As abolições da escravatura: no Brasil e no mundo | Marcel Dorigny
“(…) Os processos que levaram ao ‘fim da escravidão’ são muito menos conhecidos e frequentemente relegados ao final das obras consagradas à escravidão em si” (DORIGNY, 2019, p. 14). Com efeito, a obra As abolições da escravatura no Brasil e no mundo, escrito por Marcel Dorigny, do Departamento de História da Universidade Paris-VIII na França, apresenta aspectos primordiais que influenciaram as manifestações contrárias à escravidão, instituída por vários séculos no mundo. Não obstante àquilo que a maioria das pessoas aprenderam e consideram como movimentos que proporcionaram o fim da escravidão, como o desenvolvimento da indústria, a ampliação do mercado consumidor ou a influência dos ideais do Iluminismo, o autor enfatiza que estes não foram únicos. Os movimentos realizados pelos próprios escravos, chamados por ele de resistências e revoltas, ainda nos oceanos, também contribuíram para o processo abolicionista.
O livro possui sete capítulos: no primeiro, cujo título é As resistências à escravidão, Dorigny apresenta as resistências e revoltas à escravidão “por aqueles que a sofriam” (DORIGNY, 2019, p. 17), mostrando que estava neles o embrião do fim irreversível do sistema escravagista; o segundo, intitulado As contestações ao tráfico e à escravidão, apresenta os termos antiescravistas, abolicionistas, reformadores coloniais e as suas diferentes significações e implicações nas origens do antiescravismo; o terceiro, de título Surgimento e expansão do movimento abolicionista, aborda “os inúmeros textos denunciando os horrores” do tráfico escravo, os quais culminariam nas abolições de escravatura; o quarto, nomeado A primeira abolição da escravatura (1789-1804), trata de alguns movimentos que antecederam a primeira abolição da escravatura, por meio da narrativa de uma série de episódios importantes para a história; no quinto capítulo, de título As abolições do século XIX, o autor evidencia todas as abolições ocorridas no mundo ocidental no século XIX, culminando no Brasil, adjetivado por ele como o último bastião da escravidão”; o sexto e penúltimo capítulo, de nome A questão da indenização, discute o fato de que, com algumas exceções, a “indenização dos donos de escravos foi uma prática quase sistemática” (DORIGNY, 2019, p.126); foi consequência de guerras ou abolições das lutas dos próprios escravizados; por fim o sétimo capítulo, intitulado O futuro das sociedades pós-escravagistas, propõe uma reflexão do pós-abolição e do que viria a ser “abrir novos caminhos para uma colonização pacífica” no mundo ocidental.
No primeiro capítulo, o autor aponta a relação intrínseca entre as resistências dos próprios escravos e a abolição, tanto na questão econômica quanto na ideológica. Segundo ele, as novas teorias políticas da segunda metade do século XVIII contribuíram para tornar a escravidão desnecessária para o desenvolvimento da nova economia, ao contrário, ela tornara-se um freio. “Os escravos nunca aceitaram seu destino e o rejeitaram de múltiplas formas, hoje denominadas de ‘resistências à escravidão’” (DORIGNY, 2019, p. 18), constantes nas sociedades coloniais. Ao detalhar algumas dessas resistências (aqui como substantivo, pois as ações não eram apenas “uma forma de”, mas eram resistência em si), o autor elenca as mais usuais, que revelam o medo permanente que imperava nesses ambientes, dentre as quais destaco: i) o envenenamento dos animais ou dos próprios senhores, pois as tarefas domésticas eram trabalho dos escravos; ii) a recusa de gerar filhos, pois, em virtude de normas jurídicas da época, as crianças tinham o mesmo status da mãe, isto é, já nasciam escravos; iii) as revoltas e as insurreições constantes, haja vista que houve poucos momentos de calmaria no universo da escravidão. Segundo Dorigny, o movimento abolicionista, oriundo das metrópoles coloniais, não poderia ignorar as diversas espécies de resistência à escravidão implantadas a partir do início da deportação de seres humanos extirpados de suas sociedades por sua raça, isto é, “o escravo deportado para as colônias é sempre negro. Essa racialização é um fenômeno único na longa história da escravidão” (DORIGNY, 2019, p. 28).
No capítulo dois, o autor discute sobre as contestações fluentes na época, das formas pelas quais antiescravistas e abolicionistas pensavam o fim da escravidão e como seria o modelo de sociedade pós-escravagismo. A dicotomia antiescravista versus abolicionista configura-se na primeira contestação levantada pelo autor. Segundo Dorigny, embora tenham o mesmo objetivo, os movimentos antiescravistas limitam-se a condenar moralmente a escravidão, mas não conjecturam resolução do fato nem formas de transformação da sociedade escravagista em uma baseada no trabalho livre, pois “[…] uma coisa é condenar o princípio da escravidão, outra é indicar uma saída e o tipo de sociedade que surgirá após a escravidão” (DORIGNY, 2019, p. 30). Por sua vez, o abolicionismo caracteriza-se num ato político, o qual prevê formas concretas de abolição e do tipo de sociedade que se criará uma vez encerrada a escravidão. Posteriormente, o autor discorre sobre as diferenças existentes entre os abolicionistas e os reformadores, os quais propunham espécies de ajustes que objetivavam a manutenção da escravidão, pelo menos a curto prazo, e não a sua destruição radical e imediata. Nesse caso, os abolicionistas tinham a perspectiva de destruição total da escravidão baseada nas formas concretas de abolição e imaginavam o futuro das colônias sem escravos considerando o tipo de sociedade posterior ao sistema escravagista. Dentre os abolicionistas, haviam os radicais, os “gradualistas” (DORIGNY, 2019, p. 32) e os que, com a devida licença, denominamos de utópicos. Eram radicais, aqueles que desejavam a dissolução total e imediata da escravidão; os gradualistas acreditavam que a abolição aconteceria por etapas; e os utópicos imaginavam que a abolição ocorreria por si só, até a sua extinção, sem crises e sem violência. Ao adentrar no universo dos antiescravistas, o autor revela duas vertentes do antiescravismo: de um lado, a de base cristã, baseada no que o autor chama de igualitarismo evangélico, em que toda a humanidade deriva de Adão e Eva, o casal primitivo, cuja concepção eliminava as justificativas de escravidão natural; de outro lado, mesmo não necessariamente oposta à primeira, encontra-se a concepção que o autor chama de antiescravismo de direito natural, cuja essência é decorrente do pensamento iluminista, o qual baseia a igualdade entre os homens sobre a igualdade natural, isto é, “a convicção da igualdade fundamental entre os homens de qualquer ‘raça’, de qualquer cor, de qualquer aparência física” (DORIGNY, 2019, p. 37). Ambas as concepções, as quais o autor chama de correntes, fundaram o antiescravismo no século XVIII.
No terceiro capítulo, o autor relata movimentos abolicionistas e as maneiras pelas quais foram expandindo com as publicações de pensamentos e ideais abolicionistas por diversos autores. Para isso, o autor estabelece três fases: a primeira foi a fundação das bases teóricas do antiescravismo, as quais naquele momento estavam sendo propagadas por filósofos e intelectuais das primeiras gerações de autores antiescravistas, os quais acreditavam que o fim da escravidão aconteceria por meio de uma revolução destinada a destruir um sistema; a segunda foi uma obra que teve três edições, Da história filosófica e política das possessões e do comércio europeu nas duas Índias, sendo a de 1780, a edição mais radical que pregava a condenação concomitante da escravidão, do tráfico e da própria colonização; e a terceira, que segundo o autor, foi o apogeu lógico das reflexões que haviam amadurecidas ao longo de trinta anos, na qual criaram-se as primeiras sociedades antiescravistas, consideradas verdadeiros projetos políticos em que se propunham soluções políticas concebidas em escala internacional. Ademais aos textos que narravam, seja de modo indireto ou direto, as barbáries do tráfico negreiro, o uso do recurso da imagem como propaganda foi de grande valia, já que atingia, como observa o autor, “a opinião pública, sobretudo os que não sabiam ler” (DORIGNY, 2019, p. 57). No caso do Brasil, esse recurso foi, ainda que timidamente, responsável por trazer uma sentença moral que ao “mostrar ao público tais tratamentos […] só podia provocar indignação e salientar o arcaísmo do país, que ainda tolerava essas práticas” (DORIGNY, 2019, p. 64). Por fim, descreve o tráfico negreiro com destinação ao Brasil como o maior de todo o tráfico atlântico.
O quarto capítulo, apresenta e relata a primeira abolição da escravatura ocorrida em São Domingos, por meio da rebelião dos escravos. Antes disso, porém, o autor introduz considerações acerca do fracasso da abolição do tráfico em Londres, veementemente defendida pelas sociedades antiescravistas, e o acontecido em Paris, pois os contrários entendiam a abolição do tráfico como uma ofensiva conjugada para a abolição da escravidão e impediram a leitura de um discurso, predestinado a sensibilizar a sociedade. Em seguida, o autor relata a rebelião dos “livres de cor” em São Domingos, alguns deles eram proprietários de terra e de escravos, mas sem direitos civis e cívicos, embora reivindicassem a aplicação plena e integral do artigo I da Declaração dos Direitos do Homem. Essas reivindicações ganharam oposição de colonos brancos que os excluíram das assembleias coloniais, gerando revolta, na qual os livres de cor pegaram armas e tomaram a Bastilha, embora, ao final, foram derrotados e executados em diferentes formas. A partir de então, o autor aborda a Rebelião dos escravos de São Domingos e a primeira abolição da escravatura, a qual deixou um terreno favorável, contribuindo, ainda que indiretamente, para a vitória, e mesmo com as forças de repressão enviadas pela Assembleia Legislativa, que se dividiram em virtude da guerra entre França e Inglaterra, impossibilitando a repressão à rebelião. A abolição iniciou-se com a aquisição dos direitos políticos dos livres de cor. Por conseguinte, vivendo um conflito de três frentes: a revoltas dos escravos, a aposição dos colonos face aos direitos adquiridos pelos livres de cor e a guerra contra os espanhóis e os ingleses, a única saída foi proclamar a abolição imediata da escravatura, sem transição e sem compensação para os proprietários em 29 de agosto de 1793. Impulsionada pelo golpe de Estado de Napoleão e algumas modificações na Constituição, a escravidão tentou se reestabelecer em São Domingos, mas sem sucesso, como relatado pelo autor. Na verdade, “São Domingos se tornou a república do Haiti no dia 1º de janeiro de 1804. […] segunda independência nas Américas, […] dessa vez, eram os ex-escravos que tomavam o poder” (DORIGNY, 2019, p. 82).
No quinto capítulo, o autor relata as abolições do século XIX, iniciando pela abolição do tráfico de negros em 1807 e 1808, na Inglaterra e nos Estados Unidos; e em 1815, na França, por meio do decreto imperial de Napoleão. Sequencialmente, o autor aborda o Congresso de Viena, cujo países participantes pronunciaram a abolição universal em 1815, mas deixaram a cargo dos Estados sua aplicação, os quais poderiam adiá-la por muito tempo, dependendo dos interesses. Este fato favoreceu o tráfico ilegal, como o próprio autor destaca, pois “tudo levava a crer que o poderoso grupo de pressão dos colonos, dos armadores e todos aqueles que se beneficiavam do comércio colonial defenderia obstinadamente seus interesses” (DORIGNY, 2019, p. 94), transportando escravos principalmente para Cuba e Brasil. Posteriormente, o autor aponta que em 1833, de fato, aconteceu a primeira ruptura irreversível com a escravidão, oriunda do movimento antiescravista internacional na Inglaterra, alterando o contexto internacional de maneira incontestável servindo de exemplo a outras potências. O autor também relata que o processo que levou ao fim da escravidão em toda a América hispânica (Haiti, Chile, Bolívia, México, Colômbia, Argentina, Venezuela, Peru, Porto Rico) levou cerca de três décadas. Além disso, Dorigny discorre sobre a abolição na Holanda, Suécia e Dinamarca em 1863, 1847 e 1848, respectivamente. Em continuidade, o autor trata, então, da guerra civil e do fim da escravidão nos Estados Unidos, a qual ocupou um lugar à parte no conjunto das Américas, ocorrida em 1860 com a eleição de Abraham Lincoln, o qual tinha vínculos com antiescravistas. Finalmente, o autor aborda a abolição no Brasil, “o último bastião da escravidão” (DORIGNY, 2019, p. 117), oriunda de movimentos precursores como as sanções contra o tráfico da Lei Nabuco Araújo em 1854, da lei do ventre livre em 1871, a Lei dos Sexagenários de 1885, e, por fim, da Lei Áurea de 1888, ainda que, “depois que muitas cidades e estados inteiros libertaram seus escravos” (DORIGNY, 2019, p. 119).
O penúltimo capítulo trata da “questão da indenização dos proprietários” após a libertação dos escravos. Esse tema foi muito debatido antes mesmo da libertação dos escravos e, segundo o autor, haviam dois lados: os que consideravam legítima a posse do escravo e, consequentemente, os seus donos deveriam receber, legalmente, devido à abolição, uma indenização; e os que afirmavam que a posse de um homem sobre outro seria uma “violência ilegítima” (DORIGNY, 2019, p. 121), resultando em nenhum valor devido do Estado ao reestabelecer os direitos naturais sobre aquele sujeito libertado. Para além dessa dicotomia, foi uma prática corriqueira a indenização dos donos de escravos, com exceção dos Estados Unidos, onde “nenhum proprietário que perdeu suas ‘propriedades humanas’ recebeu reembolso” (DORIGNY, 2019, p. 126). “A escravidão foi abolida por uma insurreição e nunca foi reestabelecida” (DORIGNY, 2019, p. 127) em São Domingos e por conta disso, não houve pagamento de indenização pelos escravos por lá, porém, a “[…] República do Haiti pagou a França […] indenização colonial” e em relação à esse valor pago nunca ficou totalmente claro se estava englobado nesse “reembolso” a quantidade de escravos que se libertaram ou era somente o valor das “propriedades fundiárias e imobiliárias” (DORIGNY, 2019, p. 128) que foram perdidas ao terem sua libertação e posterior independência decretadas.
No sétimo capítulo, Dorigny apresenta um panorama geral do período pós-escravidão e das medidas executadas para evitar que ocorressem quaisquer problemas na produção de matérias primas nas colônias, as quais abasteciam as necessidades do velho mundo. O trabalho assalariado por meio do regime agrário ocupou o lugar que antes dependia do trabalho escravo, embora seus desejos giravam em torno de possuir um pedaço de terra e se tornarem agricultores em uma propriedade familiar. Para enfrentar essa questão, os poderes públicos começaram a recrutar os “trabalhadores engajados” (DORIGNY, 2019, p. 136), que seriam estrangeiros dispostos a trabalhar nesses postos agora livres, como destaca o autor: “O primeiro navio de engajados indianos chegou a Saint-Pierre, na Martinica, em maio de 1853, ou seja, cinco anos após a abolição da escravatura” (DORIGNY, 2019, p. 145). Outra maneira de resolver essa situação provocada pela emancipação dos escravos foi “o reforço do ‘preconceito de cor’, segundo a fórmula por muito tempo empregada para designar o racismo, [..] a herança da escravidão perdurou por muito tempo ainda após as abolições legais” (DORIGNY, 2019, p. 142).
Destarte, a obra As abolições da escravatura no Brasil e no mundo, de Marcel Dorigny, trata-se de um importante recurso histórico sobre o tema, além de compacto, didático e sintético, indicado para estudos introdutórios. A obra demonstra, irrefutavelmente, o entendimento sobre como foram construídas as sociedades coloniais desde o século XVI, com base em mão de obra escravista, e como isso refletiu na história. É salutar frisar ainda que o contexto social, no qual compreende-se o quanto a ideia do “preconceito de cor” (DORIGNY, 2019, p. 142) chegou a ser estimulada para forçar os recém-libertados a cumprirem seu papel pré-determinado socialmente e como isso refletiu na normatização e estruturação desse preconceito em nossa sociedade, principalmente a brasileira, que foi a última a libertar os seus escravos, “conquistando”, na história, esse terrível título e sofrendo com isso até os dias atuais, quando ainda marginaliza socialmente grande parte de sua população que ainda sofre com a herança desses dias não tão longínquos. A obra contribui para reparar a visão unilateral sócio-histórica de que o que marcou o fim da escravidão no mundo fora a promulgação das leis de abolição, quando, de fato, vários antecedentes contribuíram, senão culminaram, nas efetivas abolições da escravatura no Brasil e no mundo.
Referência
DORIGNY, Marcel. As abolições da escravatura: no Brasil e no mundo. 1 ed. Trad. Cristian Macedo e Patrícia Reuillard. São Paulo: Contexto, 2019.
Resenhista
Willian Marcio Barbosa Vieira – Graduando em Licenciatura em Letras, Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: willianmarcio21@gmail.com
Referências desta Resenha
DORIGNY, Marcel. As abolições da escravatura: no Brasil e no mundo. Trad. Cristian Macedo e Patrícia Reuillard. São Paulo: Contexto, 2019. Resenha de: VIEIRA, Willian Marcio Barbosa. Resistências: o embrião e o clímax do fim da escravidão no Brasil e no mundo. Ofícios de Clio. Pelotas, v. 6, n. 11, p. 223- 229, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]