As várias faces dos feminismos: memória, história, acervos/Acervo/2020

Feminismo anarquista, feminismo negro, feminismo cristão, feminismo islâmico, ecofeminismo, feminismo decolonial (ou descolonial), feminismo latino-americano, feminismo imigrante… Em tempos e espaços diversos, empunhando várias bandeiras de luta, enfrentando violentas críticas e embates, perpassados por tensões teóricas e políticas fragmentadoras, os feminismos estão presentes em todos os continentes e cumprem um papel fundamental na sociedade contemporânea. Mas, para melhor compreendê-los em sua historicidade e complexidade, torna-se cada vez mais necessário refletir sobre a importância da preservação de acervos que guardam as memórias do engajamento feminino em lutas políticas fundamentais pelos direitos das mulheres, contra as discriminações e os preconceitos de gênero, contra a escravidão de africanas(os), contra o racismo e as desigualdades sociais e econômicas, pela democracia, entre muitas outras.

O dossiê As várias faces dos feminismos: história, memória, acervos foi organizado por iniciativa da revista Acervo, do Arquivo Nacional, justamente com o objetivo de conferir visibilidade ao papel essencial das coleções arquivísticas, referentes aos mais diversos tipos de fontes, na construção de análises inscritas no âmbito da história das mulheres, dos movimentos feministas e das relações de gênero em contexto mundial.

Abrimos a edição com as entrevistas concedidas por duas historiadoras que, pertencentes a gerações distintas, têm se dedicado aos estudos feministas. Margareth Rago (Unicamp) pertence ao grupo das jovens pioneiras que construíram a área da história das mulheres e das relações de gênero no Brasil. Suas primeiras pesquisas geraram duas publicações fundamentais para o campo − Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar −Brasil, 1890-1930 (1985) e Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo, 1890-1930 (1991). Além disso, juntamente com Adriana Piscitelli, Elisabeth Souza-Lobo e Mariza Corrêa, integrou um grupo de estudos do gênero, criado em 1990, com o objetivo de organizar um núcleo de pesquisas, o que, de fato, ocorreria três anos depois, com a fundação do Núcleo de Estudos do Gênero Pagu (Unicamp) e dos Cadernos Pagu. A partir do lugar de historiadora feminista e dos feminismos, Rago nos fala, respondendo às questões colocadas por Anadir Miranda, sobre sua trajetória intelectual, sua produção no âmbito dos estudos feministas, o recente processo de feminização da cultura e as tendências atuais dos principais enfoques teóricos e políticos dos pensamentos e ações no campo do feminismo, entre outros temas fundamentais.

Na segunda entrevista, Ana Rita Fonteles Duarte (Universidade Federal do Ceará − UFC) nos conta que seu interesse na área dos estudos feministas levou-a a desenvolver uma pesquisa sobre o jornalismo feminista de Carmen da Silva em sua monografia de final do curso de graduação em Comunicação Social e Jornalismo. Esse tema foi também o objeto central de sua dissertação de mestrado em História Social, realizada no Programa de Pós-Graduação em História da UFC, publicada com o título Carmen da Silva: o feminismo na imprensa brasileira (2005). A partir daquele ano, Ana Rita Fonteles Duarte passou a dedicar-se ao estudo sobre o Movimento Feminino pela Anistia no Ceará, tema de sua tese de doutorado, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), publicada em 2012, com o título Memórias em disputa e jogos de gênero: o Movimento Feminino pela Anistia no Ceará (1976- 1979). Durante o período do doutorado, integrou o Laboratório de Estudos de Gênero e História (2006), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História e ao Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC. Composto por pesquisadoras(es) ligadas(os) aos estudos de gênero, entre as quais Cristina Scheibe Wolff e Joana Maria Pedro, tornou-se uma das principais referências no campo. Na entrevista realizada por Magali Engel, Ana Rita Fonteles Duarte nos fala sobre sua atuação como uma das pesquisadoras do projeto “Mulheres de luta: feminismo e esquerdas no Brasil (1964-1985)”, coordenado pela professora Cristina Scheibe Wolff. Narra como chegou a uma documentação de extrema relevância, referente à vigilância dos movimentos feministas promovida pelos órgãos de repressão da ditadura militar no Brasil da década de 1970. Discorre sobre a riqueza e o potencial destas fontes para problematização e análise de temáticas bastante diversas, especialmente no que tange aos impactos para o campo dos estudos feministas.

Os artigos que compõem esta edição podem ser agrupados em torno de três temas. O primeiro refere-se aos acervos que guardam memórias femininas e feministas, disponibilizados em arquivos, bibliotecas e outros tipos de instituição. É o caso do texto de Maise Caroline Zucco (Universidade Federal da Bahia − Ufba), “Circulação de saberes: publicações brasileiras sobre mulheres, gênero e feminismos no depósito legal (1960-1999)”. Baseada na coleção do depósito legal, a autora identifica publicações feministas brasileiras difundidas no país de 1960 a 1990. O artigo “Mulheres no acervo de uma instituição científica: o Instituto Oswaldo Cruz (1930- 1970)”, assinado por Nara Azevedo, Luiz Otávio Ferreira e Daiane Silveira Rossi, três pesquisadores da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, analisa a coleção arquivística da Fundação Oswaldo Cruz, constituída por documentos institucionais e pessoais relativos ao campo brasileiro das ciências biomédicas e da saúde pública (fins do século XIX a início do XXI). No estudo, as autoras e o autor buscam dar visibilidade à presença feminina, destacando, sobretudo, a figura de bibliotecárias, enfermeiras e pesquisadoras que atuaram na referida instituição entre os anos de 1930 e 1970. Na seção Artigos Livres, encontramos o estudo de Débora de Souza e Rosa Borges, ambas da Ufba, sobre a história e a memória das resistências negras na Bahia, a partir do acervo de Nivalda Costa (1952-2016). A importante intelectual negra desempenhou papel fundamental de militância nas lutas pela preservação e valorização das culturas, das artes, das religiosidades e memórias afro-brasileiras, atuando como antropóloga, líder religiosa, educadora e artista. Por fim, na seção Documento, o artigo “O fundo Federação Brasileira pelo Progresso Feminino no Arquivo Nacional”, de Carolina Calixto (Universidade Federal Fluminense − UFF) e Viviane Gouvêa (Arquivo Nacional), analisa o fundo arquivístico e a trajetória da referida associação durante o período do regime civil-militar brasileiro. A FBPF foi fundada em agosto de 1922, na cidade do Rio de Janeiro, por iniciativa de Bertha Lutz (1894-1976), cientista brasileira e uma das mais importantes líderes das lutas pelos direitos civis e políticos das mulheres.

O segundo grupo de textos reúne reflexões abrangentes sobre os feminismos islâmico, conservador e negro, proporcionando, assim, o acesso a dimensões inéditas das múltiplas e complexas questões que vêm permeando as trajetórias históricas dos movimentos e dos estudos feministas. Nesse sentido, o artigo de Margot Badran (Georgetown University), intitulado “(Re)posicionando o feminismo islâmico”, já publicado em inglês e francês, foi disponibilizado pela autora com um prefácio dedicado especialmente a este número da revista Acervo. O texto aborda os percursos das principais discussões no interior dos movimentos femininos e feministas islâmicos, através de uma abordagem transnacional, que abarca os últimos trinta anos. Consideramos, assim, que o estudo de Badran é uma importante contribuição original, capaz de trazer grandes frutos para o âmbito dos estudos feministas brasileiros. O texto “Qual feminismo? Reflexões sobre o feminismo conservador e a escrita militante de Amélia Rodrigues (1861-1926)”, assinado por Ana Paula Vosne Martins (Universidade Federal do Paraná − UFPR), traz igualmente uma análise original, importante no atual contexto brasileiro, e voltada para a história de nossos feminismos conservadores. Vosne Martins se debruça sobre a trajetória da escritora baiana Amélia Rodrigues, no interior do movimento feminista católico do início do século XX, demonstrando a complexa relação entre as perspectivas progressistas e conservadoras, no que dizia respeito à participação das mulheres na sociedade. Bárbara Araújo Machado (UFF/Observatório da Classe Trabalhadora), em sua investigação sobre a autonomia e a solidariedade no movimento de mulheres negras no Brasil na década de 1980, conta-nos a trajetória de formação dos primeiros grupos feministas negros, no contexto da abertura política e redemocratização no Brasil. A autora nos traz as principais questões surgidas no movimento, bem como os mecanismos de memória utilizados por suas participantes pioneiras para contarem sua própria história.

Finalmente, os três artigos citados a seguir constituem análises inscritas no campo da história das mulheres e das relações de gênero. Em “Las africanas de la fragata Dos Hermanos em Cuba: madres, después de esclavas (1817-1837)” – publicado originalmente em inglês, na Women’s History Review –, as historiadoras cubanas Aisnara Perera Díaz (Casa de la Cultura de Bejucal, Unión Nacional de Historiadores de Cuba − Unhic) e María de los Ángeles Meriño Fuentes (Casa de la Cultura de Bejucal, Unhic e Unión de Escritores y Artistas de Cuba − Uneac) analisam características da experiência da maternidade no cativeiro, bem como a luta de mulheres libertas para resgatar seus filhos e assumir o controle sobre seu destino. A investigação fundamenta-se no processo desencadeado pelo decreto instituído pelo rei espanhol Fernando VII, em 1817, que libertou mais de duzentos(as) africanos(as) da fragata Dos Hermanos, que seriam comercializados(as) como escravos(as), em 1795. Segue-se ao estudo das autoras cubanas o artigo de Símele Soares Rodrigues (Université Jean Moulin Lyon 3), intitulado “Poetisas e escritoras fora da ordem”. Soares Rodrigues explora com acuidade os arquivos do Departamento de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo (Deops/SP), analisando documentos relativos a escritoras vigiadas pelo governo e tidas como subversivas e “fora da ordem”. A autora nos mostra o poder político da arte na pena de mulheres que ousaram desafiar os lugares tradicionais atribuídos a elas pela sociedade brasileira do século passado. Por fim, Lucas do Carmo Dalbeto (Universidade do Oeste Paulista − Unoeste) e José Carlos Marques (Unesp/Bauru), no artigo intitulado “É o que eu vou fazer! Feminismos possíveis na adaptação cinematográfica de Mulher Maravilha”, refletem sobre as possíveis representações feministas do filme Mulher Maravilha (2017), dirigido pela cineasta e roteirista estadunidense Patty Jenkins. Os autores constroem o artigo a partir de considerações originais sobre as relações entre os estudos de gênero, a crítica feminista e o cinema contemporâneo.

A resenha “A enorme força expressiva da explosão feminista”, assinada por Paulo Brito do Prado (Secretaria de Estado da Educação de Goiás), nos conduz a reflexões em torno de uma das mais recentes e importantes obras de uma grande intelectual feminista brasileira contemporânea, Heloisa Buarque de Hollanda, publicada com o título Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade, em novembro de 2018.

Em tempos especialmente difíceis, quando a tragédia assume proporções planetárias, atravessando todas as dimensões das vidas humanas, e de modo singular as das mulheres, esperamos que a leitura dos textos aqui reunidos possa trazer à tona a experiência original de grupos femininos que lutam(ram) por seus direitos. As investigações sobre ações e reflexões dos personagens e grupos feministas e femininos abordados revelam diferentes aportes para repensarmos a sociedade que queremos e que poderemos construir após a crise mundial provocada pela pandemia de um vírus que sufoca as vozes de suas vítimas.


Organizadores

Magali Gouveia Engel – Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora visitante da Universidade Federal da Bahia.

Natália de Santanna Guerellus – Doutora em História Social da Cultura pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professora ATER (attaché temporaire d’enseignement et de recherche) na Universidade Lyon 3, França.

Rachel Soihet – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo e professora titular da UFF.


Referências desta apresentação

ENGEL, Magali Gouveia; GUERELLUS, Natália de Santanna; SOIHET, Rachel. Apresentação. Acervo. Rio de Janeiro, v. 33, n. 2, p. 7-11, maio/ago. 2020. Acessar publicação original [DR/JF]

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