As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária | Rodrigo Patto Sá Mota

Entendidas, fundamentalmente, como instâncias de grande potencial para o proselitismo e a formação de quadros destinados às esquerdas, de imediato as universidades entraram na mira de grupos civis e militares deflagradores do golpe de 1964. Vindo logo depois das organizações sindicais e dos trabalhadores do campo na ordem das prioridades do regime que se instalava, os aparatos censores e repressivos mobilizados à época também se estenderam ao espaço acadêmico. Naquele momento, ante o virtual perigo vermelho, tão evidenciado pela retórica do autoritarismo, os usurpadores da legalidade democrática trouxeram à baila o tema da corrupção para atacar seus inimigos junto às instituições de ensino superior.

Frente à falta de credibilidade na temática e de consenso quanto à real necessidade de ênfase nessa questão, mais do que o corpo docente em si, eram os alunos e, em especial, sua representação mor, a União Nacional dos Estudantes (UNE), que se encontrava na linha de fogo do novo governo. Mesmo porque, se os primeiros eram, em sua maior parte, inclinados aos valores conservadores – circunstância esta atingida por grandes alterações ao longo da ditadura -, outro tanto não se poderia dizer sobre os acadêmicos. Afinal de contas, o cenário da representação discente vinha sendo ­marcado por traços de radicalização desde meados do século, participação nos debates sobre as chamadas reformas de base e paulatino acolhimento de suas reivindicações pelo presidente João Goulart.

Inseridas no livro As universidades e o regime militar, de autoria do historiador Rodrigo Patto Sá Motta, esses e outros assuntos compõem parte significativa do estudo cujo fôlego documental e fluidez narrativa tem o mérito de bem caracterizar o clima de tensões pós-64, por intermédio de um equilibrado zigue-zague entre perspectivas panorâmicas e exames detalhados das circunstâncias em apreço. Justo quando o episódio do golpe de Estado completou meio século, em 2014, a historiografia brasileira foi presenteada com um conjunto de pesquisas e projetos editoriais. Dentre estas se encontra o trabalho de Patto Sá Motta, posto que inserido no selo 1964, cinquenta anos depois, da editora Zahar, que de longe, pelo ineditismo das fontes, originalidade e rigor analítico, ocupa posição de destaque.

Seja porque consultou acervos pouco conhecidos (com ênfase para os documentos da comunidade de informações que atuou no ensino superior e dos arquivos estadunidenses), seja porque alargou as principais interpretações empregadas para explicar o golpe e os regimes militares que lhe deram se­quência. A obra superou pesquisas que aludem ao ocaso da chamada forma populista de governar e à aliança do governo com agentes externos (de modo a importar as causas do autoritarismo). É indiscutível que o presente estudo apresenta o que pode ser apontado, talvez, como a face ditatorial cautelosa do regime, tendo em vista que o espaço universitário era visto como área estratégica.

Assim, ao longo dos oito capítulos que compõem a pesquisa, Motta consegue mostrar, num primeiro momento, como a chamada Operation Clean-Up – segundo os registros diplomáticos e/ou investigativos da administração estadunidense – ensaiava os primeiros passos do governo autoritário. Neste sentido, o trabalho apresenta o quadro geral de suas diligências e avalia seus impactos no ambiente acadêmico. Com o fito de eliminar da cena pública os adversários do regime, de confiscar livros de bibliotecas ou de editoras cujas mercadorias fossem consideradas subversivas, não é difícil imaginar o tamanho das perdas.

Contrários à livre circulação de pessoas e ideias, tais gestos receberam a pecha de terrorismo cultural em denúncias veiculadas pela imprensa e geraram fortes preocupações nas bases do Poder Executivo, pois esse modus operandi não era, necessariamente, um procedimento padrão. Aliás, a pesquisa demonstra como o governo do pós-golpe oscilava entre uma imagem de ditatura escancarada e de mantenedores de certo status quo democrático – ao menos discursivamente -, temerosos de má repercussão externa.

Por isso, apesar de adesões políticas e ideológicas ao regime, Patto Sá salienta que os expurgos também abriram caminho para atitudes oportunistas aos que almejavam melhores postos na carreira universitária. Entretanto, no caso das reitorias, adverte que os desligamentos foram mínimos, em especial para que se evitassem críticas ao governo (tal como a de intervencionista), a exemplo do que se daria na ditadura argentina, onde vários militares da ativa assumiriam o posto mais alto da administração do ensino superior.

Mas este estado da arte não impediu que Inquéritos Policiais Militares (IPMs) fossem largamente empregados nas ações investigativas, pois já constavam nos códigos jurídicos das Forças Armadas e na Lei de Segurança. A diferença foi que, após 1964, além de transgressões militares, os IPMs passaram a se ocupar com os chamados crimes políticos. Mesmo assim, as demandas censórias e repressivas tiveram recepções e apropriações distintas nas mais diversas regiões do país – os termos em itálico são meus; Motta prefere o uso da problemática ideia de influência. Efetivamente, uma maior ou menor aplicabilidade das deliberações autoritárias dependia das configurações locais de poder. Ao fim e ao cabo, nesse primeiro ciclo repressivo – para utilizar os termos mobilizados pelo autor – foram expurgados cerca de cem professores, cuja lista deixou entrever o cuidado do governo em tentar não mexer em nomes de muito prestígio, em particular quando dispunham de reconhecimento internacional.

Seja como for, o fato é que na estrutura do sistema universitário brasileiro, considerada arcaica na década de 1960, a peça central de sua engrenagem era a figura do professor catedrático. Este correspondia ao posto de maior prestígio da carreira acadêmica, porque, além de se tratar de um cargo vitalício, aqueles que o alcançassem contariam com boa remuneração, poderiam selecionar seus assistentes, decidiriam os programas e atividades de ensino e passariam a integrar os conselhos decisórios da instituição. Tamanha centralidade deixava pouco espaço, salários não atrativos e mínimas perspectivas ou autonomia aos demais.

Some-se a isso a falta de vagas para o ingresso de estudantes. Neste sentido, ainda que tenha ocorrido expansão entre as décadas de 1940 e 1960 (conforme indicam os dados apresentados por Patto Sá), o número de vagas não se equiparou com a demanda, cada vez mais estimulada pela conjugação dos processos de crescimento urbano, demográfico e industrialização.

Além disso, outros impedimentos às mudanças apareceriam, conforme diagnósticos do regime. Esses apontavam a incapacidade do Ministério da Educação e Cultura (MEC) para levar adiante qualquer plano de reformas, uma vez que estava desgastado com o passar de mais de trinta anos de existência – desde sua criação no governo de Getúlio Vargas, onde desempenhou papel decisivo. De fato, à época o MEC estava enfraquecido, composto com pessoal mal remunerado e sem preparo. Não foi à toa que só Castello Branco contou com cinco ministros na pasta. O período do primeiro general presidente, aliás, foi o que houve maior aproximação com os Estados Unidos da América, cujos contatos com o Brasil tinham se intensificado nos anos 1940, ainda durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Como era de se esperar, as motivações estadunidenses para tentar interferir nas universidades brasileiras (o envio de verbas para formar quadros simpáticos aos Estados Unidos, a capacitação de professores e estudantes por meio de intercâmbios, bem como a tradução de obras em inglês) compunham parcela de um conjunto de iniciativas que objetivavam barrar o possível avanço do comunismo no continente durante a Guerra Fria. A trama contava ainda com a política externa norte-americana, a partir do governo John Kennedy, que passou a implementar o programa da Aliança para o Progresso, iniciado em 1961, portanto, antes do golpe, para inundar o continente com recursos financeiros e técnicos. Como desdobramento da chamada Aliança, foi criada a United ­States Agency for Development (Usaid) para atuar no âmbito educacional, mas que desde os anos 1950 agia no Brasil sob outras rubricas.

Com o cuidado para não municiar interpretações equivocadas de certa historiografia insustentável ao menor levantamento documental, Patto Sá demonstra em que medida o Ato Institucional no 5 (AI-5) direcionou o regime a proporções jamais vistas de autoritarismo desde a deflagração do golpe. Neste sentido, além de analisar os pormenores da extinção de diretrizes basilares dos direitos humanos e a supremacia do Poder Executivo sobre o Legislativo e o Judiciário, como a bibliografia do tema já têm apontado há muito, nosso autor enfatiza suas consequências no espaço acadêmico, sem exaltar o Ato como marco inicial da truculência.

Mesmo assim, é inegável que em 1968 tenha começado o segundo ciclo repressivo nos campi com a retomada das listas de expurgos. E apesar da baixa quantidade de professores afetados (cerca de 1%), estes integravam os mais importantes centros da produção acadêmica, razão pela qual os prejuízos científicos foram enormes. Ademais, após o AI-5, veio o Ato Complementar no 5 (AC-5) que impedia a atuação, em solo nacional, dos docentes atingidos, diferentemente das primeiras cassações, que não tiveram esse controle. Convém salientar também a inexistência de registros de corrupção no sentido administrativo, muito embora, dentro da lógica e valores propagados pelas Forças Armadas e, por extensão, do regime, supostas condutas homossexuais, relacionamentos de professores com universitários e uso de entorpecentes eram considerados gestos corruptos.

A partir de 1970, como consequência do AI-5, foram criadas as Assessorias Especiais de Segurança e Informações (AESI) pelo governo, para vigilância da comunidade acadêmica e expansão do Sistema Nacional de Informações (SISNI). Esses órgãos disseminaram o medo nos campi e, mesmo sem possuírem poder de polícia – o que não impediu abusos de poder -, afetaram a vida acadêmica, com interferência em pesquisas, dificultando a concessão de verbas ou bolsas de estudos e impedindo a realização de eventos e cerimônias.

Momento de inflexão nessa conjuntura foi a Lei no 5.540. Ela congregou um conjunto de iniciativas para a realização da reforma universitária, a começar pela extinção das cátedras (que os dispositivos jurídicos precedentes não haviam enfrentado) e pela reafirmação do sistema departamental (com previsão de carreira acadêmica e criação de institutos de pesquisa) até chegar ao fortalecimento do reitor como figura decisória e munida de recursos financeiros para enfrentar o poder das faculdades. Além disso, foram implementadas as listas sêxtuplas (dobrando as chances de escolha de um candidato do governo na reitoria) e unificou-se os vestibulares, tornando-os concursos classificatórios.

Temendo as ondas antiamericanas (anunciadas pelos protestos estudantis a partir de 1968 – não só no Brasil – e pela queima de bandeiras de consulados), os representantes dos Estados Unidos julgaram o AI-5 e seus desdobramentos como erros que só faziam esfriar os acordos educacionais em curso. Segundo os interessados, tais erros produziriam publicidade negativa em território americano e europeu. Somado a isso, ocorreu uma mudança capital na Casa Branca que, a encargo de Richard Nixon (republicano), praticamente abandonou a Aliança para o Progresso. Esta situação, vale notar, significou uma vitória para os estudantes, pois conseguiram obstruir a implementação absoluta dos acordos MEC-Usaid pela ditadura.

Por conta dessas questões, cabe à historiografia não realçar indevidamente o poder e o peso da participação estadunidense no golpe e na manutenção do regime, sobretudo em seus desdobramentos no espaço acadêmico, onde valores da esquerda, usos e intensificação de conceitos marxistas só aumentaram no decorrer dos anos 1970 e 1980. Apesar disso, dentre os muitos paradoxos mostrados pela pesquisa, talvez os maiores estejam ligados à modernização autoritária, responsável pelo aumento considerável de universidades federais (eram 21 antes do golpe de 1964 e 33 uma década e meia depois), pela expansão do corpo docente (composto por 15 mil em 1968 e 38 mil após dez anos), bem como dos acadêmicos (que passaram de 140 mil em 1964 para 1,4 milhão em 1984 no somatório com os universitários das instituições privadas).

Em paralelo a essas configurações marcadas pela ambiguidade, ocorreram avanços nas Ciências Sociais. Para explicar essa circunstância, Patto Sá recua ao início da década de 1960, por ele visto como o momento de institucionalização da referida área do conhecimento – com a liderança da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade de Brasil (UB) e da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de Minas Gerais (UMG) -, sob a justificativa de que, antes do período, as análises histórico-sociológicas do país tinham sido feitas por intelectuais com atuação irregular no espaço universitário e cujas reflexões foram marcadas pelo caráter ensaísta.

Ora, que tais instâncias contribuíram para a institucionalização das Ciências Sociais no Brasil e que muitos intelectuais ainda eram mais afeitos à narrativa ensaísta para suas interpretações do país, a bibliografia debruçada sobre o assunto não deixa dúvidas. O que, entretanto, parece ilusório é supor que o referido processo só tenha se iniciado em 1960 e, especialmente, após a criação dos cursos de pós-graduação pelo governo no fim do decênio e início da década seguinte. Em realidade, como a literatura especializada tem demonstrado nos últimos anos, desde meados do século XX se pode falar em um verdadeiro estabelecimento das Ciências Sociais enquanto disciplinas acadêmicas, a despeito de suas distintas temporalidades de consolidação. Em especial por conta dos primeiros frutos gerados pelo surgimento das universidades nos anos trinta, com a formação das primeiras turmas, feitura, defesas e publicações de trabalhos, ainda que limitadas basicamente ao estado de São Paulo, com a já referida USP na dianteira.

A propósito, convém ressalvar: no índex do Ministério da Justiça não figuravam títulos de Karl Marx, tão somente edições de marxistas compreendidos como revolucionários, para que a pasta não fosse acusada de violar o livre pensamento. Até mesmo o ministro Jarbas Passarinho e muitos reitores mantidos ou apoiados pela ditadura eram sensíveis à verdade singela segundo a qual Marx não poderia ser banido das referidas formações acadêmicas. E assim foi, pois, conforme demonstrou Patto Sá, por mais que o pensador germânico fosse consumido, muitas vezes, a doses superficiais, a difusão de seus escritos só cresceu no período e, sem sombra de dúvida, ajudou a fundamentar as bases para o enfrentamento com o regime.

Para o autor, diferente do governo varguista, os novos donos do poder não tinham um projeto nacional. Por isso, ao ponderar sobre os usos da conceituação binária “resistência” e “colaboração”, argumenta que esses termos surgidos após a Segunda Guerra – a seu ver, à época, já simplistas -, para tratar dos embates que envolviam o fascismo no espaço europeu, não servem para o caso brasileiro estado-novista ou do pós-64. E mais: apesar dos paralelos possíveis que têm sido feitos, ao contrário de países como a França de Vichy, não houve derrota militar ou ocupação estrangeira no Brasil. Atento à complexidade nacional, Patto Sá propõe ao menos três possibilidades, a saber, “resistência”, “adesão” e “acomodação”. De fato, a flexibilidade desta tríade conceitual permite a adoção de duas ou mesmo de três posturas por agentes históricos, tanto em momentos distintos, quanto simultaneamente.

Em meio ao clima de abertura política, houve o desmonte do aparato repressivo nas universidades e, com isso, o questionamento da escolha dos dirigentes das instituições. Antes mesmo que a sociedade brasileira reivindicasse o direito de eleições diretas para presidente da República, a comunidade acadêmica já requeria sua participação na escolha dos reitores. Mas não se tratava de reconquista de direitos, porque apesar das muitas formas e tentativas do governo para o controle e o cerceamento das liberdades, tais mecanismos de participação no mundo universitário eram reclamados desde os debates reformistas, sobretudo nos encontros promovidos pela UNE, uma vez que eles, simplesmente, não existiam.

Sob o eufemismo, com tom pejorativo, de limpeza, o regime prendeu, interrogou, exilou, demitiu, expulsou e torturou professores e estudantes. No entanto – e esta é a tese maior do estudo -, em sintonia com o que chamou de tradição conciliatória da cultura política brasileira, os gestos da modernização autoritária foram permeados por atitudes moderadas, redundando em configurações que, muitas vezes – pelo menos entre os setores intelectuais e acadêmicos -, buscou antes acomodar no lugar de deslocar; negociar em vez de promover embates frontais.

Assim, a pesquisa do professor Rodrigo Patto Sá Motta enfatiza que, apesar desses jogos de arranjos, não podemos ficar com a ideia de um regime incruento, tendo em vista que a violência não apenas existitu, como foi, seguramente, a de maior truculência no período a que se convencionou chamar de Brasil Republicano. Por tudo isso, ainda que dispense recomendações, enquanto as vítimas daqueles governos iniciados em 1964 clamam por reparação e justiça, o livro As universidades e o regime militar contribui para o debate e, portanto, aguarda a merecida leitura.


Resenhista

André Carlos Furtado – Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF). Niterói, RJ, Brasil. E-mail: afurtado@id.uff.br.


Referências desta resenha

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. Resenha de: FURTADO, André Carlos. Campus à espreita: o pós-golpe de 1964 e o mundo acadêmico no Brasil. Topoi v.16 n.31 Rio de Janeiro july./dec. 2015.

Itamar Freitas

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