A história das cidades é vista, desde os tempos antigos, como uma analogia da vida humana. Já no final do período clássico grego, surgem biografias de Atenas, Esparta, Tebas etc. A homologia traçada entre as fases da vida humana – como nascimento, vida e morte – e o processo de formação, desenvolvimento e decadência da cidade é perceptível ainda nas biografias de Plutarco, escritas no primeiro século de nossa era. Não obstante, a teoria evolucionista de Charles Darwin reforça as concepções dos fisiocratas modernos, os quais despontam com a visão de ascensão e queda de um sistema citadino como algo natural, construindo-se, assim, uma espécie de símile entre a sobrevivência dos mais aptos na natureza e as cidades mais preparadas para dominar as demais.
A complexidade desses pensamentos revela a acepção de domínio natural de uma cidade sobre as outras, pautada, na maioria dos casos, em sua distinção econômica, política, religiosa ou literária. Nesse sentido, deparamo-nos com a noção de singularidade sustentando a criação de uma cidade-modelo e excluindo as diferenças sob o argumento da unidade administrativa. Ora, vemos através da história o quanto essa concepção de singularidade nos conduz à intolerância, refletida nas tentativas de eliminação da diversidade cultural.
No Brasil, o livro mais conhecido pelo estudo das cidades foi A cidade na história, de Lewis Munford, no qual o autor reserva centenas de páginas para descrever origens, transformações e perspectivas da cidade na história, apresentando ao leitor uma tipologia da cidade em sua longuíssima duração, ou seja, com “renascimentos”. Organizar um livro sobre a história das cidades sem a observância dessa linearidade, em si mesma totalizante, constitui o grande mérito do livro As cidades no tempo. Destacamos que, já no título do livro, percebe-se o cuidado das autoras em mostrar a pluralidade e a descontinuidade histórica dos sistemas citadinos, respeitando, assim, seu tempo e espaço distintos; em outras palavras, respeitando a diversidade de seus modelos. O livro, subdividido em três partes, além de esclarecedores capítulos sobre as inquietações de nosso tempo quanto ao passado, presente e futuro do que se convencionou chamar de cidade, contém ainda o comentário de um especialista no tema em cada parte.
O debate principia com Denis Menjot e Patrick Boucheron demonstrando que, na bacia do Mediterrâneo, no início do segundo milênio, “a partir de processos complexos e variados, a cidade ‘medieval’ nasce verdadeiramente nesse momento, com seu mosaico de formas e de paisagens diversamente organizadas” (p. 18). Os autores contrapõem-se, desse modo, à opinião corrente que estabelece uma destrutiva oposição entre cidade e campo, em que este último teria a primazia no período medievo. Em seguida, Luiz Otávio de Magalhães discorre sobre a concepção de polis grega, na qual sustenta a tese sobre a existência da inter-relação entre as práticas políticas e a ocupação do espaço urbano, que, segundo o autor, “pressupunha uma determinada paisagem urbana. Construções que evidenciassem e destacassem a presença da autoridade pública que fornecessem ambiente para a disseminação e circulação dos valores conformadores de uma dada identidade cultural tanto para o conjunto dos cidadãos como para grupos sociais específicos” (p. 37).
As cidades do norte da África romana são analisadas por Ana Teresa Marques Gonçalves. A autora retrata a significação política e cultural dos monumentos erigidos nas cidades dessa região, em especial os arcos do triunfo em homenagem aos Severos. A finalidade dessas construções, no parecer de Ana Teresa Marques, atendia à necessidade das elites locais de exibição de “sua lealdade aos governantes e sua afinação com a cultura romana, construindo monumentos públicos às expensas da cidade ou dos homens ricos do lugar” (p. 85). Sob essa mesma perspectiva, Carlos Machado estuda as implicações das políticas imperiais do período tetrárquico na distribuição espacial dos monumentos nas cidades, pois, como o autor ressalta, “o período da tetrarquia foi marcado por intensa atividade construtiva em diversas cidades do Império” (p. 92).
No último capítulo dessa primeira parte do livro, Margarida Maria de Carvalho escreve sobre os conflitos políticos do Imperador Juliano com a cidade de Antioquia, expondo como “nesse âmbito se confundem política, filosofia e religião” (p. 115), uma vez que as ações políticas de Juliano “podem ser mais bem compreendidas através da análise dos mecanismos municipais romanos. É perceptível que uma única estrutura administrativa atravessou os três últimos séculos da fase imperial” (p. 118). Encerrando a primeira parte, Norberto Luiz Guarinello tece comentários sobre as reflexões contidas nos capítulos arrolados, centrando-se no debate contemporâneo sobre a legitimidade dos estudos de história antiga voltados apenas para as organizações citadinas européias na Antigüidade e na Idade Média.
A segunda parte do livro é dedicada ao estudo das cidades comerciais do período medieval europeu. Manuel C. Teixeira discorre sobre o período medieval português, no qual se imprimiram “dois períodos de urbanização distintos: a ocupação mulçumana dos séculos VIII a XIII, e o período cristão a partir de meados do século XIII, após a conquista definitiva do Algarve, que concluiu a Reconquista do território português” (p. 129), o que resultou na coexistência de culturas distintas em um mesmo território e sob o mesmo lapso temporal. No capítulo redigido por Michel Sleiman, o autor remonta à noção de coletividade para árabes, berberes e andaluzes, pautada no conceito antropológico de pertencimento. O autor afirma que esse “sentimento (…) alimentava a consciência do indivíduo ou de determinado grupo de pertencer a um coletivo vivaz, continuado de geração a outra” (p. 153), postura que incentivou a confluência das tribos e, por conseguinte, a formação de cidades.
A cidade de Colônia e suas redes de parentesco na política compreendem a temática do texto de Cybele Crossetti de Almeida. Segundo a autora, as relações de parentesco em Colônia correlacionam-se com as tramadas em Veneza e em Amsterdã. Seu estudo pauta-se no estudo prosopográfico de Peter Burke sobre as elites dessas localidades no século XVIII, escolha que, nas palavras da autora, explica-se pelo fato de que “o grupo dirigente em Colônia apresentava padrões de comportamento que combinavam o tradicional com o moderno, assemelhando-se mais ora a Veneza (entendida como padrão de tradição), ora a Amsterdã (entendida como padrão de inovação)” (p. 180). Dessa maneira, as reflexões da autora apontam para a pluralidade das formas de sua organização política.
A Lisboa do século XVI é o assunto do capítulo de Susani Silveira Lemos, no qual a autora delineia as peculiaridades dessa cidade, tendo como base o opúsculo de 1554, redigido por Damião Góis, intitulado Descrição da cidade de Lisboa. Conforme a autora, devido ao “seu ímpeto de descrever a cidade ‘com o pincel mais delicado’ que lhe era possível, também não conseguiu pensar Lisboa sem o passado que a teria constituído; não o passado visível nas estruturas urbanas e territoriais, mas o passado dos mitos e realidades do poder que, dado que o refere, entendia estar de alguma forma diluído no traçado urbano dessa ‘rainha do oceano’” (p. 200), o que contribuiu para que sua obra fosse capital para a construção do imaginário coletivo quinhentista português. O comentário desse conjunto de textos coube a Denis Menjot, o qual sintetiza os pensamentos dos autores, afirmando que seus estudos demonstram a existência de diversas fases no desenvolvimento das cidades na Europa medieval.
A última parte do livro As cidades no tempo abarca considerações sobre as cidades edificadas na América colonial. Como Paulo César Garcez Marins nos esclarece, em seu capítulo sobre a cidade de Salvador, para “compreender a especificidade dos espaços urbanos luso-brasileiros pede-se, portanto, uma atenção redobrada às múltiplas relações que eram mediadas por esses espaços, relações essas tão constitutivas do emaranhado de ruas tortuosas e lotes que se expandiam” (p. 246). A implementação de um modelo de urbanização hispano-americana na cidade de Buenos Aires entre os séculos XVI e XVIII, como afirma Maria Aparecida de S. Lopes, acarretou mudanças que “a cidade hispano-americana e outras configurações urbanas – análogas ou não – antes de constituírem paradigmas de mudança histórica, são pretexto para ressaltar as diversidades quanto à forma como os impérios europeus conceberam seus domínios na Índias” (p. 247).
O livro no traz ainda um texto de José Ronzón sobre o processo de urbanização no México. Nesse estudo, o autor discorre sobre os desdobramentos da política de urbanização da cidade do México, em especial de seu porto Veracruz, ocorrida durante a segunda metade do século XIX, época do porfiriato. A partir desse estudo, o autor objetiva “ver como se construyeron – dentro del proceso de modernidad del siglo XIX – los idearios de ciudades (la ciudad entendida como espacio y entorno urbano) a través de las prácticas discursivas y las imágenes generadas desde sus ámbitos de enunciación” (p. 274). A resistência popular às leis urbanísticas estabelecidas pela metrópole na Lima do século XIX é a tônica do capítulo de Fanni Muñoz Cabrejo. O caso dos asiáticos em Lima, estudado pela autora, ilustra como é de “suma importancia volver al universo de las prácticas culturales de los sectores populares para analizar la plasticidad de estas prácticas en el contexto de la modernización de fin de siècle” (p. 289). O comentário de Fernando Torres-Londono fecha a terceira parte do livro, em que o autor salienta aspectos comuns às narrativas supracitadas, como a ação das classes populares nas intervenções urbanísticas das metrópoles.
Rebento de um colóquio realizado no Departamento de História da Universidade Estadual Paulista, Campus de Franca, o livro As cidades no tempo, em forma de coletânea, organizado por Margarida Maria de Carvalho, Maria Aparecida de S. Lopes e Susani Silveira Lemos França, configura uma prova material de que circulam novos ventos pelos corredores da Academia Brasileira, capazes de levantar inquietantes discussões sobre os usos das fontes na interpretação do passado.
Resenhista
Maria Aparecida de Oliveira Silva – Doutora em História Social – FFLCH/USP Pós-Doutoranda em Estudos Literários – Unesp/Araraquara, Bolsista da FAPESP.
Referências desta Resenha
CARVALHO, Margarida Maria; LOPES, Maria Aparecida de S.; FRANÇA, Susani Silveira Lemos (Orgs.). As cidades no tempo. Franca/São Paulo: UNESP; Olho d’Água, 2005. Resenha de: SILVA, Maria Aparecida de Oliveira. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 3, n. 5, jan./jun. 2009. Acessar publicação original [DR]
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