Assim na Terra como no Céu…: Paganismo, Cristianismo, Senhores e Camponeses na Alta Idade Média Ibérica (Séculos IV-VIII) – BASTOS (PL)

O livro aqui resenhado é na realidade uma revisitação de Mário Jorge à sua tese de doutorado, defendida em 2003. Mário Jorge é atualmente professor associado do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, onde atua também no programa de Pós-Graduação, e também pesquisador do “’Translatio Studii’ – Núcleo Dimensões do Medievo”, e do “Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo – Seção Pré-Capitalismo (NIEP-Marx-PréK)”, os dois grupos de pesquisa sendo registrados no CNPq. Formado bacharel em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, também é Mestre e Doutor em História Social, pela Universidade Federal Fluminense e Universidade de São Paulo, respectivamente.

A presente obra, publicada em 2013, traz ao leitor uma análise da conversão e da cristianização da Península Ibérica na esteira do materialismo histórico-dialético proposto por Karl Marx, e a sua “crítica da crítica da religião”. O livro é dividido em 7 capítulos, além da introdução e considerações finais. Ao entrarmos de fato na obra, nos deparamos já com um prefácio escrito por Hilário Franco Jr. Prenúncio de um também belo texto que está por vir.

A introdução é onde o autor nos mostra todo o seu “arsenal” teórico, ao dialogar, principalmente, com Marx, mas também com os mais diversos teóricos, marxistas ou não, sobre o feudalismo, cultura e relações sociais, que são os pontos principais da sua análise. É essa inclusive, a divisão feita dentro da introdução, em “Religião e Transição”, “Religião e Conversão” e “Cultura, Religião e Relações Sociais”, dialogando com os mais diversos campos das ciências humanas, preparando o terreno para o leitor. É, aonde o autor deixa explícito seu objetivo com o livro: uma abordagem materialista da religião. Utilizando suas próprias palavras, “[…] uma análise da religião – e do processo de cristianização que foi sua manifestação mais marcante – no contexto da sociedade constituída na Península Ibérica entre os séculos IV e VIII, concebendo-a como elemento chave das transformações que caracterizaram a transição da Antiguidade para à Idade Média. ” (BASTOS, 2013, p.20-21).

É também importante ressaltar o trabalho de resgate e análise feito sobre as perspectivas de análises referentes aos temas abordados na obra, aonde o autor revisita a historiografia consagrada, realizando um amplo diálogo com os mais diversos teóricos, demonstrando aonde a sua obra se situa nesse debate, inclusive, utilizando do conceito de classe de modo bem diferente daquele clássico, imbricando este com o conceito de cultura, e o entendendo de forma mais ampla, visualizando as movimentações e os conflitos no interior das classes, vistas como tão fundamentais quanto a própria luta de classes, seguindo na esteira da perspectiva de Gerald M. Sider. Reproduzindo a citação utilizada pelo próprio autor na obra: “é neste ponto que a cultura entra na dinâmica da classe, e menos porque a “acontece” no interior das classes e das lutas entre classes. A cultura penetra a dinâmica da classe porque é o lócus no qual a classe se torna dinâmica, onde oscilam, unem-se e separam-se suas linhas de antagonismo e aliança.” (SIDER apud BASTOS, 2013, p.46).

Adentrando o primeiro capítulo, intitulado “O Processo de Senhorialização da Sociedade Ibérica”, ao autor nos depara com uma controvérsia: “Na sociedade visigótica, tratou-se de um sistema escravista, ou de um sistema fundando na redução à dependência senhorial de parcelas importantes do campesinato independente? ”. (BASTOS, 2013, p.53), E com essa primeira “polêmica historiográfica”, vai desenvolvendo sobre as relações de exploração e subordinação ocorridas no seio da sociedade visigótica daquele momento, como ocorreu a evolução dessas relações, e também como a Igreja Católica se inseria nestas relações, com seus escravos manumitidos in obsequio e sua estreita relação com a sociedade senhorial da época. Esse fato nos mostra a importância da terra para o período, e como se realizava uma das tantas formas de retenção do servo ao seu lócus de trabalho. Vale salientar a extrema imbricação que ocorria entre os grandes senhores e o alto clero da então jovem Igreja Católica em terras ibéricas, com as grandes famílias profundamente inseridas nos quadros de organização e comando da mesma. Uma questão, por diversas vezes esquecida, porém aqui salientada, é a resistência de servos, escravos e pequenos camponeses livres do período. O capítulo traz diversos casos da violência insurreta dos subordinados, colocando uma luz sobre as formas de resistência à exploração em uma sociedade pré-capitalista, deixando evidente que por maior que tenha sido a hegemonia senhorial no período, ainda havia espaço e houve disputa entre as classes, desmistificando a ideia de uma total submissão camponesa.

Já o segundo capítulo, intitulado “A Igreja no Quadro da Sociedade Senhorial”, o autor vai, ao analisar os diversos cânones dos concílios realizados em Hispânia, nos mostrando a inserção de uma igreja originalmente urbana em uma sociedade predominantemente agrária, e sua atuação na sociedade visigoda do período, denotando sua contribuição na transição da Antiguidade ao Medievo e seu papel na construção deste novo sistema em formação. No início do capítulo ao autor nos traz a uma característica peculiar das sociedades pré-capitalistas, necessária de se levar em consideração ao utilizar o marxismo como método de análise, e fazendo referência a Ciro Flamarion Cardoso, coloca: “as categorias econômicas e as extra econômicas (jurídicas, religiosas, políticas etc.) encontram-se a tal ponto entrelaçadas, que não pode surgir a consciência social do fundamento econômico das relações sociais”. (CARDOSO & BRIGNOLI apud BASTOS, 2013, p.83). Desse modo, ao analisar a sociedade feudal, é imprescindível levar em conta a imbricação quase que completa das estruturas, infra e supra, para entender a relação da Igreja com a sociedade daquele período e espaço. Claro, do mesmo modo que não se deve partir para análises que não levem este pressuposto em consideração, também não se deve imprimir esse caráter totalizante sem uma análise mais acurada das mais diversas especificidades que possam surgir dos mais variados territórios da sociedade medieval. Então, como delimitar este objeto? E é nesse ponto que autor explicita sua pretensão com o capítulo, de analisar o caráter processual da conversão ao cristianismo durante a Alta Idade Média, estudando as atas dos concílios realizados em Hispânia, e para este capítulo mais precisamente, se fiando aos concílios realizados no século IV, período de inserção do cristianismo na península.

Ao chegarmos ao terceiro capítulo, denominado “A Revelação Divina”, vemos o autor trabalhar aqui centrando a análise no sermão “De Correctione Rusticorum”, escrito pelo então bispo de Braga e depois santificado pela Igreja, Martinho de Braga. Ao analisar este sermão, bem como as mais diversas fontes que perpassam todo o livro, que são os concílios eclesiásticos em terras hispano-visigodas, o autor procura entender a monopolização por parte da Igreja sobre as relações com o sagrado, dentro do seu processo de inserção na população camponesa do período. Interessante notar como neste sermão, o bispo de Braga se utiliza de uma linguagem acessível, para dialogar diretamente com o campesinato, principal alvo do mesmo, como uma espécie de “tradução” dos preceitos cristãos essenciais.

O capítulo quatro, denominado “Continuidade ou Transformação?”, nos mostra a inserção cristã e sua relação com o paganismo e a magia camponesa, seus diversos espaços de disputas, seus conflitos e suas mútuas assimilações, trazendo um debate bem interessante acerca da hegemonia, de seu conceito, e o entendimento por parte do autor e dos pensadores com os quais ele dialoga sobre a hegemonia cristã, seus limites e seus espaços de assimilação e mutação, tanto de seus ritos em favor de uma maior inserção e de uma aceitação por parte do campesinato, como da assimilação de ritos e práticas consideradas pagãs, modificando-as e colocando-as de certo acordo com a prática cristã.

No capítulo cinco e seis, intitulados respectivamente “Caráter, Relações e Campos de Intervenção do Poder Divino” e “Os Santos e a Liturgia”, vemos o autor centrado na análise do hinário produzido por Aurélio Prudêncio, o “Cathemerinon”, e nos tratados teológicos de Isidoro de Sevilha e Idelfonso de Toledo, e em fontes de caráter hagiográfico e litúrgico. No capítulo 5, ao analisar as fontes citadas, o autor tenta identificar os preceitos fundamentais, pelos quais a Igreja e seus representantes, tentam vincular e explicar o cotidiano humano sob o jugo de um senhor superior, de como essa narrativa tentar explicar toda a globalidade social sob a ótica cristã, sob o poder divino. Já no sexto e último capítulo, o autor analisa a atuação dos representantes terrenos deste senhor divino, os santos, seus ritos e assim analisando a hegemonia da Igreja, muito mais complexa, conflituosa e permeada de contradições do que parece, na conversão do ocidente medieval ao cristianismo.

A obra tratada aqui é, sem dúvidas, um belo trabalho em História Medieval, que traz uma vigorosa análise marxista e um amplo debate teórico, aonde creio o autor ter atingido sua proposta com este livro, explicitada na introdução, de “desenvolver uma abordagem materialista da religião, e divulgar […] as importantes achegas teóricas fornecidas pelos fundadores do materialismo histórico também para os estudiosos das sociedades pré-capitalistas em geral”. (BASTOS, 2013, p.20). Por fim, esta resenha é nada mais que um convite a leitura deste livro, que com toda certeza é uma obra mais que necessária aos estudiosos da Alta Idade Média Ibérica, e também aos estudiosos de outras sociedades pré-capitalistas, cuja ferramenta de análise seja o materialismo histórico-dialético, dado o vigor analítico aqui utilizado.

Victor C. Barros de Jesus –  Graduando em História/ UFS. Bolsista de Iniciação Científica vinculado ao Projeto de Pesquisa: Territórios e Fronteiras Senhoriais: As relações de poder e dominação na Sociedade Medieval Ibérica. Integrante do Grupo de Pesquisa Dominium: Estudos sobre Sociedades Senhoriais (CNPq-UFS).

BASTOS, Mário Jorge da Motta. Assim na Terra como no Céu…: Paganismo, Cristianismo, Senhores e Camponeses na Alta Idade Média Ibérica (Séculos IV-VIII). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. Resenha de: JESUS, Victor C. Barros de. Religião, campesinato e senhorio: uma análise calcada no materialismo histórico-dialético. Ponta de Lança, São Cristóvão, v.10, n.18, p.119-123, jan./jun., 2016. Acessar publicação original [DR]