Todo historiador tem um quê de detetive. A afirmação pode soar provocativa, mas basta acompanhar um historiador no seu cotidiano, dentro de bibliotecas ou arquivos, rodeado por livros e manuscritos, perseguindo rastros às vezes muito tênues, para observar este aspecto inseparável do ofício, e a atração que deve exercer sobre o profissional que a ele se dedica. De fato, melhor seria esclarecer desde já que esta faceta envolvida no ofício da história pode atrair, tanto quanto assustar — ainda mais no caso da história das ciências, onde quase tudo resta a ser feito.
O livro de Silvia Figueirôa, As ciências geológicas no Brasil: uma história social e institucional, 1875-1934, resultado de pesquisas realizadas durante os cursos de mestrado e doutorado em história da ciência na Universidade de São Paulo (USP), pode ser visto sob esta ótica, como um exaustivo e brilhante trabalho de uma historiadora-detetive, que conhece os desafios de seu ofício, e não recusou enfrentá-los. Afinal, como a própria autora lembra em nota especial no capítulo introdutório, as condições de preservação, organização e acesso aos documentos no Brasil estão longe do ideal, dificultando o trabalho. Por outro lado, no seu caso particular, devido ao fato de muitos cientistas investigados serem estrangeiros, a pesquisa acabou conduzindo a arquivos também no exterior, como nos Estados Unidos e na Alemanha.
Somando-se a esses obstáculos, por si só consideráveis, também os elementos iniciais de que dispunha para alcançar seu objetivo — vale dizer, “investigar, caracterizar e tentar compreender o processo mediante o qual as ciências geológicas se implantaram e se desenvolveram no Brasil” (p. 233) — eram desencorajadores. Isto porque a historiografia tradicional relativa às ciências e às ciências geológicas no Brasil teria sido unânime em sustentar uma visão negativa sobre as práticas científicas existentes no país, sublinhando ora a “velha tendência colonial à literatura e ao subjetivismo”, como fez Fernando de Azevedo, ora a fragilidade das “reputações” científicas, “construídas sem trabalho original e de mérito”, como fez Orville Derby (p. 16).
Para a pesquisadora, este é justamente o problema central a ser enfrentado, e o fio condutor que percorre todo seu livro: a contraposição à visão difundida por essa historiografia, de que não teria existido aqui uma atividade científica regular ou relevante, e seu efeito mais nocivo, a conclusão pela impossibilidade de se fazer uma história das ciências no Brasil, pelo menos no que se refere às ciências geológicas, e ao período compreendido entre o final do século XVIII e 1934.
O antídoto contra tal deformação, segundo nos informa, foi obtido com uma dupla virada, de caráter teórico e metodológico. Ancorada na crítica formulada por diversos autores, sobretudo latino-americanos — e as semelhanças históricas entre o Brasil e seus vizinhos na América justificam amplamente tal procedimento, de resto raro entre nós —, Silvia Figueirôa estendeu sua análise à historiografia das ciências na América Latina de um modo geral, na qual poderia ser verificada a mesma inclinação a comparar as atividades científicas do continente com aquelas que tiveram lugar nos países europeus, tomados como modelos. Do confronto entre o “esperado” e o “realizado” (p. 17) teria emergido a constatação, errônea, de que não se produziu ciência nos países latino-americanos. Ora, a essa concepção de ciência centrada na Europa e nas “grandes teorias”, a essa “história dos vencedores”, a autora contrapõe o imperativo de se fazer uma “história cotidiana” das ciências, desviando o foco da investigação para as práticas concretas dos cientistas: os livros à sua disposição nas bibliotecas, os cursos que ministraram, as viagens que fizeram, e, principalmente, as características das instituições em que trabalharam. Nesta nova abordagem historiográfica, tornar-se-ia então possível a inclusão, como protagonistas, de pesquisadores estabelecidos em países considerados periféricos, como o Brasil, ou mesmo daqueles profissionais que se alinharam a teorias posteriormente tidas como falsas, como vários exemplos citados no texto.
Não resta dúvida de que, ao partir em busca de fontes documentais, com a visão agora desimpedida, a historiadora descobriu preciosidades: “encontrei ainda mais atividades geocientíficas do que esperava a princípio. Essa riqueza, manifestada em publicações, instituições, grupos de estudiosos etc., jazia infelizmente nos arquivos e bibliotecas, praticamente desconhecida. Não, porém, na maioria dos casos, por falta de organização e conservação, mas sim porque necessitava de um outro olhar para ser redescoberta” (p. 233). Assim, e para ficarmos em um exemplo apenas, a fim de descrever o estado em que se encontrava o ensino de mineralogia e geologia na Escola Politécnica do Rio de Janeiro no final do século XIX, a historiadora levantou documentação farta e variada: a legislação pertinente, os relatórios e ofícios dos diretores, as biografias de alguns professores, sua correspondência pessoal, os programas dos cursos e as ementas das cadeiras. Somos então informados sobre as várias reformas que a escola sofreu, os enfoques dados às disciplinas afins à área, os respectivos professores e suas trajetórias científicas, até mesmo sobre o número de amostras de que dispunha o Gabinete de Mineralogia e Geologia em 1876: 750 amostras de minerais, 2.939 de rochas, trezentos fósseis e 668 modelos cristalográficos de madeira (p. 112)! Cuidadosa ao perseguir as bases materiais do trabalho cotidiano dos cientistas investigados, a pesquisadora também se preocupou com as bases materiais de seu próprio trabalho, e através de referências precisas, distribuídas ao longo e ao fim do texto, aos acervos, documentos e textos consultados, localizou a fonte de onde cada uma dessas informações foi recolhida, possibilitando aos interessados refazer os mesmos caminhos sem enfrentar as mesmas dificuldades.
A segunda virada necessária para forjar um novo olhar sobre as ciências no Brasil, em tudo relacionada àquela primeira, diz respeito à própria concepção de ciência subjacente à historiografia mais tradicional. Sob inspiração de obras e autores bastante atuais, e não apenas latino-americanos, como Barnes; Mendelson, Weingart e Whitley; Mulkay; Latour e Polanco; Vessuri (p. 20), Silvia Figueirôa recusa-se a conferir às proposições científicas um status epistemológico superior, que as deixaria imunes à investigação histórica — uma concepção ainda hoje comum entre alguns filósofos e historiadores das ciências. “A ciência é parte da cultura como qualquer outra manifestação, dentro dos respectivos limites definidos pelos atores para um determinado conjunto de significados, crenças e atividades. Não opera, portanto, num vazio social, e mantém, por conseguinte, relações estreitas de interdependência com as esferas do político, do social, do econômico e do cultural” (p. 20). Desta reformulação decorreriam a pertinência de se olhar as idéias científicas do passado em seus respectivos contextos sociais, privilegiando a visão dos contemporâneos; a possibilidade de se investigar as atividades científicas desenvolvidas por países e personagens que terminaram por ficar à margem das teorias atualmente aceitas como válidas e relevantes; e, finalmente, a ênfase nas práticas dos cientistas e, sobretudo, nas instituições científicas (ou “espaços institucionais”, como prefere), entendidas como “canais mediadores entre a produção científica e as demandas sociais” (p. 25).
Dificilmente poderíamos discordar dessas premissas. Podemos, entretanto, lamentar que a discussão sobre essa virada teórica, cuja radicalidade foi ressaltada no próprio texto, tenha sido conduzida de maneira tão rápida, deixando de lado, por exemplo, as nuanças entre os autores citados, que são muitas, ou outras implicações mais problemáticas por trás da apenas aparente simplicidade do que foi efetivamente exposto. Preciosismo acadêmico? De certo modo sim, muito embora, com sua capacidade de organizar pensamentos e palavras, a autora pudesse ter enriquecido a compreensão dos leitores já familiarizados com o tema. Além de instigar e atrair novos leitores, é claro.
Mas talvez haja mais aí. Convencida das idéias que defende, a pesquisadora apresenta os conceitos e noções utilizados em seu trabalho de maneira bastante operacional. E neste ponto gostaria de trazer à discussão algumas reflexões inspiradas pela leitura de seu livro. Pois o fato é que, de posse de convicções firmes sobre a viabilidade de uma história das ciências geológicas no Brasil no período demarcado, com ênfase em suas instituições científicas, confirmada pela riqueza das fontes (re)descobertas, a pesquisadora algumas vezes deixou para segundo plano aquela que é parte essencial e igualmente ingrata do ofício do historiador: o distanciamento e a crítica permanentes da documentação recolhida pelos olhos atentos do detetive. Afinal, assim como as proposições científicas não podem ser consideradas imagens especulares da natureza, na medida em que se encontram necessariamente submetidas a fatores sociais, na forma de uma série de critérios e procedimentos de verificação, negociação, convencimento — isto que foi apontado por alguns dos autores citados no texto —, tampouco podem as informações que nos fornecem as fontes documentais, quaisquer que sejam, ser admitidas como retratos fiéis das situações sociais às quais se referem. A palavra adequada neste caso poderia ser ideologia, apesar de todo o peso que carrega. “A história das sociedades, evidentemente, deve basear-se numa análise das estruturas materiais”, afirmava o historiador Georges Duby há vinte anos, em um texto talvez um pouco datado, mas de maneira nenhuma ultrapassado; entretanto, “para compreender a ordenação das sociedades humanas e para discernir as forças que as fazem evoluir, é importante dedicar uma igual atenção aos fenômenos mentais, cuja intervenção é tão determinante quanto a dos fenômenos econômicos e demográficos”.1
Em determinados momentos do livro, a autora abordou a delicada questão sem rodeios, como, aliás, é seu estilo. Refiro-me especialmente ao tratamento que dispensou aos relatórios e fotografias relativos às expedições de exploração do sertão do estado de São Paulo, empreendidas pela Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo, no começo do século. Nesse caso, após o exame da documentação — sempre farta e variada —, foram destacados, nos discursos dos atores, conteúdos fortemente impregnados pela ideologia burguesa do progresso e da civilização, além de um tom triunfalista na exaltação das supostas riquezas naturais do estado.
Em outro momento, contudo, a historiadora parece ter depositado excessiva confiança em suas fontes. Seria um detalhe, não fosse o fato de algumas de suas conclusões mais gerais sobre o processo de institucionalização das ciências geológicas no Brasil se apoiarem sobre estas fontes; claro que não totalmente, mas pelo menos de maneira declarada. Naquele que pode bem ser tomado como o núcleo de sua pesquisa, o terceiro capítulo, que trata das instituições científicas criadas ou reformuladas entre 1870 e 1905, a autora conferiu especial atenção à Comissão Geológica do Brasil (CGB), por ela considerada “a primeira iniciativa institucional, de abrangência nacional, no âmbito específico das ciências geológicas no Brasil” (p. 150). Mas ao buscar uma resposta à espinhosa questão da responsabilidade (ou seria mérito?) maior na iniciativa de criação da comissão, talvez tenha se deixado convencer pelos argumentos que lhe ofereceram alguns dos principais personagens envolvidos. “Ao contrário do que afirmou unanimemente a historiografia que mencionou a CGB, e do que relatou o ministro da Agricultura em seu relatório de 1875, [Charles Frederic] Hartt não foi convidado pelo governo brasileiro para criar a instituição, mas foi, sim, bem-sucedido em vender sua idéia, num momento em que demandas concretas colocavam desafios ao pleno desenvolvimento, e que um ministério com viés cientificista ocupava o poder e promovia reformas” (p. 156).
De nada adianta o rápido comentário que faz a propósito das diferenças existentes entre documentos oficiais e versões públicas, de um lado, e correspondência particular e versões de caráter privado, de outro. “Talvez a explicação usualmente aceita tenha origem na versão que o próprio Hartt se encarregou de divulgar. Contudo, uma carta de John C. Branner ao professor O. D. von Engeln, do Departamento de Geologia da Cornell University, em 1919, é definitivamente esclarecedora” (p. 156). Afinal, o conceito de ideologia pretende justamente dar conta desses deslizamentos que se operam entre as situações objetivas com que se deparam os atores históricos, as imagens que forjam sobre as mesmas, e, finalmente, as condutas que assumem a partir daí.2 E isto não tem nada a ver com discurso oficial e discurso privado, como se um deles pudesse ser a imagem especular da realidade vivida.
Se na virada do século a elite científica brasileira se deixou contagiar pela ideologia do progresso e da civilização, como lembrou a pesquisadora, também os norte-americanos foram férteis em alimentar esses e outros mitos, dos quais o do self-made man e do business man são os melhores exemplos. Marca já assinalada por diversos autores, a face que aquele povo esperava ver de si próprio, cujos contornos teriam sido delineados no período dos chamados founding fathers, e que aliás persiste ainda hoje, era a do homem livre, democrata, menos interessado na política e mais nos seus negócios, e que, habilidoso, conseguia vencer sobretudo à custa de seu espírito empreendedor. Um homem que possivelmente teria concordado com a versão de John Branner sobre a atuação de Hartt na criação da CGB, e lido com satisfação algumas das conclusões apresentadas por Silvia Figueirôa no final de seu livro, a propósito do processo de institucionalização das ciências geológicas no Brasil: “A imagem do Estado, geralmente visto como ator único, onipresente e onipoderoso, deve ser relativizada, posto que o processo, em meu entender, foi multicausal. Como vimos, alguns espaços institucionais resultaram de iniciativas de cientistas que, interessados em conseguir sustentação para suas pesquisas e se firmarem profissionalmente em suas carreiras, lograram convencer o governo, porque este se mostrava receptivo, a criar determinadas instituições” (p. 235).
Deixei por último o essencial. Para aqueles que não se deram conta disso ao longo do que foi até aqui exposto, a leitura de As ciências geológicas no Brasil flui de maneira muito agradável, para iniciados e leigos. Ao contrário do que às vezes ocorre com textos de origem acadêmica, a autora tem segurança sobre o tema que aborda, conhece a língua em que escreve, e apresenta sem rodeios seus pontos de vista. E mesmo um detalhamento vez por outra excessivo não chega a interromper esse fluxo, ao menos para alguém, como eu, imbuída da difícil tarefa de fazer uma leitura crítica de obra desse quilate.
Notas
1Georges Duby, ‘História social e ideologias das sociedades’. Em J. Le Goff e P. Nora, (orgs.), História: novos problemas. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1988, pp. 130-1.
2 Idem, p. 139.
Resenhista
Christina Helena Barboza – Mestre em história social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisadora do Museu de Astronomia e Ciências Afins/CNPq.
Referências desta Resenha
FIGUEIRÔA, Silvia. As ciências geológicas no Brasil: uma história social e institucional — 1875-1934. São Paulo: Hucitec, 1997. Resenha de: BARBOZA, Christina Helena. O detetive e a história das ciências. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.4, n.2, out. 1997. Acessar publicação original [DR]
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