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As ações de liberdade no Tribunal da Relação do Rio de Janeiro no período entre 1871 e 1888 | Carlos Henrique Antunes da Silva

Muito se discute atualmente sobre o papel do Poder Judiciário no Brasil. Em fins do século XIX, permearam as instâncias e as decisões judiciais ações cíveis cujo objeto era a liberdade de escravos. Sem os meios de comunicação de que hoje dispomos, ainda assim parte da sociedade estava atenta ao assunto. Para além da opinião pública e dos movimentos sociais de então, o trabalho que temos em mãos tem como ponto de partida um elemento bastante presente nas fontes utilizadas para o estudo da escravidão, mas nem sempre em evidência nas investigações relacionadas ao tema: o Estado. De que modo os agentes atuantes na estrutura judiciária do Império lidaram com os processos impetrados pela liberdade de homens e mulheres na condição de escravos? Que instrumental advogados e desembargadores operaram em suas argumentações e decisões?

O livro que nos coloca essas e outras questões é resultado de uma pesquisa de mestrado em História defendida na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) em 2015. Seu autor, Carlos Henrique Antunes da Silva, é formado em Direito, História e Filosofia, adentrando também a Sociologia do Direito neste estudo. O referencial teórico adotado por ele está na obra do sociólogo Pierre Bourdieu, em sua reflexão sobre as representações e relações simbólicas de poder. A noção “campo jurídico”, particularmente, busca dar a ver o movimento de definição do Poder Judiciário durante o Brasil Império, sem deixar de lado as especificidades da época, como a vigência da escravidão de africanos e descendentes.

O trabalho está em diálogo com as pesquisas de história social que vêm mostrando, desde a década de 1980, os significados, as estratégias, os movimentos em torno da liberdade e a participação dos escravos no processo da Abolição. E suas principais fontes de época são as chamadas ações de liberdade. A leitura delas por Silva diferencia-se das realizadas até o momento devido ao seu foco da prática judiciária, a qual não prescinde da construção do Estado e do Judiciário no Império. O objetivo central do autor é compreender se os agentes vinculados a essa estrutura, especialmente os magistrados que atuaram no Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, observaram ou não o Direito Positivo, a legislação vigente, ao julgarem os processos. A baliza temporal escolhida centra-se no período de 1871 a 1888, quando vigorava a Lei n. 2.040, de 28 de setembro de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre ou ainda Lei do Elemento Servil.

A obra está dividida em cinco capítulos. A articulação entre eles é visível e a retomada frequente da indagação que conduz o estudo auxilia o leitor a percorrer a análise das fontes e os diálogos com a historiografia. Os dados dos quadros e tabelas expostos corroboram para o entendimento de quem eram os agentes que davam corpo à prática judiciária. Entretanto, há pontos problemáticos, os quais serão abordados adiante, e elementos que tornam a leitura menos agradável do que poderia ser, como as longas citações da bibliografia e alguns erros ortográficos. Além disso, ainda que os termos jurídicos mencionados no texto sejam apresentados em nota, as definições são muito breves, ficando soltas certas acepções que poderiam ser explicadas e amarradas às afirmações.

Em primeiro lugar, encaminha Silva, é preciso retroceder ao período colonial. No capítulo 1, com o auxílio da historiografia pertinente, são apresentadas as normas que incidiam sobre os indivíduos e as relações privadas, destacando-se as Ordenações Filipinas (1603), cujos dispositivos vigoraram no período imperial – perdurando como referencial, aliás, até a aprovação do Código Civil (1916). Também é feito um panorama da Justiça na Colônia, para, em seguida, tratar-se da organização judiciária de Segunda Instância do Império, com destaque para os Tribunais da Relação existentes em algumas Províncias. Releva deter o “perfil” do Estado erigido no país com a Constituição de 1824, com os três poderes que conhecemos e um Poder Moderador, exercido pelo monarca. Aqui, cabe questionar o autor quanto à noção de um Estado “desorganizado” no Brasil da segunda década do século XIX, o que carrega um sentido de “evolução” das instituições que merecia ser matizado.

O capítulo seguinte busca aproximar o leitor dos “sujeitos” ou agentes que aparecem nas fontes de época analisadas. O primeiro deles é o Estado imperial. Adentra-se na discussão historiográfica acerca da atuação das autoridades do Estado nas relações entre senhores e escravos. O autor entende que tal atuação ou mediação existia antes de 1871, uma vez que a estrutura jurídica imperial permitiu relações (e tensões) entre juízes da Primeira Instância do Judiciário, senhores e escravos – e caberia acrescentar os contatos cotidianos destes últimos com as autoridades policiais em muitas localidades. Dessa forma, ele aponta que a Lei do Ventre Livre, marco de uma mudança no entendimento do princípio da liberdade política, manifestou a consolidação do Estado na posição de mediador das relações entre senhores e escravos.

O escravo, observa Silva, era objeto das ações de liberdade, não autor delas. Na visão jurídica do período, os escravos – tal como as mulheres e os indígenas – não possuíam autonomia: precisavam de representantes legais. Daí a importância de outros dois agentes nas ações: o curador, figura que representava o cativo; e o depositário, que deveria zelar pela “integridade física e moral” do mesmo assim que era iniciado o processo (p. 62). O autor ressalta, com a historiografia, que não era tão simples a um escravo instar legalmente por sua liberdade: era necessário possuir ou tecer boas relações com os cidadãos – o que foi possível, sobretudo com o avanço do movimento abolicionista na segunda metade do Oitocentos.

Vale mencionar, ainda no capítulo 2, o trabalho feito quanto ao perfil dos curadores, advogados e desembargadores da Relação do Rio de Janeiro que constaram nas ações de liberdade. São apresentados quadros com as origens geográficas, cargos exercidos e o local de formação, considerando-se os dois cursos jurídicos que havia no Brasil (em São Paulo e em Pernambuco). Com esses dados, o autor faz considerações relevantes acerca da inserção social e a atuação desses agentes, como a participação “mais dedicada” de alguns curadores/advogados diante dos processos envolvendo escravos.

No capítulo 3, Silva realiza uma análise quantitativa dos processos que chegaram ao Tribunal da Relação do Rio de Janeiro no período de 1850 a 1888. Trata-se de averiguar a incidência das ações de liberdade na prática judiciária, destacando as mudanças ao longo das décadas. Ente outras informações, o autor revela que havia celeridade nos processos, apesar das distâncias entre as jurisdições: a maioria deles era julgada em até 2 anos. Além disso, mostra que na década de 1870 o número de processos foi maior do que o da década seguinte. Porém, houve um aumento de julgamentos no ano de 1887, às vésperas da Abolição, o que encaminha a hipótese de que teria havido “urgência” para julgar os casos (p. 71) – conjectura que será descartada nas conclusões da obra (as quais não convém antecipar de todo ao leitor…).

Nos capítulos 3 e 4, as explicações do “depósito legal”, um dos elementos que compõem as ações de liberdade, deixam dúvidas. Isto porque Silva disserta apenas sobre o depósito do pecúlio – previsto na Lei de 1871 e regulado pelo Decreto n. 5.135, de 13 de novembro de 1872. Isso leva a confusões, pois desconsiderou o depósito do escravo citado no capítulo 2 – aquele com a finalidade de resguardar o cativo, “libertando”, de possíveis ameaças ou ofensas físicas por parte de seus senhores e herdeiros. Somente o leitor atento poderá perceber que havia depósitos distintos.

Os dois últimos capítulos exploram mais de perto as ações de liberdade – e sua complexidade. No capítulo 4, o autor procurou esclarecer, segundo sua leitura da historiografia, o que distingue essas ações de outras que envolveram escravos. Conforme Keila Grinberg, havia ações com o intento de reconhecer a liberdade vivida de fato (ações de manutenção), outras em que o senhor buscava ver reconhecida a condição de escravo de um indivíduo que supostamente lhe pertencia (ações de escravidão) e ações cujo objetivo era a obtenção da liberdade (ação de liberdade)3.

Silva afirma que, apesar dos diferentes objetos, todos esses atos judiciais podem ser classificados “ações de liberdade” (p. 97). A afirmação parece equivocada, uma vez que o próprio havia observado que as ações de escravidão estariam excluídas de tal enquadro (p. 96). De fato, acompanhando-se a exposição, entende-se que estas últimas não fazem parte do seu escopo. Somente as ações cujo objetivo era a liberdade e os procedimentos relacionados (depósitos e arbitramento do valor do escravo) é que são trabalhados. Esses problemas relacionados às fontes e a discordância do autor a respeito da nomenclatura das ações poderiam ter caminhado no sentido de evidenciar uma ideia vislumbrada na obra: a de que a escravidão, a partir de meados do século XIX, estava formando não só o Direito, mas o próprio Poder Judiciário brasileiro.

Finalmente, no capítulo 5, as ações de liberdade são articuladas com as questões discutidas na sociedade a partir da década de 1870. Tal como nos capítulos anteriores, o autor explora vários processos que chegaram ao Tribunal da Relação fluminense, atento aos argumentos das partes, às referências legais utilizadas e aos posicionamentos “ideológicos” de alguns sujeitos. A indagação que permeia o estudo fica em destaque: teriam as decisões judiciais proferidas no Tribunal ido além daquilo que previa a Lei de 1871 e os dispositivos que a regulavam, contemplando argumentações político-partidárias em favor ou contra a liberdade dos escravos?

De acordo com sua análise, durante a vigência desse dispositivo que definiu os procedimentos e condições para aqueles que procurassem obter ou ver reconhecida sua liberdade na Justiça, advogados e juízes seguiram majoritariamente o que estava previsto na legislação. O que poderia culminar em desfechos desfavoráveis aos escravos, pois houve casos em que as regras do processo não foram observadas desde seu início, na Primeira Instância, indeferindo-se a liberdade.

Em síntese, o livro em apreço nos ajuda a entender um pouco mais sobre como o Estado no Brasil foi construído a partir do trato da vida e das aspirações de pessoas envoltas pela escravidão durante o século XIX. A pesquisa mostra as dificuldades dos escravos – entre outras, muitos não possuíam pecúlio suficiente e o auxílio ou “liberalidade” de terceiros poderia ser indeferido com base nas leis. Acrescenta aos estudos especializados ao buscar lançar luz a uma prática e os agentes que lidavam com esses casos, isto é, o jogo judiciário de um dos Tribunais de Segunda Instância do Império. Nesse jogo, um grupo ou outro, a liberdade ou a escravidão, não era poderia obter apoio sem destreza em relação à legislação em vigor.

Nota

Além disso, Grinberg afirmou que as ações de manutenção e as de escravização podem ser denominadas “ações de reescravização”. GRINBERG, Keila. Reescravização, direitos e justiças no Brasil do século XIX. In: LARA, Silvia Hunold; MENDONÇA, Joseli Maria Nunes (org.). Direitos e justiças no Brasil: ensaios de história social. Campinas: Editora da Unicamp, 2006. p. 105.

Referências

GRINBERG, Keila. Reescravizacao, direitos e justiças no Brasil do século XIX. In: LARA, Silvia Hunold; MENDONCA, Joseli Maria Nunes (org.). Direitos e justiças no Brasil: ensaios de história social. Campinas: Editora da Unicamp, 2006. p. 101-128.

SILVA, Carlos Henrique Antunes da. As ações de liberdade no Tribunal da Relação do Rio de Janeiro no período entre 1871 e 1888 Curitiba: Appris, 2020.


Resenhista

Larissa Biato de Azevedo – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca. Bolsista da FAPESP (Processo n. 2019/03596-8). E-mail: larissabiato@gmail.com


Referências desta Resenha

SILVA, Carlos Henrique Antunes da. As ações de liberdade no Tribunal da Relação do Rio de Janeiro no período entre 1871 e 1888. Curitiba: Appris, 2020. Resenha de: AZEVEDO, Larissa Biato de. A liberdade no jogo judiciário do Brasil Imperial. Almanack. Guarulhos, n.28, 2021. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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