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As margens da liberdade: Estudo sobre a prática de alforrias em Minas colonial e provincial | Andréa Lisly Gonçalves

Reconstituir as trajetórias de mulheres e homens africanos, crioulos e mestiços que experimentaram a transição da condição de escravo para liberto: esta é a pretensão de Andrea Lisly Gonçalves no livro As margens da liberdade. Apresentado como tese de doutorado em 2000 na USP, o volume se insere na produção historiográfica que desde a década de 80 do século XX busca compreender as variadas dinâmicas envolvidas no passado escravista colonial e imperial brasileiro. As ideias de Gonçalves foram concebidas ao longo dos anos de 1990 contemporaneamente e em diálogo com algumas obras que se tornaram referência para o estudo da escravidão.

O ponto central do trabalho é a análise da prática de alforria em Minas Gerais, com ênfase na Comarca de Ouro Preto. O estudo empreendido para o século XVIII usa uma base de documentação por amostragem correspondente aos anos de 1735 a 1740 para o Termo da Vila do Ribeirão do Carmo e 1770 a 1775 para o Termo de Mariana. Já para o século XIX há um aprofundamento maior com o uso de fontes em série produzidas nos âmbitos dos Termos de Mariana e de Ouro Preto.

A autora se dedicou a entender as dinâmicas envolvidas na obtenção da liberdade a partir de documentos como testamentos, inventários, ações de liberdade e, principalmente, cartas de alforria registradas em Livros de Notas. Na sua concepção, as cartas de alforria, também chamadas de papéis de liberdade em alguns momentos, possibilitam tanto o estabelecimento de variáveis quantitativas quanto oferecem informações para subsidiar reflexões qualitativas que dificilmente poderiam ser realizadas a partir de outros documentos.

A associação de métodos quantitativos com qualitativos, apesar de não ser uma prática historiográfica incomum no contexto em que a tese foi produzida, revela-se como uma das grandes qualidades de As margens da liberdade. Essa opção metodológica possibilita uma investigação mais aprofundada das esferas sociais, culturais, políticas e jurídicas envolvidas nos mecanismos de libertação. O diálogo que a obra constitui com trabalhos sobre a prática da alforria dedicados a outros contextos da capitania e, posteriormente, província de Minas Gerais oferece oportunidade de perceber padrões e regularidades similares e de definir especificidades regionais. A abordagem qualitativa realizada pela autora privilegia temas como o espaço social ocupado pelo liberto e os discursos contidos nos documentos, além de reconstruir trajetórias de vida com ênfase nos momentos de negociação e conquista das alforrias.

Andréa Lisly Gonçalves não restringiu sua análise somente ao recorte temporal e espacial dos documentos que pesquisou nos arquivos de Ouro Preto e Mariana. Os dois primeiros capítulos do livro indicam sua preocupação em lançar olhares em outras realidades históricas e em estabelecer pontos de convergência e distanciamento com Minas Gerais. Tal perspectiva atualmente se tornou um dos grandes propósitos dos estudos que tratam de escravidão, tráfico de escravos, mestiçagens, migrações, ocupações territoriais, contatos entre sociedades próximas ou afastadas entre outros campos. Fortalecida pela ideia de que a história não é compartimentada em ilhas desconectadas, o método comparativo ganha cada vez mais terreno e abre horizontes historiográficos extremamente instigantes.

O primeiro contexto escravista que a autora explora é Portugal durante a modernidade. Parte do princípio que por mais que a “tradição ibérica” seja marcante na conformação da sociedade que se desenvolveu no além-mar nem todos os aspectos presentes na escravidão lusa e, consequentemente, na prática da alforria foram transpostos sem modificações para a América. A primeira grande diferença apontada se refere à abrangência da mão de obra escrava. Enquanto em Portugal o trabalho escravo foi uma modalidade minoritária, no Brasil se tornou a principal base produtiva nas áreas de maior vitalidade econômica.

Em Portugal a escravidão de negros africanos foi precedida pela de mouros durante o processo de Reconquista. Sob o argumento da guerra justa a escravização de muçulmanos atravessou todo período medieval e chegou até a Idade Moderna. Uma das principais referências que Gonçalves utiliza para tratar desse assunto é o livro História social dos escravos e libertos negros em Portugal de Saunders. Segundo este autor, a chegada dos escravos negros a Portugal ao longo do século XV coincide com o momento em que a legislação portuguesa aprofundou sua preocupação com a escravidão. No entanto, Saunders destaca que mesmo antes da massiva presença negra em Portugal, a sociedade portuguesa já havia definido o lugar social do escravo por conta da experiência com os mouros. Tal realidade se refletiu nas Ordenações Afonsinas [447] que empregavam o termo mouro como sinônimo de escravo [448].

Embora com particularidades e em menor potencial, alguns dos principais elementos das práticas de alforria que chegaram até territórios brasileiros são observados no contexto escravista português antes mesmo da escravidão se instalar em profundidade nas Américas. Alforrias registradas em cartas e testamentos, libertação condicionada à prestação de serviços ou pagamento em dinheiro, possibilidade do liberto ser reescravizado por conta de “ingratidão” para com seu antigo senhor e proeminência das mulheres entre a população alforriada são instâncias tributárias de uma realidade cultural ibérica e do direito romano e consuetudinário que conectaram as duas realidades escravistas. Ao constar que na América portuguesa o alcance das alforrias foi muito maior do que em Portugal, Andréa Lisly Gonçalves ressalta a necessidade de questionar a ênfase atribuída ao papel exercido pela “tradição ibérica” no processo observado na colônia. Mais do que reproduzir o modelo português, a realidade escravista no Brasil favoreceu a ocorrência de alforrias de negros, crioulos, mestiços e indígenas.

No segundo capítulo de As margens da liberdade a autora prossegue e aprofunda o esforço de comparação com outros espaços. No entanto, não se limita a apenas comparar sistematicamente, percebe-se a busca para entender as dinâmicas das alforrias em alguns ambientes colonizados e outros independentes. A comparação realizada serve de suporte para o argumento recorrente ao longo da obra de que ainda que a prática de alforria nas Américas mantivesse relações com as “nações metropolitanas”, seu funcionamento refletia mais os fatores internos e conjunturais do que a “suposta herança cultural européia”. Mesmo áreas como Lima e Cuba, ocupadas por espanhóis, e Demerara e Estados Unidos, colonizadas por anglo-saxões, apresentam características distintas entre si.

Um dos eixos que conectam as alforrias das áreas de colonização espanhola, no caso Cuba, com Minas Gerais é existência da coartación. Essa modalidade de alforria foi a mais comum na Ilha e consistia no pagamento parcelado da liberdade. Apesar de ser um território marcadamente de produção agrícola, grande parte dos escravos cubanos não trabalhavam em plantations açucareiras. Mais da metade do contingente escravizado se encontrava em fazendas de gado, áreas urbanas e pequenos sítios. A dinâmica de Cuba favoreceu que escravos cultivassem para sua própria subsistência o que, muitas vezes, era realizado em família e possibilitou o ajuntamento de recursos que foram usados para pagar a alforria.

A coartação foi uma possibilidade de conquista da alforria muito comum em Minas Gerais. Eduardo França Paiva tratou do tema tendo como recorte temporal o século XVIII e demonstrou que a libertação onerosa e parcelada se dava a partir de negociações entre senhores e escravos que tinham entre quatro e seis anos para pagar o valor combinado [449]. Gonçalves destaca que as coartações continuaram a ser relevantes ao longo do século XIX na Comarca de Ouro Preto e, inclusive, alguns Livros de Notas que pesquisou foram destinados a registrar exclusivamente documentos dessa natureza. Tanto Paiva quanto Gonçalves apresentam casos de coartações que chegaram às barras da justiça, embora esse desfecho não fosse sempre regra.

Apesar de ser grande o número de alforrias envolvendo pagamento, as justificativas e motivações utilizadas para fundamentá-las nem sempre seguiam critérios exclusivamente monetários que beneficiavam unicamente o proprietário. Outras tessituras como as relações de proximidade ou afastamento entre senhor/escravo, possibilidade ou não de manter o liberto na órbita de influência paternalista, circunstâncias econômicas regionais, reconhecimento de paternidade por parte do dono entre outros aspectos também são importantes na análise do fenômeno das alforrias.

Para Andréa Lisly Gonçalves, é necessário não fazer associações automáticas e evitar buscar causas restritas para explicar o objeto alvo de estudo. Ao finalizar As margens da liberdade a autora ressalta que apesar de grande parte dos escravos não ter alcançado a liberdade, a possibilidade da alforria foi uma variável que influenciou de forma decisiva o desenrolar da escravidão durante a maior parte do período colonial e imperial brasileiro.

Notas

447. Silvia Hunold Lara destaca que as Ordenações Afonsinas foram baixadas no ano de 1446 ou 1447. No entanto, foram impressas apenas no século XVIII. LARA, Silvia Hunold. Legislação sobre escravos africanos na América portuguesa. In: ANDRÉS-GALLEGO, José (coord.). Nuevas Aportaciones a la Historia Jurídica de Iberoamérica. Madrid: Fundacion Historica Tavera, 2000. (CD-ROM), p.23.

448. SAUNDERS, A. C. de C. M. História social dos escravos e libertos negros em Portugal (1441-1555). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994. p. 157-158.

449. PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistências através dos testamentos. 3º ed. São Paulo: Annablume. Belo Horizonte: PPGH-UFMG, 2009. p. 77-100.


Resenhista

Douglas Lima de Jesus – Mestrando em História Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: douglasjlima@gmail.com


Referências desta resenha

GONÇALVES, Andréa Lisly. As margens da liberdade: Estudo sobre a prática de alforrias em Minas colonial e provincial. Belo Horizonte: Fino Traço, 2011. Resenha de: JESUS, Douglas Lima de. História comparada e alforrias em Minas Gerais. Temporalidades. Belo Horizonte, v.6, n.1, p.187-190, jan./abr. 2014. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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