As profissões imperiais: medicina/ engenharia e advocacia no Rio de Janeiro (1822-1930) | Edmundo Campos Coelho

A primeira coisa a dizer sobre o livro é que ele encanta pela qualidade da escrita, que não submerge aos ditames do ‘sociologuês’ corrente e nos apresenta um texto claro, fácil e agradável. Mas ele também é louvável pela qualidade da pesquisa realizada, ampla e completa. O autor soube reunir extensa documentação e informação bibliográfica da melhor qualidade para produzir um quadro rico em nuanças das nossas profissões clássicas em início de carreira. Nesse estudo, Edmundo Campos Coelho propõe-se a expor a sua própria “versão do processo de constituição das profissões tradicionais (medicina, advocacia e engenharia) ao longo do século XIX e das primeiras décadas do seguinte” (p. 34). A ênfase do autor recai sobre a dimensão institucional do processo no sentido amplo, isto é, procurando esclarecer as teias de relações sociais que fornecem as bases institucionais para a definição da posição dos grupos profissionais. As histórias da Academia Imperial de Medicina, do Instituto dos Advogados Brasileiros e do Instituto Politécnico Brasileiro, dos consensos e conflitos em torno dessas instituições e de suas sucessoras, compõem uma trama complexa dentro da qual o Estado tem papel destacado – “é o fio que unifica a trama e lhe dá alguma unidade” – sem ser o responsável exclusivo pelo desenrolar da mesma.

Na primeira parte do livro, o autor aponta o problema das profissões na história brasileira, destacando como ponto fundamental a regulação desses grupos, ou seja, o estabelecimento legal das garantias de monopólio no mercado de serviços e dos privilégios associados. Partindo do conceito de “cidadania regulada”, Edmundo Coelho define os grupos profissionais por sua autonomia e pelo monopólio que obtêm sobre certas áreas da divisão social do trabalho, descartando as noções muito diluídas do senso comum, bem como alguns conceitos equivocados dentro da própria sociologia. O segundo capítulo, brilhante!, é o que poderíamos chamar de uma “revisão criativa” da literatura sobre o Estado, o mercado e suas relações com as profissões. Terminado o prólogo, passamos aos seis deliciosos capítulos históricos em que nos são apresentados, no terceiro capítulo, “os profissionais na sociedade de corte” com informações sobre os seus ganhos, assim como várias tabelas sobre o tamanho e a proporção da população profissional e seus rendimentos médios e também documentos e textos sobre as situações, nem sempre privilegiadas, de trabalho dos três grupos profissionais.

Na terceira parte do livro, temos o relato bastante detalhado das trajetórias de médicos, advogados e engenheiros. A partir do ‘Doutor Jobim e sua Academia’, tomamos conhecimento dos métodos e das fontes de conhecimento utilizadas nos trabalhos práticos, dos desafios enfrentados pelos acadêmicos – a homeopatia e a necessidade de regulação das práticas e dos praticantes – na tentativa de “nacionalizar” o projeto médico, dos recursos por eles utilizados e das divisões entre os médicos. Sobre os advogados e a legião de praticantes que lhes fazia concorrência temos notícia no capítulo 5, onde também podemos aprender muito sobre os ordenamentos legais brasileiros. A hierarquia dos trabalhos jurídicos incluía, primeiramente, os bacharéis, em seguida os advogados provisionados (sem grau acadêmico, tendo apenas sido submetidos a exames teóricos e práticos) e, finalmente, os solicitadores (pessoas para quem a única exigência era a submissão a exame prático diante de um juiz). A essa hierarquia formal agregava-se uma infinidade de apadrinhamentos e procedimentos não tão formais, o que acabava gerando uma situação de incerteza e insegurança profissional, na qual prevaleciam linhas de diferenciação de caráter mais social que propriamente técnico ou profissional. Somos também informados sobre a “pobreza franciscana da produção doutrinal e jurisprudencial” da elite jurídica, bem como do seu pouco interesse na regulação profissional nos moldes clássicos. Deve-se destacar neste capítulo a colocação de uma questão essencial: o controle do conhecimento e de sua organização social e as disputas intraprofissionais em torno desse problema.

No capítulo 6, ‘A apoteose de Mme. Labat’, percorremos o caminho dos engenheiros, menos acidentado que os de seus colegas. Vemos nossos engenheiros trabalhando como subordinados dos estrangeiros ou “apenas” fiscalizando obras públicas e preparando relatórios.1 Mais à frente, já no Clube dos Engenheiros, sucessor do Instituto Politécnico Brasileiro, vemos os profissionais mais integrados à vida da capital do país, e, especialmente em momentos de crise, passando a atuar já como “economistas práticos”. Uma disputa de terreno com os médicos insinuou-se na virada do século XX e mostrou a “superioridade” dos engenheiros por terem soluções tecnicamente demonstráveis com os recursos da época. Aqui também as preocupações econômicas dos engenheiros renderam pontos ao grupo. O “esplendoroso poder transformador e civilizatório do conhecimento ‘positivo’” (p. 219) não pode, entretanto, garantir o reconhecimento social reivindicado pelos engenheiros, reduzidos que foram ao “modelo fiscal de obras”.2

O capítulo 7 nos apresenta o debate em torno da liberdade profissional, que, sob certos aspectos não chegou a empolgar. Com a República, manteve-se toda a legislação regulatória do exercício profissional do Império. Ainda assim, existia um debate em torno da compatibilidade entre o dispositivo penal e constitucional no novo regime. Sobre o tema opunham-se credencialistas (principalmente os médicos) e anticreden-cialistas (em geral, positivistas). Tais questões são resolvidas com a eleição do ensino oficial como “ancoradouro seguro de privilégios” (p. 256). Mesmo contestado, pois significava a permanência de privilégios numa República que tinha pretensões meritocráticas, o credencialismo acadêmico permaneceu como princípio distintivo dos grupos profissionais.

No oitavo capítulo é analisada a luta pelo controle da expansão do ensino superior. Nessa luta e nas discussões parlamentares em torno da regulação profissional torna-se clara “a ambigüidade que aflige as profissões: o horror ao livre mercado de serviços profissionais e, simultaneamente, o temor da regulação estatal do monopólio profissional (fixação de preços para os serviços, restrições à livre escolha da clientela etc.). Também ficaram nítidos os antagonismos entre os princípios (em larga medida irreconciliáveis) que distinguem da medicina preventiva ou ‘pública’ a medicina clínica, os quais não haviam podido aflorar no elitizado e diminuto mercado de serviços médicos do Império” (p. 270). Aparecem também os profissionais saídos das escolas “livres”, mais um complicador na luta pelo monopólio no mercado de serviços. E, ao lado das novas idéias, do avanço do conhecimento médico e da crença no progresso técnico, foram se aprofundando as diferenças e divergências entre os próprios profissionais. Encontramos estatistas x privatistas; defensores do segredo profissional x defensores do regulamento sanitário, que exigia notificação compulsória de certas doenças; defensores ferozes de diferentes interpretações dos direitos individuais. Neste quadro, o liberalismo perdeu espaço entre os profissionais, para dar lugar às formulações sobre os “interesses gerais da coletividade”, as “liberdades reguladas”, o “federalismo anacrônico” ou os “interesses nacionais”. Assim, sairia de cena a idéia de uma sociedade gerida pela perícia profissional para ser substituída por outra que via a sociedade organizada em ‘estados’ ou corporações que teriam seus interesses adequadamente representados.

No último capítulo, o autor volta às questões teóricas iniciais para reafirmar a complexidade das relações entre o Estado, o mercado e as profissões, analisando principalmente o caso dos advogados. E, reforçando as críticas feitas a Magali Larson anteriormente, afirma a inexistência de um projeto profissional de mobilidade coletiva entre os juristas brasileiros.

Teoricamente, o destaque dado à questão do Estado, já é, por si só, um avanço em relação à sociologia das profissões nos seus moldes clássicos e, talvez, em relação à sociologia do Estado. Estudiosos das profissões nos Estados Unidos, e mesmo alguns ingleses, dão muito pouca importância ao papel que o Estado pode desempenhar no processo de profissionalização. Edmundo Coelho, por seu lado, procura demonstrar como a regulação estatal foi central para o estabelecimento das nossas profissões, para garantir a elas o que já era reivindicado há longos anos: “‘fechamento’ do mercado de serviços profissionais e capacidade auto-regulatória, isto é, monopólio e autonomia corporativa” (p. 28). Mas o autor brasileiro faz mais que constatar essa dependência das profissões em relação ao Estado, e alinha argumentos para estabelecer as características da outra face dessa moeda: a perspectiva segundo a qual as profissões são elementos importantes na própria formação do Estado. No segundo capítulo ele estabelece essa relação tomando alguns estudos da sociologia das profissões, como os de Terry Johnson e Terence Halliday, e outros tantos de historiadores e cientistas políticos, em especial aqueles autores que trataram dos processos históricos de formação das sociedades modernas e do Estado nacional. O ponto de partida é a demonstração de que não existe uma oposição entre autonomia profissional – interpretada como pertencente à dimensão do mercado – e a regulação estatal – esta sendo atribuída exclusivamente à dimensão Estado. Para isto, Edmundo Coelho analisa alguns exemplos históricos que não só demonstram o equívoco da oposição entre as duas dimensões no caso da Europa como também “cobre(m) de densas nuvens de ceticismo a tese da predominância do mercado no processo de profissionalização nos Estados Unidos” (p. 40).

Demonstrada a falsidade histórica da antinomia entre os dois termos, o autor segue a trilha de Terry Johnson (só até o momento em que este estudioso “deixa-se seduzir pelos delírios epistêmicos e pela prestidigitação verbal de Foucault”), afirmando que “a forma adequada de entender as relações entre Estado e profissões seria em termos de um processo histórico no qual as profissões emergem como uma condição de formação do Estado e a formação do Estado como uma condição maior da autonomia profissional – onde esta última exista” (p. 54).

Este é realmente o ponto alto do estudo em pauta. O Estado aparece em alguns trabalhos importantes de autores weberianos, como o de Paul Starr (The social transformation of American medicine, Nova York, Basic Books, 1982) e o de Magali Sarfati Larson (The rise of professionalism: a sociological analysis, Berkeley, University of California Press, 1977), como sendo um objeto de disputa: os grupos profissionais lutam pelo Estado por ser este um recurso institucional importante na construção de sua posição monopólica no mercado de serviços. Sem dúvida, esta dimensão é extremamente relevante e sua inclusão nas análises das profissões significou um avanço. Mas encarar as relações entre o Estado e as profissões apenas por este prisma é deixar de lado o papel fundamental que os grupos profissionais têm na própria configuração do Estado! Se em países que têm um estado “fraco” esse deslize analítico pode passar quase despercebido, no caso das sociedades como a francesa, alemã ou brasileira isto constitui falha grave. É difícil compreender o funcionamento do Estado brasileiro sem estar atento ao trabalho de instituição realizado, ao longo do século XX, pelos engenheiros (na criação de conselhos e empresas estatais em áreas consideradas estratégicas) e economistas (que, na esteira aberta pelos engenheiros, deixam sua marca profunda no Estado através dos planos e políticas econômicas). Esses dois grupos3 estabelecem, através de inúmeras negociações e jogos de força, formas institucionais de dominação que conformam a ação do Estado em diversas áreas. Como bem mostra Edmundo Coelho, “a perícia é, de fato, nas sociedades contemporâneas, um poderoso fator de governabilidade. Não há como fazer restrições a Johnson quando afirma que ‘os governos dependem da neutralidade da perícia para tornar governáveis realidades sociais’ ou quando observa que ‘a tecnologia dos peritos, as atividades práticas das profissões e a autoridade social vinculada ao profissionalismo estão implicadas no processo de tornar as complexidades da moderna vida social e econômica cognoscíveis, praticáveis e suscetíveis de governo’” (p. 56). Seria importante acrescentar que a autoridade social vinculada ao profissionalismo tem implicações mais profundas do que Johnson ou o próprio Edmundo Coelho estariam dispostos a admitir, em especial quando se trata do Estado, pois nas sociedades contemporâneas este contribui de forma determinante para a produção de instrumentos de construção da realidade social, para a produção de “sistemas classificatórios” quase universais (não seria este o papel das categorias ocupacionais censitárias ou das definições de sanidade e aptidão física e mental?).

Edmundo Campos Coelho vê a construção do Estado brasileiro como obra de boa engenharia política e boa engenharia social – talvez, segundo o autor, um pouco mais próxima da lógica do bricolage que da lógica da engenharia –, cujo entendimento exigiria a observação dos fatos e processos mais que a busca da essência. O mesmo aconteceria com as profissões: a observação do “que faziam os nossos médicos, advogados e engenheiros do século passado” é o que permite analisar adequadamente a sua participação nesta construção. E, nesse caso, com uma exigência extra: esses grupos fazem parte do que Andrew Abbott (The system of professions: an essay on the division of expert labour, University of Chicago Press, 1988) chamou de “sistema de profissões” e as ações de cada um deles podem repercutir sobre os demais: “Em se tratando de problemas públicos (criminalidade, alcoolismo, prostituição e saúde pública), é possível traduzir o conflito por jurisdição em termos de competição pela propriedade do problema e pela responsabilidade por sua solução. Como observou Gusfield, ambos podem convergir numa mesma agência, mas este não é necessariamente o caso, pois quem reclama a propriedade do problema (a autoridade para definir sua natureza e formular teorias sobre sua causalidade) nem sempre deseja a responsabilidade pela solução. Inversamente, há quem dispute a responsabilidade sem desejar a propriedade do problema. Não é raro que a resolução da disputa pela responsabilidade venha do Estado através da formulação de políticas públicas, quando não assume ele próprio ambos os termos da equação. De qualquer forma, a competição envolve uma dimensão cognitiva ou, se quiserem, uma dimensão cultural: quem legisla sobre a ‘essência’ do problema e formula sobre ele a ‘teoria causal’ prevalecente – se é que alguma teoria prevalece num determinado momento e lugar” (p. 65).

Essas dimensões que se destacam no estudo – a participação na formação do caráter do Estado e os conflitos em torno da delimitação de áreas de competência exclusiva – nos remetem ao problema da definição de profissão. Que grupos são esses? Qual é o caráter da sua relação com a sociedade? Como se distinguem dos demais grupos? Que recursos e estratégias utilizam na sua luta pela demarcação de sua posição no espaço social?

Edmundo Coelho afirma que “o traço importante que distingue as ‘profissões’ em sua dimensão corporativa seria, em primeiro lugar, a capacidade de auto-regulação coletiva, em seguida, e estreitamente associada à condição anterior, uma certa capacidade de regular o mercado de prestação de serviços profissionais, sobretudo pelo lado da oferta, oferecendo algum tipo de ‘proteção’ aos seus membros. Um monopólio, enfim” (p. 25). Em seguida, ele completa: “o mecanismo básico de exclusão ou ‘fechamento’ do mercado de prestação de serviços profissionais era, e continua a ser, o do credenciamento educacional, a posse do diploma de nível superior” (p. 29). O autor acrescenta ainda os recursos e estratégias com que tais grupos podem ou devem contar: capacidade de mobilização dos praticantes e de persuasão social sobre a necessidade do seu trabalho, além de algum tipo de apadrinhamento, alguém que se disponha a acompanhar o processo legislativo a favor do grupo (p. 32).

Duas características importantes dos grupos profissionais aparecem aqui: a autonomia e a associação com a universidade. No entanto, elas são tratadas de forma muito ligeira. Mesmo que se concorde, pelo menos em parte, com as restrições do autor ao excesso de teorização que encontramos em algumas análises sociológicas, essas questões são muito cruciais e mereceriam maior atenção. A capacidade de auto-regulação coletiva, a autonomia, é objeto de inúmeras discussões, desde a crítica feita aos marxistas pela sua incapacidade de enquadrar teoricamente esta característica dos grupos profissionais – o modelo do “profissional como marionete” – e ganha impulso com os trabalhos de Eliot Freidson (especialmente em Profession of medicine mas também em Renascimento do profissionalismo). Se podemos falar do caráter autônomo do exercício profissional na medicina, no caso da enfermagem encontramos problemas advindos não da estrutura capitalista da sociedade, mas das relações de poder no interior do próprio sistema profissional. Por outro lado, essa autonomia médica também encontra limites na ação e na autonomia de outros grupos profissionais fortes, como os advogados4 ou os engenheiros.

Mais que isso, a narrativa do caminho percorrido pelas profissões brasileiras demonstra claramente o caráter histórico e contingente da autonomia que elas (ou algumas delas) desfrutam. Um bom exemplo é encontrado quando o autor afirma que “as soluções dos engenheiros, sobretudo na virada do século, terminariam por impor aos médicos um desconfortável regime de condomínio na esfera da saúde pública, com ponderáveis dúvidas a respeito de quem era efetivamente o síndico” (p. 150).

Igualmente, a relação com a universidade mereceria um tratamento mais aprofundado no plano teórico. A possibilidade de recorrer “à sua base cognitiva e aos resultados práticos de suas técnicas e procedimentos” é um recurso, um crédito social acumulado cuidadosamente pelas profissões. No entanto, a definição dos critérios socialmente relevantes para dar acesso aos conhecimentos, para realizar a socialização profissional e para certificar essa formação, garantindo o direito à utilização legítima desses conhecimentos, é feita num jogo bastante complexo. Nem a associação entre universidade e ciência nem a que pode existir entre certificado e prática ou posição profissional são lineares. E, novamente, como no caso da autonomia, são contingentes historicamente. A instituição do diploma como recurso de distinção social por si só é um processo complicado e a ele deve-se agregar, no caso em pauta, a diversidade de condicionamentos incluída quando passamos ao nível do certificado universitário como recurso de fechamento do mercado de prestação de serviços.

O título universitário, como certificado profissional, pode assumir semelhanças importantes com títulos de nobreza. E o material empírico apresentado no estudo oferece indicações muito interessantes de como teria se dado, no Brasil, esse “enobrecimento” dos portadores de diplomas ou como o ensino superior oficial teria sido usado como mecanismo mais importante de fechamento do mercado. A narrativa torna evidente as dúvidas, os conflitos e as negociações em torno do valor, da aceitação e obrigatoriedade dos diplomas e as dificuldades enfrentadas pelos profissionais para legitimar suas pretensões de monopólio sobre certos serviços e a sua relação com o diploma superior. É o caso dos médicos, que se dividem entre aqueles que procuravam seguir o modelo clássico de profissionalização, expandindo o número de profissionais através do aumento da quantidade de escolas, e os que argumentavam que existiria um excesso de concorrentes. Também o caso dos advogados torna claro os conflitos em torno da possibilidade de distinção profissional através de diplomas.

Finalmente, parece-me importante discutir a questão do projeto profissional. Com toda razão, Edmundo Campos Coelho afirma ser este o conceito mais fundamental na análise que Magali Larson faz do processo de profissionalização. Aproveitando a tradução do autor: “Vejo a profissionalização como o processo pelo qual produtores de serviços especiais procuram constituir e controlar um mercado para sua perícia. E porque a perícia transacionável num mercado é um elemento crucial na estrutura da desigualdade moderna, a profissionalização surge também como uma afirmação coletiva de status especial e como um processo coletivo de mobilidade social ascendente” (p. 50).

A crítica feita a Larson, no entanto, me parece inconsistente. Edmundo Coelho aceita a existência de um projeto coletivo mas descarta a possibilidade de um projeto profissional, sem que as razões para isto fiquem claras. O argumento histórico apresentado – “não importa que, eliminados os grandes focos de atrito com o Estado a partir da Terceira República, o prestígio da advocacia francesa tenha entrado em declínio ou que a Advokatur tenha fracassado na função de portadora do projeto liberal da Bürgetum. Ambas tiveram seu projeto coletivo (não, obviamente, um ‘projeto profissional’ no sentido que Larson dá ao termo), ainda que as respectivas agendas de profissionalização não tenham sido organizadas prioritariamente em torno do cash nexus” (p. 53) – me parece incapaz de explicar a natureza da distinção que o autor gostaria de estabelecer. Porque “a exigência de uma ordem legal capaz de garantir as liberdades fundamentais” (p. 51) não poderia ser considerada um dos elementos componentes do projeto profissional dos advogados franceses? As críticas à mesma autora, no último capítulo, são baseadas no caráter estamental das ações dos advogados brasileiros, que, por definição, afastaria esses profissionais dos princípios de mercado e, portanto, faria com que o conceito de Larson se tornasse inadequado. Mas, se podemos concordar com Edmundo Coelho que “a noção de projeto profissional fica inteiramente deslocada no contexto da advocacia brasileira do século XIX” pelo fato de que a elite dessa profissão não tivesse pretensões de incorporar a ‘massa’ dos praticantes, não necessitamos descartar o conceito, pois certamente podemos encontrar outros grupos profissionais para os quais ele seja importante. Não estaria Edmundo Coelho repetindo os vícios analíticos por ele criticados, isto é, reduzindo em demasia o escopo da relação entre profissão e mercado?

Além disso, por que os grupos profissionais das sociedades em que o Estado é mais forte não poderiam ter incluído em seu projeto profissional formas de moldagem específicas da ação estatal? Não terão feito isto no Brasil os engenheiros, os economistas? Por que este trabalho de instituição de formas sociais não faria parte do seu projeto profissional? Por que a organização hierárquica dos postos públicos segundo uma ordem projetada por engenheiros ou economistas não pode ser parte de um projeto coletivo de mobilidade ascendente? Não encontro razões teóricas ou mesmo empíricas no texto em pauta para a não consideração do projeto profissional de engenheiros, médicos e advogados brasileiros ou europeus. Aliás, o próprio Edmundo Coelho refere-se aos projetos profissionais dos médicos (p. 106) ou projeto de hegemonia da Academia Imperial de Medicina (p. 128). A não ser que se tenha um conceito muito limitado de profissão e de projeto profissional – que incluísse apenas atividades técnicas ou relativas às definições de limites de áreas cognitivas –, fica difícil compreender as restrições feitas pelo autor brasileiro.

Em resumo, Edmundo Campos Coelho nos brindou com um livro magnífico, no qual avança muito ao propor a articulação entre o Estado, o mercado e as profissões, onde trabalha com um conjunto de informações muito ricas e muito bem organizadas. As ressalvas aqui feitas em nada podem reduzir (nem têm essa pretensão) o brilho do estudo: são apenas preocupações de uma leitora com “inclinações teóricas”.

Notas

1 Aqui, acredito, seria importante uma comparação com os engenheiros da Escola de Minas de Ouro Preto. Criada sob os auspícios do imperador em 1876, ela imprimiu um outro caráter à formação e ao sentido do trabalho profissional dos engenheiros mineiros. Ver José Murilo de Carvalho (A Escola de Minas de Ouro Preto: o peso da glória, Rio de Janeiro, Finep/Cia. Editora Nacional, 1976).

2 Novamente aqui cabe uma questão: seria realmente este o modelo de engenheiro? Trabalhar no Estado teria sido realmente uma opção para vários desses profissionais. Mas, até onde os dados de que disponho indicam, o trabalho no Estado tinha o caráter de gestão e criação mais que de fiscalização — inicialmente nas estradas de ferro e nas minas e depois nos conselhos. Além disso, a participação em comissões e a ocupação de cargos de direção reforça as dúvidas sobre a prevalência de tal modelo. Ver Maria Ligia Barbosa (1993).

3 Ver, a respeito, Elisa Reis (‘Mercado, Estado e cidadania: as estratégias brasileiras de desenvolvimento’ em Processos e ecolhas: estudos de sociologia política, Rio de Janeiro, Contra capa, 1998); Ângela de Castro Gomes, José Luciano de Matos Dias e Marly Silva da Motta (Engenheiros e economistas: novas elites burocráticas, Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1994); Maria Ligia de Oliveira Barbosa (Reconstruindo as minas e panejando as gerais: os engenheiros e a constituição dos grupos sociaistese de doutorado, São Paulo, Unicamp, 1983).

4 Ver, por exemplo, Mary Ann Glendon (A nation under lawyers , Farrar, Straus and Giroux, Nova York, 1994.


Resenhista

Sem autoria


Referências desta Resenha

COELHO, Edmundo Campos. As profissões imperiais: medicina, engenharia e advocacia no Rio de Janeiro (1822-1930). Rio de Janeiro: Record, 1999. Resenha de: Sem autoria. Jobim e Quincas chez madame Labat: o imperador e suas profissões. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.7, n.1, mar./jun. 2000. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.