O novo livro de Lilia Moritz Schwarcz, intitulado As barbas do imperador: dom Pedro II, um monarca nos trópicos, busca fazer uma reconstrução da figura e do papel simbólico ocupado pelo imperador Pedro II durante esse momento fulcral da história brasileira que foi o século XIX.
Entre a herança colonial e o país moderno, o tempo do império foi aquele em que as contradições da passagem do estatuto de colônia ao de país soberano solidificaram-se em instituições que até hoje marcam a vida brasileira: o favor, o beletrismo, as dúbias fronteiras entre as esferas do público e do privado são algumas das heranças que nos legou o império.
Em busca desse tempo de passagens e contradições, Schwarcz focaliza a figura singular do imperador Pedro II, especialmente através do levantamento impressionante de documentação iconográfica. Focalizando uma vida particular e emblemática a partir de sua encenação pública, Schwarcz extravasa completamente o biografismo e avança para a construção de uma história cotidiana do império. Tomando como fio condutor os eventos lineares da biografia do imperador, a autora saudavelmente desrespeita a simples diacronia, ao propor cortes sincrônicos e aproximações temáticas — especialmente construídos pela análise do material iconográfico — capazes de iluminar, por muitos ângulos novos, tanto aquela vida em particular quanto o tempo em que ela se insere e do qual se revela emblema.
O primeiro desses cortes ou temas, o qual fundamenta a metáfora central do livro, é a investigação da inserção de uma monarquia européia em uma ex-colônia tropical, e os conseqüentes jogos de espelhamento que aí se produzem. Invertendo com muita felicidade a expressão de Roberto Schwarz, a autora mostra que as idéias não estavam simplesmente “fora do lugar”, mas havia um lugar para essas idéias. E não se trata apenas da aclimatação de ideário estranho à paisagem, mas de uma verdadeira negociação de práticas miméticas. Ou seja, impondo sobre o trópico a pompa e o cerimonial europeu da monarquia, Pedro II igualmente se deixou marcar, e em grande medida, pelas tradições africanas e indígenas de poder que estavam desde há muito tempo enraizadas na cultura local. A inclusão de uma murça feita de penas de papo de tucano como parte da indumentária do imperador (espécie de cocar indígena adaptado aos ombros da realeza) sintetiza essa imagem híbrida da monarquia tropical.
Investigando a heráldica e os nomes da aristocracia do império, Lilia Schwarcz igualmente demonstra como as palavras indígenas e as imagens dos trópicos se unem para compor essas sínteses do império que são os brasões dos aristocratas locais, nomeados por exemplo como “barão de Ouricuri” ou “barão de Itaquatiá”. A autora mostra que nomes como esses não são simples construções bizarras, à beira do cômico, mas constituem verdadeiros ícones do imaginário de uma monarquia tropical.
Outro importante exemplo dessa relação intercultural em que se basearam as imagens do império é a profunda ligação entre a figura do imperador Pedro II e os múltiplos imperadores africanos aqui aportados ou inventados: desde elites tribais africanas até os imperadores das congadas ou os reis alegóricos dos batuques, com todos eles Pedro II se relaciona, seja comparecendo às incontáveis festas populares ou recebendo “embaixadas” em São Cristóvão. Em resumo, a autora demonstra, e com grande felicidade, a existência de uma “cultura imperial” entranhada no imaginário popular. Pedro II alimentou-se dessa cultura ao mesmo tempo que a realimentou. Nesse sentido, o ensaio de Schwarcz constitui uma poderosa análise da mentalidade do império.
Outro importante corte temático produzido pela ensaísta é o que nos remete às ligações entre Pedro II e os intelectuais à sua volta. Muito já se falou sobre as relações intelectuais e os pendores científicos do imperador, o que quase sempre levou apenas ao riso fácil diante de um ingênuo beletrismo praticado pelo monarca. Schwarcz, ao contrário, demonstra a vital importância desses elos entre Pedro II e o Instituto Histórico e Geográfico, a Academia de Belas-Artes ou o Colégio Pedro II. Através dessas ligações científico-culturais, Pedro II trabalhou para construir uma imagem civilizada do império. Por outros termos, a autora desvela que a “ingenuidade” esteve sempre muito mais nessas leituras apressadas da figura do monarca do que nele mesmo. Mais do que a ingenuidade dessas leituras, Schwarcz demonstra que um aparato crítico que restringisse as fontes ao textos escritos sempre poderia cair no simplismo. A sua opção por trazer à cena a vasta iconografia do império revela-se então em toda a sua força.
Sobre esse império da imagem, cabe destacar o capítulo ‘A revolução do daguerreótipo entre nós’. Pedro II foi um apaixonado pela fotografia, e essa sua paixão sustentou em grande parte o processo de construção da imagem de uma monarquia moderna, integrada ao mundo das exposições universais, das máquinas, do progresso. O monarca-cidadão, viajando mundo afora em seu jaquetão, provocava tanto o riso de Eça de Queirós quanto a admiração e a reverência dos norte-americanos, quando da estada do monarca no país em 1876, por ocasião da Exposição Universal de Filadélfia. Fotografando deixando-se fotografar, o imperador sabia-se consciente do poder das imagens.
Cabe menção também ao belo capítulo sobre as residências da casa imperial, com destaque para a construção da cidade de Petrópolis. A autora não avança, mas penso que seria riquíssima uma investigação sobre o imaginário da Cidade Nova, que desde José Bonifácio move muitos dos governantes brasileiros. Aproximando-se o Patriarca da Independência do imperador Pedro II, e também de Afonso Pena e Aarão Reis, mas também de Juscelino Kubitschek e de tantos outros, talvez possamos compreender melhor alguns aspectos da realidade brasileira. Petrópolis, Belo Horizonte, Brasília ou Palmas são imagens repetidas de um mesmo motivo histórico, e Pedro II constitui uma de suas fontes e motores.
Lilia Schwarcz reconstruiu, enfim, para os leitores a complexidade da figura do monarca. Viajante, “voluntário número um” da guerra do Paraguai, amante das artes e das ciências, poderoso manipulador político através do poder moderador, amante ativo mas reservado (ao contrário do pai), defensor da libertação dos escravos e do modelo escravocrata ao mesmo tempo, apaixonado pelos livros, fotógrafo, criança predestinada, todas essas são imagens desse monarca síntese das contradições brasileiras.
Estamos, portanto, diante de uma obra, desde já, clássica, o que traz conotações também negativas, para além da maciça dose de acertos do ensaio. Para o bem e para o mal, o livro de Lilia Schwarcz constitui um monumento. Trata-se primeiramente de um monumento por ser, como creio já ter demonstrado, um primor de pesquisa, de escrita e de projeto editorial, um trabalho que passa a constituir marco absoluto sobre os temas Pedro II e Segundo Reinado. Não por acaso, o livro recebeu, merecidamente, o reconhecimento devido, através do prêmio Jabuti. Mas, em sentido qualitativamente oposto ao anterior, o ensaio constitui também um monumento, por ser uma obra de referência tão grandiosa que é capaz de cegar o leitor para a necessidade de olhar o livro e a iconografia que o sustenta como o que eles realmente são e devem ser: uma análise sobre documentos, uma escolha da historiadora, um recorte sobre o tempo.
Desde o princípio, a monumentalidade estabelece-se como elemento constitutivo do livro, onde o levantamento de material iconográfico praticamente atinge o limite da exaustão. Ali, o monumento se constrói através do excesso de documentos trazidos à cena, os quais nem sempre são analisados em toda a sua possível profundidade. Não que falte à autora essa profundidade de análise — aliás, não falta de maneira alguma. Trata-se de uma analista brilhante, capaz de jogar luz sobre materiais aparentemente inócuos, e revelá-los em sua riqueza documental, o que constitui, sobretudo, um mérito do historiador que sabe escolher e agrupar os materiais para transformá-los em documentos que reconstruam o passado por uma outra ótica. A autora revela-se uma analista consciente do fato de que todo documento é uma escolha do historiador, sendo essa escolha motivada pela construção assumidamente parcial de uma memória, um recorte sobre um dado tempo histórico: “É assim, no privilégio à dimensão simbólica, aos mecanismos de construção da memória da monarquia brasileira, que se pode encontrar novidade nessa história tão conhecida e vasculhada pelas biografias. Tal recorte, se não permite elaborar um sistema total de explicação, introduz uma dimensão nova” (p. 33).
O que está em jogo e parece-me negativo, por ser desnecessário, é o gosto pelo que poder-se-ia chamar de estética da quantidade, da busca do excesso de informação, o que, entretanto, é condizente com esses nossos tempos da visualidade, quando mesmo o leitor de um ensaio erudito sente o necessário apelo da multiplicidade de imagens.
Não faço aqui qualquer defesa de um primado dos documentos escritos em detrimento de outros, tais como as imagens ou a história oral. Ao contrário, concordo em todas as letras com a autora, quando afirma: “Com efeito, já se foi o tempo em que os pesquisadores sociais acreditavam na exclusividade das fontes escritas” (p. 32). O mérito maior da autora está com certeza nessa opção pelas fontes não-escritas. Exatamente por concordar com esse ponto de vista, sobre o qual se baseia o princípio analítico do ensaio de Lilia Schwarcz, penso haver no volume um certo excesso desnecessário, e mesmo contraproducente. Muitas das imagens poderiam ter sido tratadas de maneira mais aprofundada, com maiores ganhos para o leitor, o que talvez não tenha acontecido exatamente em função do transbordante número de imagens presentes no texto.
Sob esse ponto de vista, penso ser interessante fazer uma comparação entre o ensaio de Lilia Schwarcz e o segundo volume da coleção História da vida privada no Brasil, relativo ao império (São Paulo, Companhia das Letras, 1997). Pode parecer estranho sugerir uma comparação entre um livro que analisa o ambiente da vida privada e outro que se centra na mais pública das vidas, mas a similaridade de propostas entre esses dois textos se revela cristalina quando percebemos que ambos os volumes são amplas histórias cotidianas de um mesmo período. Luís Felipe de Alencastro, o organizador do vol. 2 daquela coleção, é quem nos adverte sobre as convergências entre o público e o privado no plano da história cotidiana: “Deliberadamente, procedeu-se (quando da organização do volume) ao amálgama de ‘vida privada’ e ‘vida cotidiana’. Com efeito, não há por que separar os dois gêneros de história, na medida em que ‘cotidiano’ refira-se à intimidade, aos modos de vida, ao dia-a-dia da existência privada, familiar, pública, às formas de transmissão dos costumes e dos comportamentos” (grifo meu).
Dessa forma, focalizando o dia-a-dia de uma existência particular, tanto no âmbito privado quanto público, Schwarcz possui o mesmo objetivo daquela coleção, apenas tomado por um viés específico. A comparação vem também à mente quando vemos que muitas das imagens utilizadas como documentos pelo volume organizado por Alencastro estão também presentes em As barbas do imperador. O levantamento feito por Schwarcz é sobejamente maior, mais rico, mais completo. Entretanto, debruçando-se sobre menos material, os autores constantes da coleção parecem-me alcançar muitas vezes mais densidade de análise, exatamente talvez por se aterem a menos imagens. A comparação de certas análises de imagens comuns aos dois livros pode dar uma medida dessa diferença de perspectiva.
Tomo aqui um exemplo entre muitos outros. Em passagem relativa ao uso dos cartões de visita com fotos, costume adotado e difundido pela casa imperial, Schwarcz traz à cena uma seqüência de fotos de dois negros, da autoria de Christiano Jr., em relação às quais o texto não faz mais do que este comentário: “Em uma monarquia tropical como essa, até a escravidão aparecia retratada nas cartes de visite, que percorriam o país e alcançavam a curiosidade européia” (p. 354). Em legenda à foto (portanto num texto menos analítico e apenas referencial), a autora completa que os escravos se distinguem pelos pés descalços, o que absolutamente não constitui suficiente descrição e análise da foto.
Analisando a mesma imagem, Ana Maria Mauad, no referido volume da História da vida privada, explica que aquele tipo de foto procurava reproduzir em estúdio as atividades cotidianas dos escravos, num processo de domesticação da violência escravista através da encenação, ideal para consumo das platéias européias (p. 205). As fotos eram objetos de consumo. Daí a necessidade das roupas civilizadas, e mesmo elegantes, em que muitos escravos apareciam, o que não exclui a presença da marca da escravidão, qual seja, os pés descalços. Sobre esse detalhe, em especial, outro autor no mesmo volume, João José Reis, já havia explicado o porquê da ausência dos sapatos nos pés dos escravos, marca e definição de seu estatuto social. O pequeno texto de Reis, intitulado ‘O sapato e o sanitarismo imperial’, o qual se constrói em torno de uma única foto, traça toda a história dos usos e desusos dos sapatos por parte dos escravos. A esse tipo de aprofundamento foi que me referi, e que em muitos casos está ausente do texto de Schwarcz.
O mesmo tipo de simplificação acontece, por exemplo, quando da análise do Cortejo fúnebre do filho de um rei negro, da autoria de Debret (ver Schwarcz, p. 14; Mauad, p. 121); ou da análise sobre as últimas fotos da família imperial em território brasileiro (ver Schwarcz, pp. 450-1; Mauad, pp. 229-31). Há entre os dois livros cerca de dez situações em que se evidenciariam essas ausências criadas pela perspectiva acumulativa de Lilia Schwarcz.
Um claro exemplo de oportunidade de análise perdida é o da reprodução de uma imagem de Angelo Agostini, em que um indígena representa o império. Uma legenda simples aponta que “O império representado pelo indígena demonstra cansaço”. O texto não vai muito além, e apenas diz que o indígena, representando o império, constitui “uma personagem enfraquecida diante da política imperial e constantemente enganada” (p. 423). O desenho, entretanto, carrega um número muito maior de sugestões e críticas do que aquelas simples palavras podem denotar. Vejamos: o índio está atado a uma árvore na qual pode-se ler a palavra escravidão. Seu corpo está cravado de flechas, as quais, mesmo sendo índices da cultura indígena, constroem alusão direta à consagrada imagem de são Sebastião, patrono do Rio de Janeiro e, por extensão àquela altura, de todo o Brasil; essa alusão ao mártir Sebastião, por sua vez, leva-nos ao messianismo sebastianista encarnado pelo imperador, fato relevantemente tratado pela própria autora em outra passagem; e ainda há muito mais: morcegos sugam o corpo do índio, que não está simplesmente cansado (sic), mas morrendo, como conseqüência da ação daqueles sanguessugas; cobras sobem por suas pernas, envenenando-lhe o corpo; sapos coaxam à sua volta, num coro de contentes que tenta fazer esquecer o fato de que o índio está sendo morto. A alegoria política, social, cultural e econômica condensada na imagem é contundente. E, no entanto, a autora deixa escapar toda essa riqueza significativa em palavras rápidas.
Nenhuma dessas ausências tira o imenso mérito do livro. Se posso aqui apontar essas possibilidades de aprofundamento, é simplesmente porque o maravilhoso trabalho de pesquisa empreendido por Lilia Schwarcz foi o que me permitiu querer que ela fosse mais longe. Sem a sua pesquisa acurada e o seu olhar talentoso para transformar materiais em documentos, nós leitores não estaríamos diante da possibilidade de criticar o seu feito, pois não teríamos nem acesso a esse estonteante material. Esse livro será, daqui para a frente, fonte segura para todos aqueles que queiram se aprofundar em análises sobre o império brasileiro, sobre seu cotidiano, suas imagens e seu legado.
Resenhista
Marcus Vinicius de Freitas – Professor de literaturas portuguesa e brasileira da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutorando do Department of Portuguese and Brazilian Studies, Brown University (USA).
Referências desta Resenha
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: dom Pedro II, um monarca nos trópicosSão Paulo: Companhia das Letras, 1999. Resenha de: FREITAS, Marcus Vinicius de. As barbas do imperador, ou a iconografia do império. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.6, n.3, nov. 1999/fev. 2000. Acessar publicação original [DR]
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