As voltas do passado. A Guerra Colonial e as lutas de libertação | Miguel Cardina
Existem livros que surpreendem pela originalidade do título; outros surpreendem pela qualidade do conteúdo ou pela lógica de organização dos textos. A obra organizada por Miguel Cardina e Bruno Sena Martins surpreende nos três aspectos. Na obra intitulada “As voltas do passado: a Guerra Colonial as lutas de libertação”, Cardina e Martins reúnem um expressivo conjunto de 51 pesquisadores de diferentes nacionalidades e apresentam aos leitores um livro fracionado em 46 textos. Acionando uma ampla rede de pesquisadores e de instituições acadêmicas da África e da Europa, os organizadores apresentam ao leitor uma amostra qualificada das interpretações que a Guerra Colonial produziu na historiografia portuguesa e na historiografia dos países africanos que outrora foram colônias de Portugal.
Neste sentido, o livro pode ser considerado um projeto editorial ousado, por dois motivos: primeiro porque buscou incorporar os significados da Guerra Colonial para Portugal e para os povos africanos que desafiaram a política colonial lusitana; e, segundo, porque transitou entre os fatos da Guerra Colonial e as memórias construídas a partir destes fatos. Na Introdução os organizadores ressaltam que a problematização da memória é um dos objetivos da obra e afirmam que As voltas do passado é um livro que se preocupa com “o regresso da guerra aos sucessivos presentes, em combinações irregulares entre a evocação de um passado constitutivo e os usos seletivos da memória.”
O projeto editorial do livro ganha complexidade quando consideramos a pluralidade de movimentos sociais, grupos políticos e forças militares envolvidas no processo que resultou na independência de Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Angola e Moçambique, e, quando consideramos as dimensões culturais Guerra Colonial – experiência que em Portugal também é conhecida como Guerra Ultramar. Diante de um projeto editorial ousado e de um tema amplo e complexo, e, considerando também o fracionamento do livro em 47 textos (uma Introdução e 46 capítulos) optei por organizar a presente resenha a partir de categorias que podem facilitar ao leitor o mapeamento das diversas temáticas tratadas na obra As voltas do passado. Cabe a ressalva de que as categorias não se encontram explícitas no livro, ou seja, elas são um recurso introduzido na resenha para expor, ainda que de forma sucinta, a diversidades de temas e a qualidade das pesquisas reunidas por Cardina e Martins.
A primeira categoria que apresento é a dos massacres. Ela é composta de quatro textos. Inês Nascimento Rodrigues escreveu sobre o “Massacre de Batepá”, ocorrido em São Tomé e Príncipe no dia 03 de fevereiro de 1953. Nesta data, o governo usou de extrema violência para reprimir os protestos de ruas feitos pelos “forros” (grupo etnocultural dominante nas ilhas do arquipélago). Em 1976, no primeiro ano pós-independência, o governo de Guiné-Bissau criou o “Dia dos Mártires do Colonialismo” e fez do 03 de fevereiro um feriado nacional, posteriormente, em 1980, a data foi passou a ser chamada de “Dia dos Heróis da Liberdade” – mudança de nome que desloca a memória do sofrimento para o heroísmo. Para além da mudança no nome do feriado nacional, a simbologia do “Massacre de Batepá” tem sido tema de discussões e disputas entre grupos que possuem interpretações diferentes sobre os fatos ocorridos. Sílvia Roque foi a autora do estudo sobre o massacre ocorrido na cidade portuária de Pidjguiti (Guiné Bissau), no dia 03 de agosto de 1959, quando uma intervenção policial na greve que estava em curso resultou na morte de 50 civis e fez cerca de 100 feridos.
A violência usada pelo governo colonial em Pidjguiti fortaleceu a adesão da sociedade ao incipiente movimento anticolonial na Guiné Bissau. Consolidada a independência, o dia 03 de agosto foi declarado feriado nacional e na segunda metade dos anos 70 surgiram diversas iniciativas para construir uma memória exaltando os mártires de Pidjguiti. Uma vez transformado em memória, o massacre foi sendo gradualmente resignificado. A partir de 1983 o massacre de Pidjguiti perde espaço na imprensa e nas festividades, apesar da existência do feriado. A relação entre um massacre e a construção de memórias sobre o fato também está presente no texto de Michel Cahen, autor de estudos sobre o Massacre de Mueda, ocorrido em Moçambique, em 1959.
Em Mueda, a violência do governo colonial foi usada contra os macondes – grupo étnico que havia se retirado do território de Moçambique por não concordar com o sistema de trabalho imposto pelas autoridades coloniais. Terminada a guerra, a memória do Massacre de Mueda foi construída pela Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) que anualmente relembrava o fato encenando uma grande peça teatral. Mas a versão da FRELIMO não era a mesma guardada na memória dos macondes, e, num ato de revolta contra a memória oficial do governo moçambicano, em 1995 os atores se recusaram a participara da encenação. A participação dos macondes na Guerra Colonial em Moçambique reaparece no texto de Mustafah Dhada, autor que concentrou sua análise no “Massacre de Wiriamu”, ocorrido em 16 de dezembro de 1972. A repressão aos macondes era o objetivo da missão militar promovida por Portugal na região do Wiriamu e os procedimentos usados foram de extrema violência (incêndio de aldeias, extermínio de animais domésticos, tortura e execução de prisioneiros indefesos e perseguições nas matas).
A segunda categoria que apresento é a da questão racial, sendo esta composta por dois textos. José Pedro Monteiro e Miguel Bandeira Jerónimo abordam a revogação do Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas – documento criado em 1926 e que fixava distinções jurídicas entre cidadãos plenos de direitos e a maioria dos africanos residentes nas colônias e genericamente classificados como “indígenas”.
Na interpretação dos autores, a revogação do indigenato, ocorrida no dia 06 de setembro de 1961, foi um fato de singular importância para supressão de uma classificação social racial, e, deve ser interpretada como um ato político marcado, de um lado, por interesses internos do Império Português, e, do outro, por interesses externos que pressionaram o Império no sentido de abolir as desigualdades no tratamento jurídico da sua população. Monteiro e Jerónimo advertem para o risco de interpretações superficiais sobre o colonialismo tardio português e argumentam que fatos como a supressão das diferenças raciais (1961) e a posterior criação do Código do Trabalho Rural (1962) demandam novas pesquisas acadêmicas. André Caiado escreveu sobre as mudanças ocorridas na significação do dia 10 de junho – data da morte de Camões. Em 1925 a data 10 de junho passou a ser o “Dia da raça Portuguesa”, expressão que projetava a ideia de uma matriz cultural unindo Portugal e os povos que habitavam suas colônias. A partir de 1963, já no contexto da Guerra Colonial, o 10 de junho passou a ser a data de homenagem das Forças Armadas e o Estado Novo promoveu eventos e construiu monumentos para valorizar a imagem da corporação militar. A partir de 1978, os militares são afastados da celebração da data e o dia 10 de junho se torna uma celebração cívica marcada por discursos políticos voltados para a inserção de Portugal na comunidade europeia e para a integração cultural da comunidade de países de língua portuguesa – uma integração na qual já não cabe mais a ideia de uma “raça portuguesa”.
No conjunto dos 46 textos que formam a obra As voltas do Passado, três deles se enquadram na categoria de estudos de gênero. Isto não significa que os autores apresentem os seus textos como reflexões sobre questões de gênero. Contudo, tanto no texto de Verónica Ferreira, quanto no de Gerhard Seibert e no de Isabel Maria Cortesão Casemiro, encontramos espaço para o protagonismo das mulheres no contexto da Guerra Colonial. Casemiro escreveu sobre a vida e a morte de Josina Machel – guerrilheira da FRELIMO que foi transformada em heroína da luta pela independência de Moçambique.
A data de falecimento de Josina Machel (dia 07 de abril de 1971) tornou-se o Dia da Mulher Moçambicana, numa construção memorialística que evoca a sua atuação militar e, ao mesmo tempo, sua atuação em prol da educação e assistência às crianças. Seibert escreveu sobre o envolvimento das mulheres no processo de independência de São Tomé e Príncipe. Neste país, depois da independência, o dia 19 de setembro passou a ser o Dia da Mulher – data que relembra uma importante manifestação anticolonial liderada por mulheres. Ferreira, por sua vez, também escreveu sobre as mulheres, mas num sentido inverso, abordou o trabalho do Movimento Nacional Feminino criado em Lisboa, em 28 de abril de 1961, para incentivar o esforço português na Guerra Colonial. Tratava-se então de um movimento alinhado com o projeto colonial do Estado Novo e impregnado de um sentimento nacionalista.
Passamos agora para o que chamo de categoria das estratégias culturais. Como sabemos, uma guerra é também um produto cultural. E, no caso da Guerra Colonial – conflito marcado pela oposição entre o nacionalismo português e os incipientes nacionalismos das colônias africanas, as partes envolvidas usaram de múltiplas estratégias culturais para atingir seus objetivos. Do lado de Portugal, uma das estratégias foi o fechamento da Casa dos Estudantes do Império – fato ocorrido no dia 02 de setembro de 1965. Helena Wakin Moreno e Cláudia Castelo abordaram este fato e destacaram a preocupação da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) com os posicionamentos anticoloniais procedentes da Casa do Estudante. Com o término da Guerra Colonial, e, sobretudo, no decorrer dos anos 90, iniciou-se um processo de construção da memória da Casa dos Estudantes do Império – processo que encontrou adeptos em Portugal e nos países africanos de língua portuguesa.
Do lado das colônias, as estratégias culturais de mobilização para a luta foram muitas. Celeste Fortes e Rita Rainho escreveram sobre a Rádio de Libertação do Partido Africano para Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Usada como instrumento para motivar os combatentes e as populações que apoiavam a luta anticolonial em Guiné-Bissau e no Cabo Verde, a Rádio de Libertação buscou interação com as camadas populares usando falas no dialeto crioulo e em diferentes idiomas africanos (mancanhe, balanta, madjaco, fula, balanto e outras). Enquanto o PAIGC usava as ondas de rádio para fomentar o apoio social ao anticolonialismo, em Moçambique, a FRELIMO organizava a publicação dos seus primeiros livros reunindo poemas de combate e discursos de líderes do movimento. A história do livro “Poesia de Combate”, editado pela FRELIMO, é o tema do estudo de Maria Benedita Basto. Comparando a primeira edição do livro, publicada em 1971, com a segunda, publicada em 1979, Basto constatou que a FRELIMO suprimiu diversos textos, e, ao fazer isto, diminui a importância das narrativas dos guerrilheiros e priorizou textos que ressaltavam a certeza de vitória da luta anticolonial – luta que ganhava novo sentido no contexto do alinhamento do governo de Moçambique à União Soviética.
Três dos textos do livro convergem para a categoria prisão/liberdade – uma categoria antitética que possui um papel relevante para a compreensão da Guerra Colonial. A luta anticolonial potencializava a liberdade – aqui entendida como aspiração política – e, ao mesmo tempo, ameaçava com a prisão os que desafiassem a autoridade do Estado Novo. Dentro deste jogo de antítese, resistir à prisão e fugir dela eram condições essenciais para a continuidade da luta. Na obra As voltas do Passado, o binômio prisão/liberdade está presente no texto de Nélida Brito sobre a libertação dos presos políticos do Campo do Tarrafal (Cabo Verde). O mesmo binômio aparece na escrita de Diana Andringa que abordou colaboração de missionários religiosos na saída de líderes africanos que residiam na Europa no começo da Guerra Colonial. Fidel Reis abordou as prisões promovidas pelo PIDE nos anos de 1959/60 como marco na construção de uma memória angolana sobre a luta anticolonial. Na interpretação proposta por Reis, as prisões e as torturas delas decorrentes, apesar de enfraquecerem as incipientes organizações nacionalistas angolanas, influenciaram na transição de uma luta política para uma luta armada contra as forças coloniais.
Pensando na importância que os líderes assumem no processo de mobilização pró-independência e no impacto que a morte deles provoca, classifico dois textos do livro na categoria assassinatos. Nesta categoria podemos enquadrar o texto de Teresa Cruz e Silva e o texto de Redy Wilson Lima e Miguel de Barros. Silva escreveu sobre a vida e a morte de Eduardo Chivambo Mondlane, um dos criadores da FRELIMO e primeiro presidente do movimento pró-independência de Moçambique. Mondlane foi assassinado por uma bomba que recebeu na forma de presente. A data do seu assassinato (03 de fevereiro de 1961) foi transformada pela FRELIMO em “Dia dos Heróis Moçambicanos” e o seu nome é perpetuado na memória de Moçambique através de monumentos e dos livros didáticos.
Sem desconsiderar a importância de Mondlane para a formação da FRELIMO (produto da união de três movimentos pró-independência que atuavam no exílio), Silva adverte para a existência de uma manipulação da memória do personagem e afirma que não existe um consenso sobre quem preparou a “bomba-armadilha” que resultou no seu assassinato. Lima e Barros escreveram sobre o assassinato de Amílcar Cabral, o líder mais expoente do movimento pró-independência de Guiné-Bissau. Os homens que assassinaram Cabral e sua esposa, no dia 20 de janeiro de 1973, foram presos e fuzilados, mas nunca se soube ao certo quem foram os “autores morais” do crime, uma vez que Cabral tinha inimigos externos (autoridades portuguesas) e inimigos internos (correntes do PAIGC que defendiam a união dos territórios de Guiné-Bissau e Cabo Verde). As dúvidas decorrentes do assassinato não impediram que surgissem diferentes memórias sobre quem foi Almícar Cabral e sobre o que ele representou na história africana. Atualmente, as ideias e ações deste personagem são usadas por diferentes movimentos sociais e são resignificadas na música, no teatro e na literatura.
O papel das Forças Armadas portuguesas na Revolução dos Cravos e o impacto da Guerra Colonial estão contemplados na categoria que denominei fim do Estado Novo. Nesta, o texto de Rui Bebiano concentrou-se nas ideias discutidas pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) – movimento militar de insubordinação que encerrou o Estado Novo. Na análise de Bebiano merece destaque a revisão da tese de que o MFA teria sido o “motor da Revolução”. Partindo de outra perspectiva, Manuel Loff aborda a Revolução dos Cravos apontando a existência de três fases de construção memorialística sobre o fim do Estado. A primeira foi breve e correspondeu aos anos de 1974/75 quando as vítimas do regime de Salazar elaboraram uma representação “antifacista e anticolonial” sobre a Revolução dos Cravos. A partir de 1976, com a reorganização do sistema democrático e o deslocamento do poder dos militares para os civis, ocorreu um gradual “silenciamento” a respeito do autoritarismo do Estado Novo e da perda das colônias na África, e, posteriormente, no decorrer dos anos 90, as tensões entre adeptos e críticos do Estado Novo ressurgiram na forma de uma “rebelião da memória”.
Entre o começo da Guerra Colonial e a independência das colônias portuguesas na África ocorreram diversos atos diplomáticos, alguns procedentes de Portugal, outros procedentes dos grupos pró-independências ou de nações que se posicionaram sobre o assunto. No livro aqui resenhado, 3 capítulos se enquadram na categoria que proponho chamar de movimentos diplomáticos. Os seus autores são: Susana Martins; Odete Semedo e Ancieto Afonso. Martins abordou as ideias discutidas na Primeira Conferência das Organizações Nacionalistas das Colônias Portuguesas, ocorrida em Casablanca, em 1961. Neste evento, as lideranças do PAIGC, do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e da FRELIMO reafirmaram a decisão pela luta armada em prol da independência, definiram planos para divulgar a luta perante a comunidade internacional e sinalizaram a intenção de cooperação no pós-independência. Semedo, por sua vez, escreveu sobre a Proclamação Unilateral de Independência de Guiné-Bissau, ocorrida em 24 de setembro de 1973.
A autora concedeu uma atenção especial para o trabalho diplomático realizado pelo PAIGC que buscou o apoio de diversos países e recebeu uma comitiva da ONU para avaliar a situação nas áreas que estavam sob seu controle. O terceiro texto que trata da diplomacia no contexto da Guerra Colonial aborda um assunto incipiente nas pesquisas acadêmicas: a articulação entre Portugal e a África do Sul na intenção de conter o movimento pró-independência em Angola. A abordagem foi feita por Aniceto Afonso, um experiente pesquisador sobre a política externa do Estado Novo. Segundo Afonso, sob a presidência de Marcelo Caetano, Portugal buscou o apoio de Pretória para implantar um governo branco e segregacionista nas suas antigas colônias africanas. Esta aproximação diplomática de Lisboa com Pretória, ainda pouco pesquisada, é chamada pelos historiadores de Exercício de Alcora.
O posicionamento da comunidade internacional a respeito da Guerra Colonial não foi homogêneo e estático. Convém lembrarmos que nos anos 50, 60 e 70 a chamada Guerra Fria acentuou a bipolarização política/ideológica que encontrou nos Estados Unidos e na URSS seus principais expoentes e promotores. No caso específico da Guerra Colonial, houve uma importante aproximação entre os movimentos pró-independência e Cuba. Considerando esta conjuntura, entendo que dois dos textos podem ser enquadrados na categoria conexão África-Cuba. Dentro da respectiva categoria, Raquel Ribeiro abordou a Conferência Tricontinental em Havana (CTH), realizada em 1966.
Conforme ressaltou Ribeiro, Cuba tornou-se um importante aliado para os movimentos anticoloniais da África, e, a partir da CTH, este apoio foi intensificado via fornecimento de material bélico, apoio médico e educacional e cooperação cultural. A conexão África-Cuba também está presente no texto de Angela Benoliel Coutinho que trata da atuação de um grupo de 31 guerrilheiros que receberam treinamento militar em Cuba. No seu texto, Coutinho também trata do trabalho de reconstrução da memória da luta anticolonial conduzido pelo Partido Africano pela Independência de Cabo Verde (PAICV), partido que assumiu o comando de Cabo Verde nos anos 90 e que buscou um afastamento simbólico do PAIGC. Como bem salientou a autora, as intervenções do PAICV na memória da Guerra Colonial foram feitas “sem recurso a referendo” – fato que caracteriza a existência de uma “guerra pela memória” dos símbolos da independência.
Na categoria das revoltas enquadram-se os textos de Sheila Khan, Maria da Conceição Neto e Aida Freudenthal. Khan escreveu sobre a revolta da população branca e de opositores da FRELIMO que no dia 07 de setembro de 1974 promoveram violentos protestos de rua motivados pela assinatura do acordo de paz entre o governo de Portugal e a FRELIMO. Segundo Khan, o acordo excluiu outros grupos políticos do poder e inviabilizou a criação de um governo de minoria branca, projeto desejado por uma pequena parcela da população de origem portuguesa. A revolta camponesa ocorrida em fevereiro de 1961 na região da Baixa Kasange (Angola) é o tema do texto de Freudenthal. Nesta região, os atritos entre os camponeses e os administradores da empresa Cotonang resultaram num ciclo de violência que demandou a intervenção de forças militares aéreas e terrestres. O fato recebeu uma primeira narrativa feita pelas autoridades portuguesas que diminuíam a dimensão da revolta e atribuíam a agitação dos camponeses aos comunistas. A versão dos camponeses permaneceu na oralidade, contando com alguns registros de missionários religiosos que coletaram depoimentos dos sobreviventes.
O terceiro texto da categoria também trata de acontecimentos ocorridos em Angola. Ele foi escrito por Neto e destaca a revolta de camponeses eclodida no dia 15 de março de 1961, no norte do território angolano, na fronteira com o Congo. A liderança da revolta coube a União das Populações de Angola (UPA). Na ofensiva da UPA, centenas de colonos brancos foram executados. Nos dias seguintes à ofensiva, a população branca reagiu e iniciou uma série de violência contra os negros da região. Os dois lados cometeram atrocidades. Do lado de Portugal, as fotos da violência contra os brancos foram usadas como propaganda para mobilizar a opinião pública em prol da Guerra Colonial. Do lado angolano, o fracasso da revolta colocou em xeque a capacidade dos movimentos de independência alcançarem seus objetivos pela força das armas.
A relação entre a experiência da guerra e as marcas que ela produziu na memória dos militares sobreviventes é o tema de convergência dos textos da categoria convivendo com a guerra. Nesta, enquadram-se cinco capítulos do livro que tratam, sob diferentes perspectivas, de fenômenos mnemônicos ligados à Guerra Colonial. Ângela Campos pesquisou sobre a memória de combatentes portugueses no momento de partida para África. Elsa Peralta escreveu sobre o envio do primeiro regimento de militares para Angola, ato ordenado por Salazar como reação ao massacre de colonos provocado pela revolta camponesa na Baixa de Kassange (norte de Angola). Mais do que o fato em si, o que Peralta explora em seu texto é o silenciamento de Portugal diante das violências da Guerra Colonial e a persistência da imagem de um império humanista.
O envio de tropas para a África também é o tema do texto de Maria José Lobo Antunes, autora de uma pesquisa com memórias de veteranos portugueses da Guerra Colonial. Um dos aspectos interessantes do texto de Lobo é a distinção entre a “cronologia oficial da guerra” e as “cronologias privadas” que emergem nos relatos dos veteranos. Tiago Matos Silva participou do livro com um texto sobre a memória dos veteranos que participaram do Regimento de Comandos – unidade militar portuguesa especializada no enfrentamento de guerrilhas. Com o término da Guerra Colonial, os veteranos do Regimento de Comandos iniciaram um processo de preservação das suas memórias a partir da realização de eventos abertos ao público e de rituais com acesso restrito somente para os ex-combatentes. Cabe a ressalva de que a memória dos Comandos mescla momentos de ufanismo e de rituais festivos com momentos de sofrimento partilhado pelos traumas e perdas sofridos na experiência da guerra. Os que sobreviveram ao combate sofrem. E os que desertaram também. O ato da deserção e as suas consequências morais e políticas é o tema do texto de Miguel Cardina, autor que escreveu sobre a história de um grupo de desertores das Forças Armadas de Portugal. Quantitativamente os desertores foram poucos, no entanto, o impacto da escolha que eles fizeram foi grande, na medida em que potencializou um discurso de crítica à violência e aos objetivos políticos da Guerra Colonial. Se os desertores foram poucos, o mesmo não se pode dizer dos multilados pelo conflito. Bruno Sena Martins pesquisou a história dos multilados a partir da Associação dos Deficientes das Forças Armadas (ADFA), criada no dia 14 de maio de 1974. O trabalho desenvolvido pela ADFA, dando voz e visibilidade aos militares multidados, excede o ativismo político, na medida em que coloca Portugal diante de um passado marcado por violências contra os africanos e contra os seus próprios cidadãos e produz uma memória crítica sobre a Guerra Colonial. A necessidade de produzir memórias sobre violência da luta armada é um desafio, tanto para os veteranos das forças armadas portuguesas, quanto para os grupos guerrilheiros africanos. Um destes grupos, a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), foi estudado por Justin Pearce. No caso da UNITA, a memória coletiva do grupo incorporou as suas ideias iniciais (firmadas no Primeiro Congresso de Muangai, 1966), as suas dissidências com a MPLA e a FNLA que resultaram na Guerra Civil em Angola e a sua posterior transformação em partido político de oposição. Trata-se de uma memória dinâmica que é permeada de um esforço constante para explicar a escolha pela guerra e para recuperar e resignificar ideias que forjaram a identidade da UNITA.
Nos capítulos finais do livro As voltas do Passado os organizadores reuniram cinco textos que classifico como interpretações da independência. Escrevendo sobre a experiência de Moçambique, Maria Paula Meneses interpreta fatos como a mudança dos nomes de ruas e a mudança no currículo escolar como parte de uma “epistemologia descolonizadora”. A mesma autora ressalta as adversidades enfrentadas para organização do novo país, dentre as quais ela destaca a diversidade de étnicas e culturas existentes em Moçambique e a postura autoritária assumida pela FRELIMO no pós-guerra. Furtado escreveu sobre os diferentes significados que a independência recebeu em Cabo Verde. O autor aponta a coexistência de três tipos de embates pela imposição de uma narrativa “verdadeira”: o primeiro é entre os próprios combatentes; o segundo é entre os combatentes e grupos políticos de oposição; e o terceiro embate envolve os dois primeiros e as pesquisas acadêmicas. Para além da diversidade de atores e narrativas produzidas, no caso de Cabo Verde importa ressaltarmos que o projeto de uma unidade política entre Guiné-Bissau e Cabo Verde foi abandonado no decorrer da Guerra Colonial, fato que gerou interpretações ambíguas, sobretudo no que diz respeito ao papel do PAIGC no processo anticolonial.
A pluralidade de interpretações sobre a independência também pode ser observada em Angola – tema tratado por Vasco Martins. Em Angola, existe um consenso registrado em livros de história, nos jornais e revistas, de que a luta armada foi necessária para a libertação nacional; no entanto, existem divergências a respeito do papel dos líderes nacionalistas. Segundo Martins, Agostinho Neto (líder do MPLA) é reconhecido pela maior parte dos angolanos como o “pai da nação”, enquanto outros ativistas da luta anticolonial, como Jonas Savimbi (líder da UNITA) e Holden Roberto (líder da UPA) não recebem o mesmo espaço na construção da memória nacional angolana. A desigualdade na distribuição dos méritos pela independência é um aspecto comum nos países africanos de língua portuguesa. Escrevendo sobre São Tomé e Príncipe, Inês Nascimento Rodrigues afirma que a formação de um governo monopartidário sob o comando do Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP) silenciou outros grupos políticos que participaram da mobilização anticolonial. O quarto texto que trata das interpretações da independência foi escrito por Margarida Calafate Ribeiro. A autora concentrou sua atenção no retorno de portugueses que abandonaram as antigas colônias durante ou depois a Guerra Colonial. Nas memórias destes portugueses, abandonar a África (e as vidas que lá construíram) implicava em iniciar um árduo trabalho de reconstrução identitária e de superação das adversidades decorrentes da migração forçada.
Não posso concluir sem justificar uma opção de corte que poderá ser avaliada como equivocada pelos leitores. Considerando que uma resenha deve ser sucinta, e, considerando a diversidade e complexidade dos temas tratados no livro As Voltas do Passado, decidi excluir da análise 8 textos que tratam de operações de guerra. Isto não significa dizer que as operações militares promovidas por Portugal ou pelos grupos guerrilheiros africanos tenham pouca importância no conjunto da obra. Acredito que todos os textos do livro são importantes, sobretudo para leitores brasileiros que possuem pouco contato com a historiografia da Guerra Colonial. No entanto, priorizei temas e fatos que apresentam conexões com os fenômenos mnemônicos e ressaltam a diversidade de atores, ideias e estratégias de luta mobilizadas no processo de independência das colônias portuguesas na África – processo que não pode ser dissociado da conjuntura da Guerra Fria e do enfraquecimento do Estado Novo. Diante uma opção de corte que acredito ser necessária e que não compromete os objetivos gerais da resenha, e, também em respeito aos autores dos textos não contemplados, descrevo a seguir os nomes e os títulos de capítulos suprimidos da análise. São eles: Amélia Neves de Souto – “Inicio da Operação Nó Górdio, Moçambique (1970)”; Carlos de Mato Gomes – “Operação Mar Verde (1970)”; Leonor Pires Martins e José Neves – “Ataque ao Quartel de Tite: inicio da Guerra na Guiné (1963)”; Marcelo Bittencourt – “Ataques em Luanda (1961)”; Julião Soares Sousa – “Batalha da Ilha de Como/Operação Trindade (Guiné); Albert Farré – “Inicio da luta armada em Moçambique (1974)”; Paulo Lara – “Criação da Base Guerrilheira de Bernó, no norte de Angola”; e Leopoldo Amado – “PAIGC ataca e toma o Quartel de Guiledje”.
Resenhista
Fabiano Quadros Rückert – Doutorado em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.
Referências desta Resenha
CARDINA, Miguel; MARTINS, Bruno Sena. (Orgs.). As voltas do passado. A Guerra Colonial e as lutas de libertação. Lisboa: Tinta de China, 2018. Resenha de: RÜCKERT, Fabiano Quadros. Jogos de Memória: narrativas historiográficas sobre a Guerra Colonial na África e em Portugal. AbeÁfrica: revista da associação brasileira de estudos africanos, v.02, n.02, p. 138 – 145, abr. 2019. Acessar publicação original [DR]