As últimas testemunhas: crianças na Segunda Guerra Mundial | Svetlana Aleksiévitch

No livro As últimas testemunhas, Svetlana Aleksiévitch, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2015, apresenta uma centena de relatos de adultos que vivenciaram a Segunda Guerra Mundial durante a infância. Com apenas duas pequenas citações “Em lugar de prefácio…”, o restante do livro é todo marcado pelas vozes dos entrevistados, e as conclusões da leitura ficam a cargo de cada leitor.

Os relatos, coletados entre os anos de 1978 e 2004 e somente traduzidos para o português em 2018, trazem o modo como cada adulto, na época criança, viu, sentiu e viveu a guerra. Tratava-se, na maioria, de crianças de 2 a 14 anos, com exceção de algumas que nasceram a partir de 1941, e de um garoto que nasceu no ano em que o conflito acabou (1945), mas que parece ter vivido a guerra tão intensamente quanto os demais, quando afirma: “Nasci em 1945, mas lembro da guerra. Conheço a guerra”, nos remetendo ao conceito de “acontecimento vivido por tabela” (Pollak, 1992).

Ao iniciar a leitura, fica-se buscando uma apresentação, uma contextualização do que virá, mas a interferência explícita da autora se restringe às citações tomadas como prefácio; à apresentação de cada entrevistado informando seu nome, a idade que tinha quando a Alemanha invadiu a União Soviética, em 1941, e a profissão que exercia na época em que Svetlana o entrevistou; e por fim, à seleção da parte do relato a ser apresentada. No mais, Svetlana dá voz aos entrevistados. São vozes que chocam, assustam, emocionam, indignam, provocam compaixão, deixam atônito o leitor.

Entre pausas, choro, verbalização do quanto é insuportável relembrar e afirmação de que pelo mal que lembrar faz preferem não recordar, relembraram e contaram, o que faz pensar que a autora, cuja prática com esse tipo de trabalho é reconhecida, deve ter conseguido construir uma relação de confiança e ou demonstrar a importância de suas histórias serem contadas, e assim conseguiu se colocar, verdadeiramente, na posição de escuta (Pollak, 1989). Com certeza, apesar do sofrimento que poderia lhes causar a rememoração daquelas vivências, perceberam na autora uma possibilidade de escuta de suas vozes, de suas vivências, e como resultado o leitor veio a conhecer suas histórias.

Para uma compreensão mais ampla e completa da realidade, é necessário que as “memórias subterrâneas” (Pollak, 1989) sejam trazidas à tona, e essa parece ser uma das principais contribuições de Svetlana, que entrevista pessoas comuns, com diferentes formações, que ocupam ou ocuparam postos de trabalho diversos e que tiveram experiências pós-guerra também diversas.

As experiências, ainda que do mesmo “evento” e que, de certa forma, compõem uma memória coletiva, são experiências individuais e, portanto, relatadas de forma particular por cada um dos entrevistados, e trazem vozes que destoam da história oficial.

Para além de toda a dor, fome, medo e sofrimento, chama atenção a percepção que algumas crianças de mais idade tinham do seu papel na guerra, segundo o relato dos entrevistados. Algumas delas faziam questão de ir para o front, lutar junto aos adultos. Ainda que por vezes fossem rejeitadas, pela idade e por seu tamanho, algumas não desistiam e, por fim, acabavam sendo aceitas e participando efetivamente junto aos soldados. Outras atuavam como auxiliares de profissionais de saúde nos postos e hospitais para tratamento de feridos de guerra. Percebe-se que havia nelas uma “formação nacionalista” do que seria “ser cidadão da nação”, e esse sentimento parece ter sido tão fortemente construído em algumas delas que, ao relatar, verbalizam ou deixam entender que, na época, não sentiram medo, não tiveram dúvida de seu dever de participar da guerra. Parece ter havido, naquela época, para aqueles sujeitos ainda com tão pouca idade, um “enquadramento de memória” (Pollak, 1989) em que o dever de cada sujeito estava acima do risco de morte eminente.

Ao pensar na infância como um período em que os sujeitos deveriam ser cuidados e protegidos por adultos, mereciam ter tempo para brincar, estudar e vivenciar momentos de lazer entre seus pares, pensar uma infância vivida na guerra, com crianças assumindo papel de adulto de modo aparentemente naturalizado, é certamente chocante para quem imagina, à distância, os fatos.

No geral, os relatos demonstram que todas as crianças, com “consciência nacionalista” ou não, viveram situações que ninguém, independentemente de idade, deveria viver. Elas viram as mais diversas crueldades. Viram seus pais serem fuzilados e jogados em valas, crianças serem queimadas ou fuziladas, adultos serem enterrados vivos, avós mortos, pessoas caídas cheias de marcas de tiros, comunidades inteiras sendo queimadas. Elas caminhavam entre mortos, entre tantas outras brutalidades. Eram crianças pequenas que foram afastadas de seus pais, que foram deixadas sozinhas ou, por vezes, tiveram de cuidar de seus irmãos, ainda menores, sem ter o que comer e beber, sem saber o que fazer, para onde ir e a quem recorrer. Sentiam tanta fome que a vegetação por onde passavam era devastada e dividida entre os sobreviventes como o único alimento. Na falta absoluta de comida, a água com cheiro do couro da cinta velha fervida virava sopa, e terra com leite derramado virava produto caro entre as terras vendidas como alimento. O medo era tanto que houve quem tenha ficado sem voz por mais de ano, ou quem tenha esquecido o próprio nome e a própria história. Foi um período em que os orfanatos passaram a ser a casa de muitas crianças, e poucos foram os que reencontraram os pais.

O cenário é o mesmo para todos os entrevistados, de modo que poderíamos falar de uma “memória coletiva” (Halbwachs, 2006), mas observa-se, pela variedade dos relatos e, principalmente, pelo sentido dado por cada um, que não há uma coesão, pelo menos não para todos. Há, aparentemente, dois grupos: aqueles que se percebiam como combatentes, que consideravam ter um dever a cumprir, faziam questão de cumpri-lo e se sentiam cidadãos ao ter sucesso, e aqueles que se viam como crianças que eram, perdendo seus portos seguros, sentindo medo, fome e dor. Todos seguiram uma trajetória infinita em busca de se reconstituir dentro de suas redes restritas de contato, ao longo de toda a vida. E suas lembranças, por serem opostas à memória nacional e provocarem desconforto, dor ou constrangimentos, ou ainda por buscarem preservar “os seus” de sofrimento, são marcadas pelos “não ditos”, por silêncios e por ressentimentos (Pollak, 1989).

É preciso entender que quem fala nesses relatos não são as crianças em si, que vivenciaram a guerra, mas os adultos que naquela época eram crianças e que hoje dão sentido àquele vivido com base em sua experiência da época e em sua trajetória de vida.

A leitura de As últimas testemunhas apresenta um período histórico-social extremamente dramático e cruel, que causou muito sofrimento e deixou marcas definitivas em muitas pessoas, mas esse quadro confirma, ao mesmo tempo, que memória, mesmo que seja influenciada, ao longo do tempo e por diversas formas, pelo meio social, continua sendo “um ato e uma arte pessoal de lembrar os acontecimentos” (Portelli, 1997), e somente ouvindo essas pessoas é possível ir montando o “mosaico” que é a história.

É preciso continuar ouvindo as memórias subterrâneas, como faz Svetlana, de modo a trazer à tona e manter viva a história que a história oficial gostaria de esquecer.

Referências

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução: Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.

PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: algumas reflexões sobre a ética na história oral. Projeto História, São Paulo, n. 15, p. 13-49, abr. 1997.

Dalânea Cristina Flôr – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil. E-mail: d.c.flor@ufsc.br

Claricia Otto – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil. E-mail: clariciaotto@gmail.com


ALEKSIÉVITCH, Svetlana. As últimas testemunhas: crianças na Segunda Guerra Mundial. Tradução do russo: Cecília Rosas. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. Resenha de: FLÔR, Dalânea Cristina; OTTO, Claricia. A escuta como forma de testemunhar o sofrimento vivido por crianças na Segunda Guerra Mundial. Revista História Hoje. São Paulo, v.8, n.16, p. 256-259, jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

 

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.