputas é também o desafio de André Ramos e Rafael Castro, em “Entre a inevitabilidade do trauma e a (im)possibilidade do luto: dinâmicas da historicidade em tempos de catástrofe”. No texto, os autores exploram como a temporalidade atualista oferece prosseguimento a uma das principais características do tempo histórico moderno, isto é, ao intensificarem a reprodução de experiências traumáticas e reduzirem as possibilidades da experiência do luto. Esta última, pela sua própria natureza não linear, exigiria a emergência de outras formas de abertura para a articulação das experiências da historicidade capazes de abrir espaço para as diferenças, assim como para os corpos e para os afetos disruptivos.
Ainda no que diz respeito ao contexto político contemporâneo tem crescido as investigações que mobilizam a hipótese do atualismo para compreender o bolsonarismo. Na coletânea Do fake ao fato: (des) atualizando Bolsonaro, a hipótese atualista se volta para a compreensão do bolsonarismo como uma expressão máxima da crise democrática e atualista no caso brasileiro. Assim, desatualizar Bolsonaro, propósito central do livro, seria um exercício fecundo para, “pensar com a história enquanto ela acontece” e reelaborarmos os enlaces entre a historiografia profissional e a perspectiva democrática.
A ideia é que o livro possa interessar a todos os preocupados em compreender melhor a eleição, o tempo e o governo de Jair Bolsonaro, a partir de nosso compromisso com a defesa da democracia e da pluralidade a ela inerente. Como historiadores acreditamos que uma postura mais produtiva passa pelo movimento de (des)atualização histórica, pressupondo a exploração incessante dos passados e futuros que entretecem o presente, evitando sua essencialização em torno de uma versão original autenticamente controlada. Este livro pretende ser, também, um acerto de contas com nós mesmos. Talvez o que diagnosticamos como o tempo do atualismo tenha contribuído para criar a ilusão de que a democracia brasileira havia se consolidado e estava sólida. (Klem, Pereira e Araujo 2019, 17).
Em “Bolsotrump”, publicado em 2022, o propósito de desatualizar segue sendo entendido como estratégia capaz de desacelerar o tempo. Nas palavras dos autores, “oscilar entre o atual e o inatual é entender que podemos ainda ter um papel sobre o futuro, que o presente pode ser futurizado e passadizado por julgamentos e decisões que podemos fazer e tomar.” (Pereira, Marques, Araujo e Ramalho 2022, 4). Nesses termos, a reflexão sobre o atualismo e a crise democrática é colocada à disposição dos leitores que – tal como os autores – experimentam a crise, de modo a abrir formas de disparar alternativas e novas possibilidades de futuro.
Vários artigos do presente dossiê dialogam mais intensamente com essas prerrogativas.
Em “O passado como distração: modos de vestir a história no neopopulismo brasileiro”, Mateus Pereira e Valdei Araujo, examinam o engajamento da história no bolsonarismo, tendo em vista a heterogeneidade das forças políticas que o compõem. Para os autores, essas apropriações da história dispensam aspectos modernos – como a apresentação de uma coerência interna formadora de uma história nacional – aproximando-se a uma historicidade atualista, na medida em que se baseiam na fragmentação, no apego afetivo e em uma “desfactualização” da realidade.
Fabio Wasserman, em artigo que já apresentamos acima, percorre um caminho próximo de investigação em “Na lama da história. Política e temporalidade no discurso macrista”. Como expresso no título, o autor analisa a temporalidade do discurso político liderado por Mauricio Macri, presidente da Argentina entre 2015 e 2019. Para Wasserman o macrismo se diferenciou de tradicionais formações conservadoras da direita para se forjar enquanto força pós-ideológica que, a despeito do investimento que faz nas representações da história nacional, promove um discurso de esquecimento do passado para priorizar o presente e o futuro. Desse modo, ele retoma a centralidade do papel ocupado pelo passado e pelo futuro nas formas de dar sentido às experiências sociais de atores individuais e coletivos, questionando, assim, teses presentistas.
Em “Atualizar é heresia? Disputas em torno da palavra “atualização” no campo evangélico brasileiro (2020-2021)”, Walderez Ramalho e Mayra Marques a discussão gira em torno uma polêmica no meio evangélico brasileiro incitada pelo pastor batista Ed Kivitz que afirmou a necessidade de a Bíblia ser atualizada. A defesa escrita por Kivitz – expulso de sua congregação após o episódio – revela a conciliação entre princípios bíblicos perenes e a afirmação da historicidade do texto. O caso evidencia, segundo os autores, a pluralidade das formas de atualização para além de sua forma especificamente atualista, dialogando, nesse sentido, com as proposições da teoria do atualismo.
Em “Janelas engolindo tempos, ventos arrebatando histórias: uma poesia em ebulição no Brasil ditatorial (1978)”, Beatriz Vieira procura investigar a relação entre poesia, história e política, a partir de produções poéticas que apresentam uma experiência histórica marcada pela dor social, pela violência e pela excepcionalidade política. Nesse sentido, as imagens poéticas da janela e do vento aparecem como possibilidades de experimentar o tempo histórico de uma maneira diferente da convencional. Em diálogo com as demandas sociais contemporâneas, Vieira destaca a produção de Cynthia Dornelles como chave de leitura para pensar a participação política das mulheres e do movimento negro no contexto da ditadura militar brasileira.
Vale lembrar, ainda, que o conceito de atualismo procura compreender quais os significados da profunda transformação ocasionada pela tecnologia sobre a forma como elaboramos significado para o tempo histórico. Ao mesmo tempo em que a tecnologia digital se desenvolvia, na história dos conceitos, houve um notável enfraquecimento do conceito de modernização, carro-chefe do regime de historicidade futurista, em benefício da ideia atualização. Atualizar é um verbo que remete à ideia de melhorar algo por meio da sua adequação ao presente, produzir uma versão nova (Pereira e Araujo 2021). Atualizar também indica o ato de alterar algum processo ou até mesmo o ato de alguém se informar com as notícias mais recentes. A despeito dos múltiplos sentidos possíveis, fato é que em qualquer acepção, hoje, o atual é entendido socialmente como o melhor e mais legítimo.
No presente dossiê, três artigos enfrentam mais diretamente o impacto da tecnologia sobre o problema do tempo histórico. Em “DOI-CODI atualista: o tempo como instrumento de controle social”, Daniel Faria propõe uma hipótese original, segundo a qual, o DOI-CODI operava com a lógica do atualismo em seus dispositivos de tecnologia militar próprios do contexto da Guerra Fria. Nesse sentido, a máquina burocrática de produção contínua de informações que visava combater o inimigo interno produzia propagandas nas quais o regime militar aparecia como um sistema atualizado. Por sua vez, o texto de Sabrina Costa Braga procura refletir sobre o projeto New dimensions in testimony que mobiliza tecnologia avançada para a interação com um holograma de um sobrevivente do Holocausto. A autora lança mão de noções centrais no debate contemporâneo sobre tempo histórico para refletir sobre as implicações do processo de atualização do passado pela via da tecnologia digital. A conclusão é uma provocação ao solucionismo tecnológico e um lembrete de sua insuficiência diante de nossas inquietações existenciais mais próprias como a preocupação com a finitude. Outro texto que lida com a relação entre tecnologia e temporalidade é o artigo de Alexandra Tedesco e Vítor Costa que investiga a formação do imaginário em torno da Inteligência Artificial entre os anos 1990 e 2000. Quanto a isso, os autores procuram estabelecer uma relação entre o otimismo social construído em torno da tecnologia e uma consciência histórica adequada ao neoliberalismo. Em termos de filosofia da história, a hipótese dos autores é que o atualismo da Inteligência Artificial realiza um entrelaçamento entre o destino histórico e o destino individual.
Ao fim e ao cabo, a pergunta que surge é: “em nossa condição atualista, tudo se atualiza para que tudo permaneça a mesma coisa?” (Araujo e Pereira 2018, 174). Diante disso, Nossa expectativa com o dossiê é não apenas apresentar um estado da arte da fecunda discussão em torno das teorias contemporâneas do tempo histórico, mas também possibilitar uma forma de nos posicionarmos de modo ético-político no mundo atualista, Pois, como nos lembra Bevernage (2018), o modo como concebemos o tempo está longe de ser neutro. Pelo contrário, existe uma forte relação entre tempo e ética e política. Sendo assim, a reflexão sobre o atualismo possibilita à historiografia acadêmica imersa neste ambiente o desafio de produzir reações imediatas aos problemas do mundo que é seu, sem sucumbir à avalanche atualista que tende a transformar o movimento da história em um incessante fluxo de eventos passageiros e desarticulados. Em síntese, nosso convite, inspirados pelas provocações de Agamben (2009) sobre o que é o contemporâneo, é para fomentarmos uma relação singular com nosso próprio tempo, sendo capazes de apreender suas características fundamentais e ao mesmo tempo sendo capazes de nos distanciarmos dele.
Referências
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Organizadores
Breno Mendes
Daniel Pinha
Mauro Franco Neto
Referências desta apresentação
MENDES, Breno; PINHA, Daniel; FRANCO NETO, Mauro. O problema do tempo histórico e o mundo contemporâneo. Revista de Teoria da História. Goiânia, v. 25, n.2, p.5-14, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]
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