Abrir e folhear o Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e arredores, de Tuca Vieira (1), é como ter um encontro consigo mesmo. Num primeiro momento, algo como um encontro solitário, uma descoberta não esperada. Mas logo o Atlas mostra sua dimensão pública, com um conjunto de imagens que expõe a cidade, oferecendo um reconhecimento que pode ser coletivo e que está agora compartilhado. Ou seja, as 203 fotos do livro são, enfim, um mapeamento de São Paulo, um conjunto que deu conta da sua diversidade, complexidade, imensidão – adjetivos sempre associados à cidade. Deu conta apresentando simultaneamente fragmentos e unidade, um todo que, mesmo para seus habitantes, parece lhes escapar.
Cidade vertical e densa na região central, edifícios industriais nos ainda “vazios urbanos”, antigos edifícios já integrados a um entorno desfigurado e adensado, favelas fotografadas na sua extensão ou na visão do pedestre, regiões de mananciais, igrejas, muros e grades, caixas d’água, postes, fiações elétricas, habitações formais e informais, pontos de ônibus, bancas de jornais, rios (que hoje são canais), estacionamentos, ruas, avenidas e vielas, edifícios comerciais, bares, padarias, quitandas, estacionamentos… Todos esses programas e situações urbanas que sem as fotos dizem pouco.
Quase não se veem construções icônicas (não por acaso, o emblemático edifício Copan está perdido no livro), é a mistura que vinga. Em São Paulo, as regiões centrais não se assemelham às periféricas, mas as periferias predominam enquanto as áreas mais “nobres” da cidade tem pouca identidade. Não se reconhece a suposta cidade moderna, nem as poucas tipologias mais frequentes na cidade. A boa arquitetura de São Paulo, que existe em grande número, é evidenciada como exceção. E quando aparece, mostra-se como de fato é, impotente na configuração cidade.
O recurso fundamental do Atlas, sem dúvida, para enfrentar a escala e a diversidade, é o acúmulo, a produção sistemática de fotos. Mas o autor precisou de um método para fazer o Atlas, como descreve na bela entrevista publicada no final do livro. Usa um guia de rua como mapeamento geral. O antigo Guia 4 Rodas, que os mais jovens não conhecem, mas que guardávamos no porta-luvas do carro e, para chegar em algum lugar, tínhamos que estacionar algumas vezes para pular da pagina 103 para a 235, e ir buscando a continuidade das vias com coordenadas cartesianas. No Guia 4 Rodas, Tuca Vieira marcou as fotos e definiu as regiões a serem fotografadas, “para cobrir todo os território”. Depois, o Google Maps e o Street View ajudaram a observar melhor as ruas, escolher ângulos etc. Mas esse livro não seria possível sem a sobreposição de um outro método, o da memória, das imagens já sedimentadas, que vem da vida na cidade, é claro, mas que se somou a sua experiência de muitos anos como “fotógrafo jornalístico”. Um fotógrafo que já percorreu muito. Tuca descreve que junto com esse mapeamento pelo guia de ruas, nas saídas para fotografar, buscava os exemplos que faltavam para compor o conjunto. O livro deixa evidente que foram muitas viagens, muitos deslocamentos por todo território, trabalho duro. E isso tem um sentido próprio.
O Atlas traz uma representação de São Paulo como uma totalidade sem síntese. Uma verdade ou uma tentativa de representar o que a cidade realmente é, como colocou Guilherme Wisnik, “considerando que essa ‘verdade’ seria o oposto daquela síntese de São Paulo que está na sua conhecida foto da favela de Paraisópolis com as torres do Morumbi” (2). É a totalidade pelo múltiplo, pelo acúmulo que necessitou de um esforço, um levantamento exaustivo ao pé da letra. “Lidei por meio de um embate físico. Fui buscar a cidade não só com os olhos – que é aquilo que o Militão de certa forma fez –, mas também com o meu próprio corpo […]. Então, o trabalho do Atlas, em grande parte, diz respeito aos grandes deslocamentos que tive que fazer, levando a mim mesmo até esses lugares” (3).
Mas o múltiplo não vulgariza, não despreza, ao contrário, as fotos mostram dignidade em cada construção e em cada lugar. O que não se confunde com identidade, algo já difícil de ser definido numa cidade dessa escala e com sua história de transformação tão vertiginosa.
Nesse conjunto extenso de fotos, o livro mostra também que há muita cor nas construções. E o conjunto das fotos revela uma cidade construída de forma precária, coisas que estão relacionadas. Em geral, os recursos são escassos, as necessidades urgentes, e predomina o improviso. Assim, são construções que acabam se resolvendo na superfície: com argamassa mal acabada ou na pintura. Sem nenhum juízo estético, a ocupação urbana e a forma dos edifícios são do jeito que dá, feitos com o material que há. E nesses casos, é a superfície que vale. Mesmo na cidade formal, nos edifícios de vidros espelhados e nos edifícios residenciais (na sua maioria feitos dos anos 1970 para cá) se percebe o predominante desleixo, o descompromisso com o que se chama de qualidade urbana (em diversos aspectos mas que não é caso de desenvolver aqui). O que também não deixa de ser uma forma de improviso, com a predominância dessas soluções de superfície.
Chama a atenção a quase ausência de pessoas e carros nas fotos. Uma ausência que só existe de fato nas primeiras horas do dia, aos domingo, feriados ou na situação inédita de alguns meses dessa terrível pandemia. O vazio que poderia nos afastar desse registro fotográfico, que poderia nos por para fora da cidade, acaba tendo efeito contrário. As ruas e construções, assim, sem as pessoas, ficam super expostas, nos intrigam e se impõem a serem melhor observadas. Essa cidade vazia, retratada página a página, nos aproxima também porque faz ver detalhes das construções, faz ver melhor suas formas, individuais e em conjunto. Com uma certa tristeza, entendemos que realmente os detalhes não importam e as formas são na verdade muito frágeis. O que há é um conjunto que define uma paisagem informe.
O livro é organizado por regiões, mas como num jogo de cartas, as páginas poderiam ser embaralhadas, o que não faria muita diferença. Apesar de retratar particularidades da cidade como regiões de mananciais, extensas áreas de autoconstrução, áreas mais verticais e densas, outras com a presença maior de edifícios industriais, mesmo com diferenças geográficas e sociais tão expressivas, as páginas poderiam ser embaralhadas. Isso diz muito sobre São Paulo.
O Atlas vai, assim, nos apresentando a cidade a partir da composição desses retratos individualizados, como uma galeria de rostos. Mas algum outro mecanismo, vale enfatizar, faz com que essa galeria ganhe uma unidade, mesmo que fragmentada e múltipla. Restam então formas e cores diversas, em excesso, que produzem um conjunto forte, um conjunto que não repele nada e não oferece resistência nenhuma também. Diversidade que não particulariza suas regiões ou bairros, e também já não gera atrito, mas forma uma cidade complacente e resignada.
Essa São Paulo, com a qual nos encontramos no Atlas (e que num passado recente era bem distinta), mostra a nossa “cidade genérica”, que ganhou seus contornos definitivos, sem dúvida, a partir do final dos anos 1960. É aí que uma nova cultura, novas práticas de transformações da cidade se consolidaram. Em especial: a extensão sem precedentes das periferias sem infraestrutura, sem equipamentos públicos, ocupadas por uma enormidade de moradias autoconstruídas e obras rodoviárias arrasadoras, com grandes avenidas sem qualquer qualidade urbana, junto de um conjunto sem fim de viadutos que cortam a cidade violentamente. Se por um lado, são procedimentos comuns a muitas cidades, com um marco temporal similar, o Atlas nos lembra de uma São Paulo, que mesmo com seu urbanismo informe, é uma cidade, uma cidade específica, de um conjunto específico de moradores, usuários, trabalhadores.
O tal encontro consigo mesmo que o Atlas traz, a que me refiro no início do texto, talvez seja mais impactante para os arquitetos e urbanistas (o meu caso), no compromisso que temos de compreensão dessa que é ainda uma das maiores regiões metropolitanas do mundo, na responsabilidade que temos com o projeto, com as pesquisas, debates, com a história. Sem exagerar muito, a revelação que livro traz se apresenta como um grande amigo, um parceiro que ajuda a explicar a cidade e fazer ver as tarefas gigantes que vamos carregando.
Essa sensação de alívio decorrente desse encontro é forte, mas não é definitiva. Não seria possível um apaziguamento diante de qualquer representação de São Paulo sem lembrar que ela está posta sobre uma realidade dura e bastante turbulenta. O Atlas recoloca velhas questões da cidade como identidade, preservação e transformação, e ainda joga luz sobre suas prioridades, especialmente sobre a carência e precariedade da moradia, o programa primordial dos centros urbanos. Enfim, o Atlas mapeia um lugar e, nesse esforço colossal, nos permite olhar novamente (e juntos) para essa cidade.
Notas
1NE – Texto da exposição: WISNIK, Guilherme. Cidade inacabada. A fotografia de Tuca Vieira. Drops, São Paulo, ano 17, n. 106.03, Vitruvius, jul. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.106/6092>. Artigo sobre a premiação da exposição: KOGAN, Gabriel. Prêmio APCA 2016: Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e arredores / Tuca Vieira. Categoria “Pesquisa”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.06, Vitruvius, abr. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6493>.
2Uma conversa com Guilherme Wisnik, Henrique Siqueira e Tuca Vieira. In: VIEIRA, Tuca. Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e arredores. São Paulo, Museu da Cidade de São Paulo, 2021, p. 238.
3Idem, ibidem, p. 237.
Resenhista
Fernanda Barbara – Arquiteta e urbanista (FAU USP, 1994), graduada em Comunicação Social – Jornalismo (PUC-SP, 1990), mestre em Arquitetura e Urbanismo (FAU USP, 2004). Atualmente é Professora da Escola da Cidade – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e Sócia-diretora da UNA Barbara e Valentim.
Referências desta Resenha
VIEIRA, Tuca. Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e arredores. Organização Henrique Siqueira. São Paulo: Museu da Cidade de São Paulo, 2021. Resenha de: BARBARA, Fernanda. Inventário de lugares. São Paulo por Tuca Vieira. Resenha Online. São Paulo, n. 234, jun. 2021. Acessar publicação original [DR]
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