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Artes e diáspora africana: conflitos, cânones, recomeços | MODOS. Revista de História da Arte | 2022

Organizado para MODOS: Revista de História da Arte, o presente dossiê a um só tempo responde ao, e pretende fomentar o, crescente interesse e atenção dos investigadores de diversas áreas pelas artes visuais da África e de suas diásporas, bem como pelas questões vinculadas aos processos coloniais e de racialização que o tema suscita. A chamada de contribuições para o dossiê foi lançada em dezembro de 2020 e angariou artigos que, após serem selecionados, revistos e editados, compõem a versão final do dossiê. Cremos que o conjunto de dezesseis textos aqui reunidos oferece uma amostra representativa das investigações em curso sobre os diversos aspectos das artes ligadas à diáspora africana, especialmente nos séculos XX e XXI. Com focos e visadas amplas (transregionais, transnacionais e/ou transcontinentais), os artigos também evidenciam o caráter eminentemente híbrido da produção artística em questão, bem como a sua inextinguível potência de (re)criação.

Usualmente, o termo “diáspora” se refere ao deslocamento involuntário de pessoas forçadas a abandonar suas terras natais. Nesse sentido, a expressão “diáspora africana” é relacionada sobretudo aos contingentes de africanos deslocados à força pelo comércio de escravizados que marcou indelevelmente o Mundo Atlântico entre os séculos XV e XIX. Trata-se de um dos capítulos mais sombrios da história global, que teve consequências sociais de longo alcance, entre elas o complexo e contraditório processo de modernização e a criação de culturas negras transnacionais. As artes da diáspora africana muitas vezes se reportam a essa história, seja criticando as economias do comércio transatlântico de escravizados e os legados do colonialismo (inclusive a conexão entre artes africanas e a ideia de primitivismo, como proposta por artistas e críticos modernistas a partir da Europa e assimilada em outros contextos), seja celebrando as realizações culturais de matriz africana, informadas por ideais pan-africanistas e/ou pela solidariedade dos povos com ascendência africana ao redor do planeta.

Já na chamada do dossiê, ponderávamos como as artes conectadas à diáspora africana foram caracterizadas, desde o início da idade moderna, por uma diversidade desnorteante e por uma recepção ambivalente. Por um lado, essas artes – produzidas pela agência histórica de africanos (escravizados ou não) e seus descendentes – envolveram complexos processos de criação, transformação e incorporação, articulando influxos culturais de origens muito diversas. Por outro lado, as artes em questão foram, durante séculos, alvos de perseguição, repressão, silenciamento e extermínio por parte de elites e poderes estabelecidos. Especialmente a partir do século XX, a recepção se alterou e as artes ligadas à diáspora foram também valoradas de modo positivo, por vezes entusiástico, e reconhecidas como sendo de importância fundamental para a constituição das culturas artísticas de países tão diversos como Brasil, Cuba ou Estados Unidos da América (EUA). Os processos de nacionalização (e mesmo de internacionalização) dessas artes implicaram em patrimonialização, colecionismo e apropriação, mas envolveram também dinâmicas de negociação assimétrica, marginalização, rebaixamento, diluição e branqueamento, nas quais o racismo e a opressão continuaram (e continuam) a ser componentes intrínsecos. A diáspora de artistas e outros agentes culturais com origens africanas no contexto da (des) colonização das sociedades da África no século XX foi afetada por processos semelhantes, embora apresente suas peculiaridades não necessariamente menos problemáticas.

Seria difícil imaginar um dossiê como esse, em uma publicação acadêmica brasileira, há dez, ou mesmo há cinco anos. Ao afirmar isso, não esquecemos que o estudo crítico da chamada arte “negra” ou “afro-brasileira” – produto direto da diáspora – existe há mais de um século no país. Desde ao menos 1904, quando Raimundo Nina Rodrigues publicou, na revista carioca Kósmos, o seu artigo intitulado “As belas-artes dos colonos pretos do Brasil – a escultura” (Rodrigues, 1904), vem se adensando um campo de estudos que busca inserir as manifestações culturais de matriz africana no domínio mais amplo da história da arte no Brasil. Até o final do século XX, esse campo foi sendo configurado com as contribuições de autores como Manuel Querino (1909: 1916; 1938), Mário Barata (1941; 1957), Arthur Ramos (1949), Abdias do Nascimento (1968, 1980), Clarival do Prado Valladares (1968), Lélia Coelho Frota (1978), Marianno Carneiro da Cunha (1983), Raul Lody (1985; 1995); Emanoel Araujo (1988), José Roberto Teixeira Leite (1988), Marta Heloisa Leuba Salum (2000) e Kabengele Munanga (2000), entre outros. Em certa medida, portanto, o campo dos estudos sobre as artes afrodiaspóricas no Brasil começou a se estruturar ainda antes do que aquele, hoje muito mais consolidado, das artes da diáspora africana nos EUA – a chamada “African American art” – no qual foi decisiva e central a atuação do recentemente falecido e já saudoso Robert Farris Thompson (Francis, 2013). No final dos anos 1960, Thompson começou a divulgar seus estudos sobre a importância das artes da diáspora africana nos EUA (Thompson, 1969), dando início a um vasto esforço investigativo que viria a incluir os desdobramentos da diáspora em solo brasileiro (Thompson, 1984).

No Brasil, porém, uma inflexão decisiva ocorreu nesse campo de estudos a partir da década de 2000, quando foram implementadas políticas oficiais visando à igualdade racial, como a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileiras na educação básica (Lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003), a instituição do Estatuto da Igualdade Racial (Lei Nº 12.288, de 20 de julho de 2010), ou a criação de “cotas” para estudantes negros em universidades e instituições de ensino técnico federais (Lei Nº 12.711, de 29 de agosto de 2012). Embora a eficácia dessas políticas seja incompleta e esteja hoje sujeita a reveses, elas configuraram uma demanda concreta para o aprofundamento dos estudos sobre as artes ligadas à diáspora africana, que foram se adensando enormemente na última década. Nesse contexto, é necessário destacar o trabalho do referido Emanoel Araujo na organização de exposições e na edição de obras relativas às artes da África e da diáspora, sobretudo no Brasil, desde a década de 1980. Araujo foi também responsável pela criação do Museu Afro Brasil em São Paulo, que, a partir de 2004, se afirmou como uma instituição de referência central no campo.

Não só o interesse pelas artes da África e de sua diáspora cresceu exponencialmente em muitas instâncias do campo artístico brasileiro (mercado de arte, circuitos expositivos, cursos universitários), como o conjunto de vozes que delas tratam se diversificou. Seria hoje praticamente impossível recensear todos os investigadores que vêm crescentemente se dedicando ao tema nas últimas duas décadas. Nesse sentido, cremos que o mais justo é remeter às bibliografias dos próprios artigos do dossiê. Embora nossa empreitada obviamente não esgote aquilo que lhe serve de mote, acreditamos que ela indicia bem a extensão e variedade dos estudos atuais sobre as relações entre artes e diáspora africana no Brasil – mas também muito além.

Com efeito, a rede de lugares de enunciação e os temas dos artigos delineiam uma geografia ampla, conectando Alemanha, Angola, Benim, Brasil, Canadá, Cuba, EUA, França, Gana, Jamaica, México, Nigéria, Portugal, Senegal, Togo e Uruguai. Concentrando-se nos séculos XX e XXI, mas recuando por vezes até o século XV, os artigos falam de migrações de pessoas e objetos, de ideias e crenças, de formas e instituições. Se, no começo da era moderna, eram as tecnologias náutica e cartográfica que viabilizavam o deslocamento (amiúde violento) de seres humanos e ideias oriundos da África no Mundo Atlântico, na contemporaneidade outras tecnologias (marcadas por dinâmicas imperialistas próprias) se encarregam de fazê-lo. No caso da edição desse dossiê, a rede global de dispositivos computacionais foi fundamental, criando pontes entre colaboradores apartados e remediando parcialmente o isolamento provocado pela pandemia do SARS-CoV-2 (Covid-19).

Os textos aqui reunidos poderiam ser articulados de diferentes modos, a partir de seus focos geográficos ou temporais, de suas teorias e métodos, ou das identidades particulares de seus autores. Nós privilegiamos seus objetos e temas, configurando alguns núcleos principais que conectam, por contiguidade, conjuntos de artigos. Trata-se, porém, de núcleos porosos e abertos, que se acavalam e/ou são atravessados por conexões cruzadas, que o leitor atento certamente perceberá.

O primeiro desses núcleos reúne artigos que tratam de coleções e exposições de obras de arte da África e da diáspora africana em museus e coleções particulares. O dossiê abre com o artigo “Histórias entrelaçadas: um panorama das exposições de arte africana no MASP”, no qual Juliana Ribeiro da Silva Bevilacqua analisa como as coleções de arte africana do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) foram estruturadas a partir de exposições realizadas desde 1953. O texto indica como as mostras e o próprio acervo de arte africana do MASP derivam dos interesses privados de indivíduos e instituições financeiras, bem como das relações que o Brasil estabeleceu com algumas nações africanas durante a ditadura militar-civil implantada em 1964. Nesse processo, a tentativa de pensar a herança africana no Brasil também foi decisiva.

Se, no caso do MASP, a violência própria à escravidão, ao totalitarismo político e ao capitalismo perpassam menos ou mais sub-repticiamente mostras e coleções, no caso da chamada Coleção Perseverança, analisada por Anderson Almeida no artigo intitulado “Uma flor de silêncio e assombro: memórias entrelaçadas na Coleção Perseverança”, a violência explícita contra africanos e afrodescendentes, suas crenças religiosas e hábitos culturais, foi a força motriz que constituiu o acervo, atualmente alocado no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Essa violência persiste entranhada na coleção, assim como em outras Brasil a fora, que são frutos diretos de ações repressivas contra as religiões afro-brasileiras, na maioria capitaneadas pelo Estado brasileiro (Lody, 2007). A biografia de coleções como a Perseverança se apresenta, assim, como um paradigma dos desafios de difícil solução que devem ser enfrentados crítica e curatorialmente.

A importância de mostras e coleções para criticar, ampliar e, não poucas vezes, reafirmar o cânone artístico hegemônico, bem como a necessidade de revisão histórica dos processos de aquisição e exibição das obras, reaparece no artigo “Travessias atlânticas e ‘arte negra’: contextos, coleções e desafios”, no qual Elena O’Neill trata de exposições realizadas em Montevidéu em 1969 e 2019, a partir da coleção de arte africana constituída por Francisco Matto e Ernesto Leborgne com obras adquiridas de Pierre Vérité, em Paris. O texto nos leva a refletir sobre como essas obras transitaram do Sul ao Sul via Norte – de modo similar ao caso de obras do MASP adquiridas na galeria do húngaro Ladislas Segy, em Nova Iorque, como analisado no primeiro artigo desse dossiê – e como a sombra crítica e curatorial euro-estadunidense afetou o cânone da arte africana nos países sul-americanos, demandando ainda hoje diálogos diretos com instituições e agentes africanos.

Em “Revendo nós historiográficos: apontamentos sobre as esculturas de santos-amuletos do Vale do Paraíba e suas origens africanas”, Joyce Farias analisa uma coleção configurada de modo historiográfico. O artigo recenseia os textos críticos sobre esculturas produzidas por africanos escravizados na região paulista do Vale do Paraíba no século XIX – as chamadas “esculturas de nó-de-pinho” – e suas relações com o antigo reino do Kongo. Singular nesse dossiê, esse artigo indica a necessidade de rever a arte do período em que o Brasil foi colonizado por Portugal não apenas em relação às contribuições africanas, mas à luz das várias etnias que constituíram aquele contexto sociocultural.

Focando em obras da religiosidade híbrida entre a África Central e o sudeste brasileiro, o artigo de Farias se vincula também ao núcleo seguinte desse dossiê, que trata de expressões ligadas diretamente a contextos sacros afrodiaspóricos. No Brasil, trata-se de um tema que demanda atenção especial, uma vez que, à dificuldade de compreender e aceitar as contribuições estético-religiosas afro-brasileiras, se somam o preconceito religioso e a laicização preponderante nos discursos sobre a história da arte mais recente. Tadeu Mourão contribui para essa discussão com “Acima de tudo, as Mães: tradições artísticas e cosmológicas negras nas pencas de balangandãs”, onde propõe uma nova leitura iconológica das pencas de balangandãs, peças que compunham a indumentária de mulheres negras escravizadas e livres do período colonial e imperial, ressaltando seus vínculos com culturas africanas e afro-brasileiras. Buscando contornar a superficialidade e mesmo alguns equívocos de parte das investigações precedentes, o texto busca realocar as pencas no meio epistemológico e nas tradições artísticas de matriz africana das quais elas são o desdobramento.

As particularidades estéticas de religiões afrodiaspóricas também constituem o foco do artigo de Katerina Kerestetzi, intitulado “Emoções estéticas de cenografias rituais afro-cubanas”. Nele, são analisadas as cenografias rituais (contextos interativos, estilos decorativos, dispositivos materiais, ferramentas) das religiões afro-cubanas do palo monte, santería, ifá e espiritismo cruzado. Na contramão dos estudos que procuram subsumir essas denominações em um sistema unificado de representações, ideias e lógicas, o artigo enfatiza como as diferentes cenografias rituais reverberam emocionalmente em seus praticantes e consulentes, demonstrando como cada uma delas acaba por configurar uma combinação emocional singular, distinta da dos outros cultos. Assim como o artigo de Mourão reivindica um exame mais minucioso das simbologias afrodiaspóricas, o de Kerestetzi nos incita a rever a estética e as artes das religiões afrodiaspóricas, especialmente o diversificado universo religioso afro-brasileiro, ainda muito dominado por estudos concentrados em certas práticas do candomblé baiano.

Um terceiro núcleo do dossiê se constitui em torno das discussões sobre modernismo e apropriação cultural a partir de representações de negros e da cultura negra (especialmente a religiosa) no Brasil, elaboradas por estrangeiros brancos. Justificadamente, muito se estudou a atuação de estrangeiros como Carybé ou Pierre Verger na Bahia, mas os casos em foco nos artigos desse núcleo reafirmam o Rio de Janeiro como contexto sociocultural de intensos debates sobre as heranças de diásporas no Brasil. Os textos de Arthur Valle (“‘Exu, c’est pour vous’: Benjamin Péret visita locais de culto afro-brasileiros em 1930) e Rafael Cardoso (“Imaginação diaspórica ou apropriação cultural? A afro-brasilidade nas obras de Dimitri Ismailovitch e Maria Margarida Soutello) aqui convergem, embora sejam bem distintas as maneiras como os artistas discutidos valoram o legado diaspórico. Enquanto Péret (um poeta surrealista francês) em grande medida atualiza o primitivismo modernista e preconceitos etnocêntricos em sua recepção do candomblé e da “makumba” cariocas, Ismailovitch (um emigrado russo) e Soutello (nascida em Portugal) acionam uma modalidade de imaginação fundada na tentativa de transpor identidades e reformular comunidades, compreendida como característica do exílio e dos exilados.

A autorrepresentação de africanos e afrodescendentes é um dos focos principais do núcleo seguinte do dossiê. Transitando do modernismo oitocentista ao começo da contemporaneidade, bem como entre as baías de Todos os Santos, da Guanabara e do Benim, respectivamente na Bahia, no Rio de Janeiro e na África Ocidental, Roberto Conduru questiona o entendimento como “arte popular” das obras e ações dos agudás no Togo, Benim e Nigéria, assim como de Manuel Querino, Arthur Timótheo da Costa, K. Lixto (Calixto Cordeiro), Martiniano Eliseu do Bonfim e Mestre Didi (Deoscóredes Maximiliano dos Santos). Com efeito, as revisões em curso das artes da diáspora africana impõem o questionamento das ideias de arte “popular” e “primitiva” em si, bem como de seus contributos aos processos de subalternização e segregação de segmentos sociais no mundo.

Além dos contatos intercontinentais e entre regiões brasileiras, outro tópico relevante nos artigos desse núcleo são os vínculos entre gerações diferentes de artistas. Isso se evidencia no artigo de Camilla Querin, intitulado “We write samba on the wild asphalt: Malandragem as practice of resistance in the work of Heitor dos Prazeres and Hélio Oiticica” (Escrevemos samba no asfalto selvagem: malandragem como prática de resistência na obra de Heitor dos Prazeres e Hélio Oiticica). Aqui, o estudo das relações entre arte, marginalidade e malandragem no Rio de Janeiro a partir das obras de Prazeres e Oiticica indica a dimensão política da arte – mesmo quando esta não está explicitamente representada – como um importante elemento de conexão entre produções apartadas no tempo. Isso também nos conduz ao artigo “Abdias do Nascimento in New York: Migration, Resistance, and Transnational Black Art, 1968–70” (Abdias do Nascimento em Nova Iorque: Migração, Resistência e Arte Negra Transnacional, 1968–70), no qual Abigail Lapin-Dardashti analisa o ativismo e a produção artística de Nascimento em Nova Iorque, em 1968 e 1969, bem como seus diálogos com as obras de contemporâneos como Jacob Lawrence e Rubens Gerchman, em meio à luta contra o racismo.

Em “África y art brut en el siglo XXI: una reflexión desde los márgenes” (África e art brut no século XXI: uma reflexão a partir das margens), Emannuel Mendez critica outras categorias herdadas do colonialismo europeu – a de art brut e suas variações teóricas como outsider art e folk art – com respeito a expressões artísticas de matriz africana. As obras de artistas de países distintos – Cuba, Gana, Benin – são aproximados das de brasileiros como Antônio Roseno de Lima e Arthur Bispo do Rosário. No texto, tais obras são entendidas como atos de resistência e como irredutíveis às fórmulas mercantis que estruturam as narrativas canônicas da história da arte.

O núcleo final do dossiê discute aspectos da produção artística contemporânea mais recente. No seu centro se encontra a arte produzida no Brasil, mas reencontramos ali conexões múltiplas com África, Cuba, EUA e México. As implicações políticas das obras e o ativismo artístico de seus criadores são fatores que aproximam entre si as discussões dessa seção final. É o caso de “Mil Litros de Preto: nossos olhares negros sobre a performance de Lucimélia Romão”, artigo no qual Alessandra Alencar, Jesse Cruz e Juliana Rosa de Souza analisam uma performance da artista Lucimélia Romão, problematizando as dimensões de raça e colonialidade no campo institucionalizado da arte no Brasil. Partindo da obra escolhida e de uma perspectiva decolonial, os autores também abordam outros fatores, como o conceito de corpo, e a relação com a memória e a diáspora africana.

Em “Mestiçagem como problema visual: Notas sobre a colonialidade do ver na América Latina”, Tadeu Ribeiro aproxima obras que suscitam questões raciais, de mestiçagem e de hibridização. Elas foram produzidas no contexto latino-americano marcado pela diáspora, mas em locais e tempos muito distintos: as chamadas “pinturas de castas” do México colonial e obras do artista contemporâneo brasileiro Paulo Nazareth. O artigo destaca as implicações hierárquicas, eugenistas e políticas de tais obras, bem como seu papel na construção de olhares específicos diante dos corpos racializados.

Já o artigo “Amplifying syncretism: Antonio Obá’s dialectical conception of Brazil” (Amplificando o sincretismo: a concepção dialética do Brasil de Antonio Obá), de Nicole Smythe-Johnson, discute obras de Antonio Obá sob o signo de uma concepção particular de sincretismo, que transcende o sentido mormente religioso de seu uso em artigos anteriores do dossiê. Aqui, sincretismo é entendido como uma dinâmica ampla, violenta e generativa, que estrutura a própria identidade brasileira, derivando da tensão entre um conjunto de oposições simbólicas interrelacionadas (centro e periferia; preto e branco; rico e pobre; europeu e africano; etc.).

Além de enfrentar o racismo no Brasil, discutindo a persistência do mito da democracia racial no país derivado da idealização da mestiçagem e do sincretismo, bem como a continuidade do extermínio de pessoas negras, outro tópico que emerge ao final do dossiê é a (re)conexão com África. Para tanto, em “O retorno à ilha-memória: imagens e histórias de Gorée entre os artistas da diáspora africana”, Sabrina Moura entrelaça um conjunto de obras de artistas que se reportam explicitamente à diáspora, como Ayrson Heráclito, Chester Higgins Jr., Carrie Mae Weems ou Maria Magdalena Campos Pons. Empregando recursos narrativos distintos, todos eles propõem retornos metafóricos a um lugar de memória paradigmático: a Ilha de Gorée, no Senegal. Os processos de patrimonialização desse sítio ou sua relação ambivalente com a historiografia acerca da escravidão são outros temas que atravessam as discussões desse texto.

Ao retornar à África com artistas afrodiaspóricos, o presente dossiê se encerra, mas simultaneamente se abre mais uma vez, ciente de seus limites e remetendo às outras tantas visadas, falas e textos que têm ativado os campos da historiografia e da curadoria a partir das artes negras. Temos certeza de que a imensa diversidade e vitalidade desses campos re(ex)sistirá às turbulências políticas atuais e aos ressentimentos racistas e fascistas de todo gênero que recrudescem em escala global. Nossas apostas são, antes, na ampliação e no aprofundamento cada vez maiores dos estudos sobre artes e diásporas africanas. Nossos votos são de que o conjunto de textos aqui reunidos sejam uteis para esses processos.

Referências

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Organizadores

Arthur Valle – Professor de História da Arte na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Doutorou-se em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e realizou estágios pós-doutorais na Universidade Federal Fluminense, Niterói/Brasil e na Universidade Nova, Lisboa/Portugal. É membro do Comitê Brasileiro de História da Arte (CBHA) e do International Council on Monuments and Sites (ICOMOS). É editor do periódico eletrônico 19&20 (https://www.doi.org/10.52913/19e20). E-mail: artus.agv.av@gmail.com  ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3058-2219.

Roberto Conduru – Doutorou-se em História na Universidade Federal Fluminense. Atualmente, é Endowed Distinguished Professor of Art History da Meadows School of the Artes, Southern Methodist University. Durante parte da preparação desse dossiê, no segundo semestre de 2021, esteve como Florence Gould Foundation Fellow no Clark Art Institute. É membro do Comitê Brasileiro de História da Arte (CBHA) e do International Council of Museums (ICOM). E-mail: rconduru@smu.edu.  ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0197-0300


Referências desta apresentação

VALLE, Arthur; CONDURU, Roberto. Apresentação. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 6, n.1, p. 106- 120, jan./abr. 2022. Acessar publicação original [DR]

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Itamar Freitas

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