As questões socialmente vivas e a produção historiográfica / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2017

Nesta edição, a Revista Clio se voltará às questões socialmente vivas e sua relação com a produção historiográfica. Ao propor este Dossiê, pensamos em mobilizar historiadores do Brasil a partir do interesse em contribuir, enquanto área do conhecimento, para análise e problematização dos retrocessos políticos e sociais do nosso tempo.

Vivemos em um tempo marcado pela retomada de ideias fascizantes, propagadas por setores conservadores da grande imprensa nacional, e materializadas nas propostas políticas que defendem, por exemplo, a “lei da mordaça” (Escola sem Partido), a redução da maioridade penal e o Estatuto da Família. Muitas dessas ideias remetem a tempos pretéritos, como os do colonialismo patriarcal, da escravidão e dos governos autoritários, e se apresentam como questões socialmente vivas. Mas, o que são tais questões?

Esta pergunta nos inquietou deste o início e se tornou um desafio. Os trabalhos recebidos nos levaram a problematizar a nossa proposta, uma vez que, mesmo apresentando um tema sensível muitos dos artigos não traziam abordagens preocupadas em responder os problemas sociais do nosso tempo. A partir das discussões construídas, chegamos a considerar que nem sempre um tema sensível é abordado a partir de uma questão socialmente viva.

Acreditamos que ao abordar os temas sensíveis à luz das questões socialmente vivas, os historiadores e historiadoras devem estar atentos à complexidade dos problemas sociais construídos historicamente que ainda nos afetam enquanto sujeitos individuais e coletivos, que nos afligem enquanto sociedade e que nos indignam enquanto sujeitos. A partir desse prisma é possível produzir outros deslocamentos de análise, buscando colocar no centro do debate os problemas sociais produzidos no passado que ainda se encontram presentes na nossa sociedade.

Ao trabalhar com a temática da escravidão negra no Brasil, por exemplo, a depender da abordagem, podemos invisibilizar os problemas sociais gerados pela prática escravista ou até reproduzir a ideia construída pelo projeto político colonial. Como trabalhar com a questão da escravidão a partir de uma abordagem sensível?

Debruçar-se sobre as questões socialmente vivas é estar preocupado com os problemas sociais historicamente construídos que ainda provocam desigualdades, intolerâncias e as mais diferentes formas de violência que desafiam a dignidade humana. Não podemos estudar a história da escravidão sem pensar no racismo que ainda permanece vivo, no genocídio da juventude negra, nas desigualdades econômicas que afetam a população afrodescendente.

A produção historiográfica ainda se encontra fortemente marcada pela tradição disciplinar, que por sua vez tende a tornar os temas sensíveis em temas cartesianamente positivados, negando os sujeitos e a complexidade de suas vivencias, no sentido individual e coletivo. O desafio de tornar um tema sensível em uma questão socialmente viva é o de “descolonizar” o olhar sobre o tema, fissurar os discursos cristalizados, questionando a própria forma que o conhecimento vem sendo construído sobre a temática.

Ao prefaciarem a coletânea Epistemologias do Sul, Maria Paula Meneses e Boaventura de Souza Santos afirmam que “toda experiência social produz e reproduz conhecimento”, ou seja, as nossas experiências podem nos levar a reproduzir trabalhos historiográficos que reproduzem o projeto colonizador ainda vigente.

Para Meneses e Santos, “não há conhecimento sem prática e sem atores sociais”, logo, é importante o esforço intelectual de questionar a lógica disciplinar ainda muito presente nas nossas produções. A lógica disciplinar, que consigo traz o ideário colonizador, nega o sujeito da história, pois é linear e constituidora de um cientificismo que não abarca a complexidade humana, muitas vezes o reduzindo a meras definições e conceitos vazios.

Desse modo, é fundamental desafiar a forma convencional de produzir a escrita da História, o que nos exige uma abordagem para além da perspectiva disciplinar. Os artigos que compõem este Dossiê abordam diferentes espaços e tempo históricos. São temas trabalhados a partir de historiadores e historiadoras de diferentes regiões do país, que trouxeram textos inéditos voltados para os temas sensíveis.

Apresentamos o artigo, Mulheres pedindo Justiça: processos criminais no Vice-Reinado do Rio da Prata (Século XVIII), do historiador Rafael Ruiz, que objetiva debater a questão da violência doméstica no período oitocentista, tendo processos civis e criminais como fontes de pesquisa. O texto permite construir uma reflexão sobre a relação entre a administração da justiça e as relações de gênero no América Espanhola.

O artigo História, legislação e ato infracional: privação de liberdade e medidas socioeducativas voltadas aos infantojuvenis no século XX, da autora Camila Serafim Daminelli, contemplará a história das legislações voltadas para adolescentes em situação de conflito com a Lei. Uma questão socialmente viva, fortemente marcada pelas contradições do “sistema de justiça” que não apresenta perspectivas de ressocialização para meninos e meninas que se envolvem em diferentes atos infracionais.

O historiador Helder Remigio de Amorim, em seu artigo Em tempos de guerra: Josué de Castro e as políticas públicas de alimentação no Estado Novo, de traz uma importante debate sobre a história do combate a fome no Brasil. A partir da trajetória intelectual de Josué de Castro, o historiador aborda, de modo sensível, a fome como um problema social e histórico. O autor destaca a atuação institucional de Josué de Castro em defesa das políticas de alimentação e da nutrição no Brasil.

A historiadora Kety Carla De March, no artigo intitulado“Hoje eu resolvi deixar o mundo”: Narrativas de suicídio m Guarapuava-Pr nos anos 1950, abordará neste Dossiêa questão do suicídio. A partir dos inquéritos policiais e de relatos de memórias, a autora procura analisar como foram construídos os discursos sobre as pessoas que cometiam o suicídio, na cidade interiorana do Paraná. Através deste artigo podemos (re)pensar a história da saúde mental no Brasil e os dispositivos de controle social construídos a partir da disciplinazação dos corpos.

Finalizando este Dossiê, trazemos o artigo Democracia, justiça e estado de exceção: Passado presente, do historiador Tásso Brito. Um texto que nos faz (re) pensar a “democracia” brasileira e como o cotidiano das pessoas comuns é marcado por diferentes formas de repressão. O autor questiona o discurso oficial da “República Cidadã” e reflete sobre as diferentes formas de injustiças e desigualdades sociais que marca a política e a sociedade brasileira.

Estado de exceção, suicídio, fome, adolescentes em privação deliberdade, mulheres em busca de “justiça”. Temas sensíveis que devem ser problematizados como questões socialmente vivas.

Parafraseando Marc Bloch, “eis portanto o historiador (e a historiadora) chamado a prestar contas” do passado (BLOCH, 2001, p.41). Para que os profissionais da história prestem contas do passado é fundamental a mudança de olhar sobre as temáticas que pesquisamos. Trabalhar com as questões socialmente vivas nos exige uma virada epistemológica, que nos leva a pensar o conhecimento histórico a partir de outra ética acadêmica que desafia o conhecimento disciplinar.

Pensar as questões socialmente vivas nos faz descolonizar o conhecimento tradicionalmente construído e enveredarmos esforço em uma ética transdisciplinar, que procura o diálogo entre as diversas áreas do conhecimento, que respeita as diferenças e coloca a produção historiográfica também como um instrumento para a transformação social.

Humberto Miranda – Organizador do Dossiê. Professor do Programa de Pós-Graduação em História Regional da Cultura da Universidade Federal Rural de Pernambuco. E-mail: humbertoufrpe@gmail.com

Isabel Guillen – Organizadora do Dossiê. Professora do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: icmg59@gmail.com


MIRANDA, Humberto; GUILLEN, Isabel. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.35, n.1, jan / jun, 2017. Acessar publicação original [DR]

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