As ciências da Aids e a Aids das ciências: o discurso médico e a construção da Aids | Kenneth Rochel de Camargo Júnior
“Ceci n’est pas un écrit epistemologique”, alerta o autor (p. 17): como o cachimbo de Magritte, não pode deixar de sê-lo. Desde que Latour popularizou a aventura de abrir as “caixas-pretas” da ciência, a epistemologia tornou-se uma das fronteiras do trabalho de pesquisa social; viramos epistemólogos enquanto antropólogos e sociólogos da ciência. Emprestando imagens da medicina, esquartejamos e estripamos, como na anatomia, e chegamos a um perturbador avesso dos artefatos da produção científica, colocando em dúvida a confiança que depositamos no produto final (como tudo pode ser feito com tanta arbitrariedade?); desenvolvemos técnicas de acompanhar o funcionamento do sistema, como na fisiologia, e chegamos a outro perturbador cenário, onde por trás do nobre trabalho da pesquisa científica pululam os vis interesses dos grandes financiamentos ou dos mesquinhos orgulhos pessoais. Ultrapassado o limite tradicional da sociologia da ciência que separa “externalistas” e “internalistas”, viramos voyeurs da abertura das “caixas-pretas” que antes se mantinham invisivelmente na paisagem.
Nestas condições, entender as dimensões sociais da produção científica não é enumerar e estratificar as categorias sociais envolvidas no processo, ou a acessibilidade dos seus resultados, mas olhar para o processo mesmo que gera os enunciados científicos e os consagra. Nem o trabalho se restringe a averiguar a consistência lógica, veracidade, verificabilidade dos enunciados, mas também a entender como são socialmente produzidos, que significados se lhes associam, que funções desempenham, que marcas sociais e culturais trazem implícitas. Por isso a análise social da ciência é e não é um trabalho de epistemologia.
As ciências da Aids e a Aids das ciências, de Kenneth Camargo Jr., que antes de mais nada devemos saudar não só como uma contribuição de excepcional qualidade no campo da metarreflexão sobre o campo biomédico, mas também como uma excelente documentação sobre o processo de desenvolvimento e fixação dos enunciados científicos relativos à Aids, dá-nos uma dose suplementar de reflexão epistemológica. Ao longo de um trabalho de arqueologia do saber à maneira de Foucault, em que examina atentamente a sucessão de enunciados que, enquanto ciência, foram servindo de suporte a nossas atitudes e práticas em relação à Aids, no plano clínico, pessoal ou político, o autor comenta, não sem mordacidade e ironia, as inconsistências lógicas e a pobreza filosófica de alguns desses enunciados. Partindo da compilação dos artigos que identificaram e consolidaram o conhecimento da nova patologia — da “pneumonia por Pneumocistys carinii em homossexuais previamente saudáveis”, e subseqüentes investigações epidemiológicas e definição de grupos de risco, à consolidação de uma etiologia viral e cristalização da Aids enquanto “infecção por HIV” —, o autor apresenta-nos uma sucessão de construções discursivas que transformam problemas em fatos e que, ao perder durante a narrativa seu caráter problemático e questionável, se transformam em verdades científicas. Trilhando o caminho inverso, de problematizar o estabelecido e reconstituir a história de sua produção, a “arqueologia” das ciências da Aids proposta pelo autor deixa-nos perante paradoxos e interrogações particularmente perturbadoras, uma vez que a Aids é, inegavelmente, uma categoria de sofrimento humano para a qual gostaríamos de ter os melhores instrumentos científicos e médicos, e não a sucessão de quase-arbitrariedades que a desconstrução crítica nos revela.
Porém, As ciências da Aids…, embora se declare antiessencialista, não é mais um livro na linha do desconstrutivismo pós-estruturalista e pós-moderno que ocupa grande parte do comentário social sobre a epidemia da Aids. Um fio condutor, denunciado na Introdução e admitido pelo próprio autor nas notas finais, integra e estrutura esta narrativa que potencialmente aumentaria nosso ceticismo e desencanto pós-moderno: Camargo Jr. é também um médico preocupado com a medicina, e sua indignação fundamental é que a medicina que temos, praticada e desenvolvida nas premissas da competitividade da pesquisa científica e alienada no complexo entrelaçado social que hoje sustenta a produção da ciência e a definição das verdades, se perca da sua vocação básica de arte de curar. Quase despercebida, na nota final, a confissão de que talvez haja esperança, se se conseguir manter a reflexão crítica dos médicos sobre medicina e ciência; na verdade, a confissão de que esta obra não se constitui em um comentário niilista, mas em uma intervenção no sentido de, ampliando os instrumentos reflexivos, resgatar aquela possibilidade e dar ainda uma chance ao projeto moderno das ciências biomédicas. Não é então gratuito nem paradoxal que, retrospectivamente, as seções relativas aos clínicos com experiência em Aids no Rio de Janeiro (onde se trabalha o desespero da Aids em desesperantes condições de infra-estrutura) proporcionem uma leitura menos perturbadora que as restantes: ali se consegue fazer a síntese que resgata, como aponta o autor, “o universo de valores subjetivos que em tese deveriam nortear o exercício da medicina” (p. 155).
Resenhista
Cristiana Bastos – Antropóloga, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Referências desta Resenha
CAMARGO JUNIOR, Kenneth Rochel de. As ciências da Aids e a Aids das ciências: o discurso médico e a construção da Aids. Rio de Janeiro: ABIA; IMS-UERJ; RelumeDumará, 1994. Resenha de: BASTOS, Cristiana. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.2, n.2, jul./out.1995. Acessar publicação original [DR]