As esquinas perigosas da História: Situações revolucionárias em perspectiva marxista | Valério Arcary

Em nossos dias, o tema da revolução socialista é capaz de provocar constrangimento em boa parcela da intelectualidade e das organizações políticas da esquerda brasileira. Vivemos em um período no qual a maioria das organizações de esquerda reduziu as expectativas de transformações políticas e sociais e decidiu seguir o conselho que sugere “contrair o horizonte utópico”.

Para Valério Arcary, no entanto, o tema da revolução social continua atual. Ele julga que a democracia, mesmo assentada no sufrágio universal, é incapaz de esgotar as possibilidades e as necessidades, sentidas pelo proletariado, de promover transformações sociais e políticas.

O desgaste que a proposta revolucionária possuía em motivar as lutas das classes subalternas por sua emancipação política iniciou-se há bastante tempo e começou com os enormes estragos causados pelo stalinismo quando a burocracia usurpou o poder político na jovem União Soviética e instaurou um regime ditatorial e policialesco. Além disso, após sua consolidação no primeiro Estado Operário, a burocracia estendeu sua influência sobre o movimento comunista internacional e orientou-o durante décadas com políticas que, ao privilegiar seus interesses de sobrevivência em detrimento da Revolução Mundial, provocaram pesadas derrotas ao movimento operário, como o da Alemanha na década de 1930.

Por fim, quando a utopia reacionária e burocrática começou a inclinar os Estados operários ao caminho da restauração capitalista, as burguesias dos países centrais, percebendo os impasses e fragilidades que atravessavam os Estados operários e a esquerda internacional, lançaram-se à contra-ofensiva, a qual foi consolidada na forma do neoliberalismo. Os arautos da Nova Ordem anunciaram, novamente, que havíamos chegado ao fim da história.

Confrontada com as deformações burocráticas nos países onde a burguesia foi expropriada e com o fortalecimento das direitas, principalmente na forma neoliberal, a partir da década de 1980, a maioria das esquerdas abandonou a estratégia revolucionária. A revolução, como momento imprescindível na ruptura com o capitalismo, passou a ser percebida como um anacronismo e os revolucionários como vestígios arcaicos.

Arcary dividiu sua obra em dez capítulos. Nos três primeiros o autor desenvolve o tema das situações revolucionárias, em que procura demonstrar que as análises “objetivistas” tenderiam a “dissolver as mudanças repentinas, as inflexões bruscas, as viradas súbitas, nas permanências longas das etapas de tempo mais estáveis” (p.57).

O autor revaloriza os eventos políticos ocorridos em nosso lado da América. Ele argumenta que desde o último quartel do século XX, a maioria dos Estados superou os regimes autoritários sem que, no entanto, as lutas sociais tenham sido abandonadas. Ao contrário, as sucessivas crises políticas sugerem que os descontentamentos não podem ser integralmente canalizados para a busca de soluções no calendário eleitoral; por isso, governos eleitos têm-se vistos impedidos de cumprir integralmente seus mandatos e, em alguns casos, têm sido convocadas novas eleições, na tentativa de conter as mobilizações populares. “O que nos obriga a pensar no conceito de “fevereiros” contra regimes democráticos, ou seja, revoluções políticas que derrubam um tipo de regime democrático e colocam outro no lugar” (p.79).

Os conceitos de revoluções “de fevereiro” e “de outubro” foram propostos por Trotski em referência ao processo vivenciado na Rússia. Para ele, no primeiro tipo estariam as revoluções de caráter eminentemente político, geralmente promovidas contra governos tirânicos e regimes autoritários. Já as do segundo tipo projetariam ir além do caráter meramente político, transformando-se em revoluções sociais, o que levaria seus atores a ultrapassar os limites da propriedade privada.

Durante os processos em que os países latino-americanos transitaram para formas democráticas, os movimentos sociais não conseguiram avançar até o questionamento da regulação mercantil. Essas limitações permitiram que, com as contra-reformas, as práticas neoliberais iniciassem profundos ataques aos interesses populares. No entanto, antes mesmo que o conturbado século XX houvesse terminado, a embriaguez democrática começou a ceder e vários processos contestatórios se iniciaram, desembocando em profundas crises políticas.

Os eventos políticos que vêm ocorrendo na Venezuela, Bolívia e Equador, além de outros países, têm sido mais comumente percebidos como turbulências nos processos de adequação e conformação à democracia. Arcary, no entanto, realiza uma leitura diferente desses fenômenos políticos. Ele julga que, longe de constituírem-se como espasmos de ultrapassadas tradições golpistas á consolidação democrática, as lutas recentemente travadas haveriam se constituído em revoluções sociais abortadas: “Assistimos agora, possivelmente, ao início da sexta vaga da revolução mundial, a primeira que tem um epicentro na América Latina. Ela começou uma década depois da despolarização do sistema político mundial” (p.137).

O que explicaria a recorrência de revoluções políticas seria a impossibilidade de os regimes democráticos resolverem as demandas sociais; portanto, as revoluções de “fevereiro” recorrentes expressariam uma debilidade subjetiva do proletariado. “As massas populares lutaram, uma e outra vez, com heróicos sacrifícios, para depois entregar o poder para representantes políticos de interesses de outras classes” (p.28).

Avançando em suas conclusões, ele prediz que a capacidade de estabilização política que a alternância eleitoral é capaz de produzir estará provavelmente esgotada após a ascensão aos governos nacionais das “oposições aguardadas por décadas. Lula e o PT no Brasil, Frente Ampla no Uruguai e outras fórmulas de centro-esquerda, como poderia ser o Partido da Revolução Democrática (PRD) no México, serão ao mesmo tempo, o momento de máxima expectativa na democracia e seu inexorável declínio” (p.131).

Nos capítulos 4º, 5º e 6º o autor revisa os processos revolucionários, procedendo à construção de um painel integrador das “cinco vagas revolucionárias do século XX”. Constrói um instigante painel, em que discute e repensa questões debatidas em 150 anos de movimento operário e socialista. Nesse esforço ele procura articular as crises revolucionárias entre si, com os diferentes sujeitos políticos coletivos, em relação com as crises econômicas capitalistas e em oposição às forças da contra-revolução.

Para empreender essa tarefa ele se lançou a uma provocante sistematização das revoluções que ocorreram em todo esse período e procedeu a uma intensa sistematização de conceitos como Era, Etapa, Conjunturas e Longa Duração, entre outras. Seu objetivo foi encontrar padrões para a eclosão das lutas políticas e sociais, integrando-as em uma totalidade. Em todas essas experiências ele preocupa-se, sobretudo, com as articulações entre o “sujeito político e o sujeito social”. “A simultaneidade de diferentes temporalidades explica a necessidade de análises com recortes em níveis de abstração distintos, articulando a dimensão das longas durações com os tempos das conjunturas” (p.55).

Nos capítulos 7º, 8º e 9º Arcary debate, sobretudo, o lugar do “sujeito político coletivo” nas transformações revolucionárias. Ele procura demonstrar que a ausência de um partido centralizado, internacionalista e decidido a tomar o poder político é o principal motivo para o abortamento das revoluções sociais.

Segundo Arcary, são as relações estabelecidas entre os “fatores objetivos e subjetivos” que condicionaram os desdobramentos das revoluções. Para o autor, uma revolução socialista só pode tornar-se vitoriosa se ocorrer o encontro dessas duas variantes em seus máximos pontos de desenvolvimento.

Quis a ironia da História que a maioria dos socialistas tenha sido revolucionária na segunda metade do século XIX, quando a maioria dos trabalhadores foi reformista (porque a prosperidade do sistema permitia grandes concessões), um período em que as revoluções foram raras – a exceção foi a Comuna de Paris -, enquanto, no século XX, quando a maioria dos trabalhadores se inclinou, em algum momento, por ações revolucionárias, os socialistas de faziam – em sua maioria – reformistas (p.106).

Para Arcary, as duas variantes se desenvolvem em ritmos próprios e independentes, mas precisam amadurecer juntas. Seria necessário que ocorresse o encontro histórico entre, de um lado, as massas, que deveriam estar dispostas a lutar abertamente contra a burguesia e seus aliados, e, de outro lado, o partido revolucionário, dotado de maturidade e provado na luta de classes, disposto a dirigir as massas no assalto ao Poder e ao ataque à propriedade privada. Esse alinhamento histórico haveria produzido a revolução de Outubro na Rússia.

Para Arcary, a crise revolucionária abre a possibilidade de que a revolução socialista seja vitoriosa, mas, nessas circunstâncias, toda hesitação ou vacilação pode ser fatal, porque a questão do poder estaria posta de forma inadiável. Seria um momento de insuportável tensão e exigiria uma solução política, em regra, em brevíssimo tempo.

O autor assinala que não seria pela ausência de crises econômicas devastadoras que a longevidade do capitalismo poderia ser explicada. A resposta estaria nas dificuldades do movimento dos trabalhadores em construir uma representação política que não fosse cooptada para a defesa do regime e do capital.

O autor assinala que as revoluções, como Outubro, exigem como alavanca imprescindível na luta pelo poder a construção de uma direção política centralizada: “em todas as revoluções, até hoje, em que o Estado burguês foi derrotado, e em que se cruzou o “Rubicão” da propriedade privada foi necessário, como condição insubstituível da vitória, a presença de um partido altamente centralizado e disciplinado” (p.159).

Arcary assinala o desgaste que a forma “partido” há sofrido, inclusive pelas dificuldades que os representados experimentam em controlá-los de forma a evitar que se transformem em aparelhos burocráticos e plasticamente adaptados às necessidades da conquista dos votos. No entanto, as tensões entre os partidos revolucionários e as classes sociais que pretendem representar demonstram-se mais profundas quando o autor avalia o que seria o inevitável afastamento entre eles. Para Arcary, as idéias radicais só podem conquistar a influência sobre a maioria quando se abre uma crise revolucionária. Esse afastamento pode induzir o partido revolucionário a não perceber a abertura da crise revolucionária, caso em que subestimaria a realidade, ou a precipitar-se “numa embriaguez em relação às possibilidades reais da situação política” (p.74).

O último capítulo é dedicado a um debate acerca das causalidades históricas. Arcary sugere que, durante uma crise revolucionária, o político, e não o econômico, seria o fator principal: “o proletariado (…) mais cedo ou mais tarde se veria diante da última alternativa, o caminho da revolução” (p.221).

No singular momento da crise revolucionária – com durações cada vez mais breves – as classes subalternas percebem que sua opressão pode ser solucionada na esfera da política, e isso permitiria que os partidos revolucionários superassem sua marginalidade e estabelecessem sintonia com as amplas massas. “Quando o proletariado perde o medo ancestral de se rebelar, perde até o medo de morrer, toda a sociedade mergulha em um turbilhão (…)” (p.222).

Otimista, como todos os revolucionários devem ser, Arcary vaticina: “O início do século XXI indica, para o próximo período histórico, uma nova fase de convulsões sociais, na qual os centros dos impérios dificilmente serão poupados” (p. 233).


Resenhista

Marcos Moutta de Farias


Referências desta Resenha

ARCARY, Valério. As esquinas perigosas da História: Situações revolucionárias em perspectiva marxista. São Paulo: Xamã, 2004. Resenha de: FARIAS, Marcos Moutta de. Diálogos. Maringá, v.9, n.1, 223-227, 2005. Acessar publicação original [DR]

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