As cores da masculinidade: Experiências interseccionais e práticas de poder na Nossa América | Mara Viveros Vigoya

Mara Viveros Vigoya Imagem America Latina Globa
Mara Viveros Vigoya | Imagem: America Latina Globa

Os estudos de gênero, em sua maioria, estiveram centrados nas mulheres. Desde os anos 1970, porém, os Estudos das Masculinidades vêm se consolidando como um novo campo de pesquisa. Em Cores da Masculinidade: Experiências interseccionais e práticas de poder na Nossa América, Mara Viveros Vigoya, ao investigar as masculinidades de um ponto de vista interseccional, traz novas e importantes contribuições para os estudos de gênero, em particular para as(os) estudiosas(os) que buscam enfatizar a dimensão relacional do conceito, a fim de investigar as dinâmicas de poder.

Ao centrarem nas condições das mulheres, as pesquisas feministas, em geral, deixam de lado as análises sobre o grupo social dominante. Para Mara Viveros, isso se dá pela denúncia do viés androcêntrico do conhecimento produzido sobre as mulheres, bem como por uma certa desconfiança em relação aos motivos do envolvimento dos homens nas lutas pelos direitos das mulheres. Feministas que pesquisam os homens, por sua vez, desafiam o senso comum segundo o qual gênero equivaleria às mulheres. Enfatizam, assim, que os homens são, também, constituídos pelo gênero, reconhecendo desse modo a dimensão relacional do conceito.

Aporte teórico e político central das análises empreendidas no livro é o Black Feminism1 , em especial o conceito de “interseccionalidade”, cujo uso pela autora se afasta de uma geometria estática, privilegiando a concepção das relações de poder como um processo dinâmico e historicamente determinado. Por isso, a noção de experiência utilizada não a concebe como dado preexistente, mas sim como um evento histórico e discursivo, coletivo e individual.

A autora destaca dois postulados do Black Feminism e do “feminismo de cor” que considera úteis para sua reflexão. O primeiro é o privilégio epistêmico do conhecimento situado, com a valorização política de uma posição marginal para compreender a dominação. É nesse sentido que a autora destaca que sua posição de mulher não-branca no contexto colombiano a fez levar em consideração as várias dimensões do gênero, em seu entrecruzamento com outras formas de dominação.

O segundo postulado é a adoção de uma postura feminista não-separatista, que considera adequada não apenas para gerar relações de solidariedade com as lutas feministas, mas também para dar conta da complexidade do contexto social no qual opera a dominação masculina na América Latina. Tais postulados levaram a uma postura política que Mara Viveros resume do seguinte modo: “Inspirada por esse tipo de pensamento, pareceu-me importante, em termos políticos e analíticos, aprender a me dirigir aos homens e falar sobre eles com uma voz feminista que os desafia, mas sem diminuí-los, animada pelo anseio de gerar um espaço de solidariedade e transformação social com aqueles que expressem seu respaldo às lutas feministas” (p. 21).

A proposta da autora, que se distingue do uso mais comum da teoria da interseccionalidade, é empreender análises dos grupos que ocupam posições dominantes nas ordens sociais. As masculinidades são, nesse viés, tratadas em sua multiplicidade, sempre situadas perante às normas comportamentais e morais – ainda que para rejeitá-las. A pergunta de fundo, inspirada pela socióloga australiana Raewyn Connel (2015) , que assina o prefácio do livro, é: por meio de que processos e relações homens e mulheres desenvolvem uma existência organizada pelo gênero, mas que vai além dele, uma vez que se relaciona a outras estruturas sociais, como raça e classe? Isso implica afastar-se do pressuposto essencialista da masculinidade, entendendo-a como uma construção sociocultural que varia em cada contexto, o que direciona a análise para os processos e relações.

É o olhar atento para as relações que se estabeleceram historicamente no processo de colonização que leva a autora, ainda, a um trabalho de reapropriação e ressignificação da identidade latino-americana. Assim, seguindo os questionamentos de Glória Anzaldúa (1987) e Silvia Rivera Cusicanqui (1993) , Mara Viveros adota a expressão “Nossa América”, deslocando o significado histórico da mestiçagem e recusando a denominação “América Latina”, forjada em contextos acadêmicos hegemônicos metropolitanos, que universaliza experiências sociais particulares.

O eixo central da análise da autora está nos entrecruzamentos de gênero e raça, a partir da compreensão de que, na América Latina, as ideologias raciais se entrecruzam com a dominação de gênero, simultaneamente controlando a sexualidade das mulheres e subordinando os homens racializados. Demonstra-se, ao longo do livro, o quanto as relações étnico-raciais e de classe estabelecem hierarquias entre os homens. Assim, as masculinidades são analisadas sempre em relação a seu posicionamento na ordem social, sendo desse modo investigadas na sua interação com outras estruturas sociais. Evita-se, simultaneamente, o risco de simplificar tais nexos, naturalizando categorias essencialistas tais como “homem negro” ou “homem latino”.

O livro se divide em duas partes: a primeira, intitulada Teorias Feministas e masculinidades , traz os pressupostos – bem como os vazios – da teoria feminista para a compreensão da dominação masculina. No primeiro capítulo – Para além do binarismo: teorias feministas, homens e masculinidades –, a autora parte dos estudos das masculinidades cuja orientação é pró-feminista, em especial das formulações de Raewyn Connel (2015b), cujo conceito de “masculinidade hegemônica” insere o debate nos estudos de gênero, cristalizando o posicionamento feminista adotado.

Após percorrer brevemente os estudos de masculinidade em língua inglesa e francesa, Mara Viveros passa, no segundo capítulo – Trinta anos de estudos sobre homens e masculinidades na Nossa América –, a analisar os estudos sobre masculinidades na América Latina, estabelecendo como marco temporal a década de 1980, quando esses estudos passaram a incorporar contribuições acadêmicas do feminismo. A autora organiza os estudos em sete eixos principais, em função das temáticas abordadas: identidades masculinas; masculinidades e violências; saúde dos homens; afetos e sexualidades; reflexões epistemológicas; representações e produções culturais da masculinidade; e espaços de homossociabilidade masculina. Desse modo, Mara Viveros dá conta da diversidade da produção acadêmica “nossamericana”, e convida as(os) pesquisadoras(es) a seguir investigando resistências e adesões dos homens dos grupos sociais minoritários às normas hegemônicas de masculinidade.

A segunda parte do livro – Masculinidades nossamericanas –, mais etnográfica, é composta pelos três últimos capítulos. No capítulo intitulado Corpos negros masculinos: mais além ou mais aquém da pele, a autora traz uma investigação acerca das respostas de homens negros frente a estereótipos sobre sua sexualidade. Tais estereótipos se relacionam à imaginação colonial, que representou os homens colonizados como sexualmente incontroláveis, ainda que também possam ser representados como primitivos, dóceis e afáveis – portanto, não-ameaçadores à masculinidade hegemônica. Se, na escala civilizatória colonial, o negro, definido por sua pele, representa um estágio inferior, na sociedade colombiana – descreve a autora –, uma das estratégias das pessoas negras é inverter a relação de dominação, caracterizando, por exemplo, suas habilidades para a dança e a música como característica superior de sua raça. Assim, a autora descreve, no contexto colombiano, o uso da música e da dança como resistência, ressignificando positivamente as representações sobre os homens negros.

No capítulo 4 – Os benefícios da masculinidade branca: entre raça, classe, gênero e nação –, Mara Viveros destaca como o caráter racial da experiência branca é pouco explorado nos estudos sobre as relações raciais. O conceito de “branquidade”, a partir da década de 1990, serviu para destacar a ilusão da suposta neutralidade da categoria “branco”. Dentre as críticas ao campo dos estudos da branquidade, Mara Viveros destaca a negligência da análise dos mecanismos sociais e institucionais nos quais se fundam as experiências, e o risco de reificação da branquidade como categoria de experiência fixa, monolítica e essencializada. A autora destaca a quase inexistência de reflexões sobre a branquidade na América Latina, o que ela atribui ao fato de que, nesse contexto, a definição de branquidade é vaga, à diferença dos Estados Unidos. Destaca, porém, os estudos brasileiros sobre o tema, que demonstram que a identidade racial branca no país não é marcada, de modo que as pessoas brancas não se consideram como parte de nenhum grupo racial ou étnico.

Na Colômbia, é somente no final do século XX que os movimentos indígena e negro conseguiram fazer reconhecer o caráter multicultural da sociedade colombiana, definida como nação “pluriétnica e multicultural” na Constituição de 1991. Persistiu, no entanto, a ideia de que a raça não é uma categoria importante para explicar as desigualdades sociais. Mara Viveros argumenta que o ex-presidente colombiano Álvaro Uribe se amparou em elementos do ideal masculino, em particular a identidade masculina regional paisa, para suscitar adesões à sua empreitada bélica, apresentando-se como um “soldado da nação”, disciplinado, austero. Apesar de um discurso multiculturalista, Uribe desenvolveu políticas econômicas neoliberais que afetaram os povos afro-colombianos e indígenas. A pluralidade étnico-racial do país foi transformada em mercadoria de consumo, ao mesmo tempo que era imposto um modelo cultural “branco” construído em torno de valores como o progresso, o desenvolvimento econômico e o empreendimento.

No capítulo 5, As masculinidades no continuum da violência na Nossa América , Mara Viveros se refere a um continuum entre violência estrutural – resultante da colonização –, simbólica, cotidiana e íntima, categorias que se superpõem e se alteram. Chamando a atenção para a história racista do termo “machismo”, que associa apenas os homens latino-americanos a traços negativos de caráter, a autora se recusa a explicar a violência contra as mulheres por uma suposta característica cultural dos homens latino-americanos. Quanto às iniciativas de prevenção das violências que focam em produzir mudanças comportamentais nos homens, questiona sobre a necessidade de considerar as estruturas sociais, políticas e culturais que produzem e mantêm a hegemonia de gênero. Ainda, a autora compreende as novas formas de violência contra as mulheres como reações masculinas à redefinição parcial da ordem de gênero. Por meio de ações violentas, eles tentariam recuperar um domínio perdido, sendo o feminicídio o exemplo extremo desse tipo de reação.

Ao repensar as masculinidades do ponto de vista interseccional, a autora contribui para um campo acadêmico associado ao âmbito político, uma vez que, conforme destaca, o “conhecimento situado” possibilita, ao mesmo tempo, que se questione as supostas certezas da “neutralidade” científica, e que se incida nas ações políticas dos diversos movimentos.

A autora consegue demonstrar a potencialidade da teoria interseccional, que, ao recusar categorias essencialistas, permite compreender as masculinidades em sua pluralidade, atentando para os mecanismos que perpetuam os privilégios masculinos, mas também para as hierarquias entre os próprios homens, que posicionam alguns grupos em posições marginalizadas, estereotipando-os.

Ao enfatizar a importância dos mecanismos históricos – em especial os processos de colonização e escravidão –, a análise empreendida no livro permite vislumbrar um uso revisado do conceito de “interseccionalidade”, entendido de modo dinâmico e não como geometria estática. O livro une exercício teórico e pesquisa empírica, e é justamente nessa interface que o uso mais convencional de teorias e conceitos é reelaborado. A autora articula, ainda, análises macro-históricas e contextos locais, e demonstra como a ordem de gênero, em intersecção com raça e nação, tem efeitos políticos e atua em consonância com o neoliberalismo e outras dinâmicas globais.

Por tudo isso, trata-se de um livro inspirador para pesquisadoras(es) do campo de estudos de gênero, ao nos convidar a questionar conceitos e buscar novos objetos de pesquisa, atentando para as dinâmicas de poder para além do gênero. Em suma, a autora nos provoca a utilizar conceitos e teorias não como o ponto de chegada, mas como ferramentas para produzir novas perguntas e questionamentos.

Nota

1 Segundo explicação da própria autora, “o Black Feminism não é o ponto de vista das feministas ‘negras’, mas uma corrente política feminista de pensamento que define o gênero em relação a outras ordens de poder como o racismo e a relação de classe” ( Viveros Vigoya, 2018: 19).

Referências

ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/ La frontera: the new mestiza. San Francisco, Aunt Lute Books, 1987.

CONNEL, Raewyn. Masculinidades. México, D.F., UNAM-PUEG, 2015.

RIVERA CUSICANQUI, Silvia. “La raíz: colonizadores y colonizados”. In: ALBO, J.; BARRIOS, R. (org.). Violencias encubiertas en Bolivia: Cultura y Política. La Paz, CIPCA, Aruwiyirim, 1993, pp.27-139.

VIVEROS VIGOYA, Mara. As cores da masculinidade: Experiências interseccionais e práticas de poder na Nossa América. Rio de Janeiro, Papéis Selvagens, 2018.


Resenhista

Letícia Ribeiro – Doutoranda do Programa em Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Seus interesses de pesquisa giram em torno de: feminismos, direitos sexuais e reprodutivos, violência de gênero. lettribeiro@gmail.com http://orcid.org/0000-0001-5904-0275


Referências desta Resenha

VIVEROS VIGOYA, Mara. As cores da masculinidade: Experiências interseccionais e práticas de poder na Nossa América. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2018. Resenha de: RIBEIRO, Letícia. Cadernos Pagu. Campinas, n.65, e226514, 2022. Acessar publicação original [DR]

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