Em consonância com o escopo da Revista Urbana, o dossiê ArteCidade amplia suas reflexões – sobre a produção do universo urbano em perspectiva histórica – enfocando desta vez produções e manifestações artísticas que florescem no meio urbano e tensionam suas ordenações.
Se Argan viu a “história da arte como história da cidade”, procuramos ver aqui como a arte tem se relacionado com a cidade, tem transformado o significado de seus espaços, e tem sido suporte para narrativas as mais diversas. Seria a arte que produz narrativas de cidade ou a cidade que produz arte? Da arte intrinsecamente urbana à arte desterritorializada-reterritorializada na cidade, podemos nos esquivar, como em um jogo de corpo de capoeira, dos cânones da história da arte, já amplamente difundidos ou mesmo repetidos, buscando nos concentrar na ginga sempre mutante das mais diversas manifestações artísticas, possibilitadas, inspiradas, cultivadas, provocadas pela atmosfera citadina. Falamos de arte intimamente relacionada com a cidade, que se cria a partir de brechas e das condições de possibilidade de muitas existências, de outras estéticas. Seja na estática de um edifício ou no movimento de um corpo, se há manifestação de posicionamento artístico e / ou ênfase poética, ambos entendem da necessidade-arte da viração na cidade. Das artes faladas, cantadas e escritas às artes caladas pelo cinza da tinta – ou por uma nova norma de uso do espaço público –, este dossiê vem difundir trabalhos textuais, no entanto, sem abrir mão dos referenciais imagéticos, sonoros, [olfativos, táteis] que, nas tensões das múltiplas linguagens, dialogam entre si evidenciando as interações da ArteCidade. O diálogo pode se dar ainda entre diferentes cidades, ou entre diversas formas de se abordar o mundo urbano; material, virtual, imagético.
As possibilidades de diálogos e conexões são muitas e foram aqui incentivadas, assim como as dinâmicas criativas do universo da fabulação, o qual comporta todas as categorias de expressão artística. Por isso, convidamos pesquisadoras / es que se interessam pelas composições da arte urbana, considerando suas dimensões subjetivas, simbólicas e materiais. Com suas inquietações fomos percorrendo outros caminhos, desvios da norma, pontos incomuns, subterrâneos, periferias e margens estilhaçadas. Paredes, muros e becos. Ruas, multidões, grafias e sonoridades. Cidades nas margens do Rio Paraná em Rosário, Argentina, nas paredes de Cachoeira no Recôncavo Baiano, no punk de São Paulo, nas muitas periferias cantadas no rap nacional, e em outras tantas margens – margem do mar, margem do mapa, margem feita de gente – são invocadas aqui.
A Entrevista realizada por Cristina Martins Tavelin com Felipe Marcondes da Costa, inicia o dossiê e nos apresenta um sujeito errante que concebe suas obras na interseção EM OBRAS / EM RUÍNAS. Os trabalhos realizados com Dulcineia e o coletivo paulistano que publica livros cartoneros em conjunto com uma cooperativa de catadoras de papelão, incentiva Felipe a realizar ações literárias em espaços públicos para “quem não tinha o hábito ler”. A partir de suas intervenções poéticas percebemos como os trabalhos coletivos instauram desejos de ações artísticas pela cidade. Incorporando um “espírito amador”, dois caras, “um levando seu corpo e o outro levando sua câmera”, se atiram “pra rua num projeto que é também de formação de público.” Perguntando e pensando sobre as experiências de Felipe, Cristina nos leva a questionar as fronteiras entre os corpos, as artes e as cidades. No centro da cidade de São Paulo, as performances instauram outros encontros além da normalidade — “nunca ouvi tanta gente me lendo em voz alta. É lindo ver um texto acontecendo assim! Quando as pessoas começaram a me abordar e chegaram a deitar comigo ali no chão então, aí foi incrível.” A potência política extravasa da obra e envolve as pessoas para atuarem junto, configurando a potência estética da ruína.
Continuando nesse caminho, Germana Konrath e Paulo Reyes notam e analisam a aproximação até a quase indistinção entre política e estética na obra de Francis Alÿs. Em um texto-ode à espacialização da / na obra do artista, Konrath e Reyes convocam Michel de Certeau, Jacques Rancière e a dupla Deleuze e Guattari para compor o corpo conceitual que explicita o caráter subversivo de ações propostas pelo artista. Este lança à comunidade a proposta de ação e é a partir e somente com a apropriação da comunidade pelo proposto que se configura a obra. A base é o impensável. Segundo Alÿs, dizem os autores, trata-se de “um presente a ser continuado.” Desse método, nascem alguns trabalhos em que a linha reta é subvertida em espaço público, campo da ação político-estética. E o espaço público de montes e mares e mesmo de ruas é subvertido pela linha reta proposta, mas, sobretudo, pela ação que se faz dela. Konrath e Reyes focalizam nas condições de possibilidade criadas e poetisam um texto declaradamente elogioso à obra de Francis Alÿs. “Suas ações simples e seus registros sempre porosos e parciais ajudam a compor diversas narrativas abertas, que atravessam o tempo como um mito que se alastra, operando taticamente tanto no presente quanto no pensamento projetivo de futuro e na memória que inventa passados.”
A interferência do artista e seu uso no / do cotidiano fazem da sua ação uma tática de guerra. A resistência a um ideário de cidade luminosa, espetacular, é o tema do ensaio Cartografia como narrativa, onde o autor delineia a figura de dois artistas como trapeiros contemporâneos, visto que se valem dos restos da vida comum e cotidiana nas cidades para constituir a matéria prima do seu trabalho. Os artistas-trapeiros são os argentinos Guillermo Kuitca e Jorge Macchi, o autor-ensaísta é Ricardo Luis Silva. Este nos põe em contato com as obras de base cartográfica daqueles artistas em um texto que faz um passeio entre algumas das principais referências que tratam das formas de resistência à cidade moderna como modelo de vida. Outros modos de vida não só são possíveis como deixam seus rastros e restos onde quer que queiramos ver. Para ver de perto, um dos trapeiros utilizou-se de um método de desenho de roteiro turístico completamente baseado no acaso: “Macchi coloca um painel de vidro transparente sobre um mapa de Buenos Aires e o alveja com um martelo, gerando uma série de rachaduras.” As rachaduras traçam os percursos a serem visitados e propõem ao leitor da obra uma experiência da cidade de Buenos Aires fora de todos os ditames do mercado de espetáculos urbanos.
Mirando essas rachaduras da cidade, Andre Abreu da Silva nos mostra os assombros da cidade punk de São Paulo. Vasculhando o Acervo Punk preservado no Centro de Documentação e Informação Científica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (CEDIC / PUC), o autor remonta as narrativas sobre o espaço urbano criado a partir das experiências raivosas de jovens adeptos ao movimento punk. A atenção às sensibilidades tramadas naquela prática político cultural, provoca uma leitura que valoriza suas produções. Essa postura errante, que veio se popularizar nas últimas décadas do século XX, via indústria cultural de massa, como punk rock, guarda entre suas performances a herança das / os insubmissas / os revoltadas / os que, em pequenas ações sub-reptícias, desviantes e insurgentes, ou em grandes movimentos coletivos de cólera, abalavam a ordem imposta com sua fúria ressentida. Sua movimentação errante pelos escombros e reconstruções nas grandes cidades revelam as profundas camadas de nossas história de dominação dos corpos. Por isso, concordamos com a sugestão de André de que “Numa incorporação histórica, os punks representariam uma das últimas formas de resistência aos ímpetos da modernidade avassaladora. Modelo de pretensões civilizatórias que devastara a cultura e os modos de vida dos habitantes antepassados da cidade, e que tem levado, sistematicamente, os seus poucos sobreviventes para as margens do espaço urbano.”
Nessa mesma direção, ouvindo ritmos e poesias, Roberto Camargos, investe em uma investigação sobre o campo de valores e modo de vida instaurado nas tensões das grandes cidades. Por meio das práticas culturais que envolvem o hip-hop, que transitaram com as diásporas modernas e nas tramas da sociedade globalizada, o autor, enfatizando as palavras e as batidas do RAP, nos leva a perceber uma abordagem crítica que nasce nos conflitos urbanos. Inseridos nas rimas daquele universo entendemos que: “ao aportarem justamente nos lugares em que a crise social e econômica e as transformações urbanas apresentavam contornos mais perversos, jovens marginalizados introduziram naquele contexto urbano práticas novas que, em alguma medida, mostravam sua interface com as questões que afetavam diretamente a vida da população mais pobre.” De suas experiências arrancaram representações que apontassem criticamente as mazelas sociais, mas que também valorizassem seu território de saber e as heranças de suas ancestralidades, compondo desta forma com uma narrativa em que “cidade, o espaço público, o direito à cidade e seus equipamentos públicos viraram fronts permanentes de batalhas em que as representações da periferia viraram objeto de intensa disputa”.
Seguimos os caminhos de Milene Migliano e Jessica Santana Bruno para lermos as intervenções feministas interseccionais nas paredes de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, marcando a presença da diversidade de sujeitos na cidade. As narrativas e indagações de artistas, em sua maioria mulheres, que ocupam as atenções do meio urbano tensionando as linguagens artísticas, com lambes, graffiti, stencil e outras pinturas em muros e construções. Nesses diálogos públicos, “colocam o corpo feminino como foco principal, pondo em evidência o sagrado, a magia, a força e a potência que pulsa nestes corpos.” Além das intervenções, percebemos as produções artísticas gestadas no trânsito e nas trocas entre movimentos feministas no território brasileiro. Mulheres de São Paulo que intercambiam com amigas do Recôncavo Baiano e promovem uma narrativa interseccional na cidade.
Através das inscrições públicas, voamos do Recôncavo para as ruas do centro da cidade de Araraquara, no interior do Estado de São Paulo, onde Lucas Barbosa de Santana e Rafael Alves Orsia notam os efeitos estéticos e desdobramentos políticos dos grafites no centro histórico desta cidade média. Com os olhos atentos as mensagens gráficas nas paredes, os autores apontam para as contradições e disputas políticas no espaço urbano. Eles mostram como “o grafite além de não ser bem vindo, também é inviabilizado nessas áreas da cidade, já que apenas algumas poucas áreas estão realmente dispostas de grafite.” Entendemos no texto que nesse campo de disputas os ataques pintados nas paredes, também são frutos de negociações e acordos tácitos entre narrativas no tecido urbano. Nas ruínas dos lugares de memória e esquecimento, alguns transeuntes consideram aquele lugar um espaço de arte, nas paredes lemos: “A cidade é minha tela”. As tensões da mensagem, escondem os acordos, revelados pelos autores, entre o poder público e os agentes do aerossol com tintas.
As ressignificações das obras de arte pelo convívio [com o] público são observadas no texto escrito pelo grupo de pesquisadoras da Universidade do Estado da Bahia, Ana Clara Sousa e Silva, Beatriz Santos Alves Lopes Boaventura, Isaura Oliveira Figueiredo e Matheus Silva Nascimento, revelando as dinâmicas de interação entre cidade, arte e subjetividades. A partir de um exercício de alinhar diferentes perspectivas teóricas e contrastá-las com obras de artes dispostas na cidade de Salvador / BA, as autoras defendem “a arte para além de uma forma imposta” e percebem que a apropriação da arte na e pela cidade “não nasce no cartesianismo moderno, mas nas demandas subjetivas da contemporaneidade”. Pensando as relações tramadas no espaço urbano e nas tensões em torno das manifestações artísticas “material ou imaterial, numa área predominantemente residencial, comercial ou até mesmo numa zona de interesse artístico e cultural”, elas apresentam as “diferentes leituras da função social da arte e sua relação com o espaço”. Com esse grupo de intelectuais, revisitamos os lugares que compõem as obras: “ A Mãe Baiana” de autoria de Carybé, “As meninas do Brasil” de Eliana Kertész e o Largo de Santana ao Mariquita no Bairro do Rio Vermelho e descobrimos os múltiplos sentidos que tramam Salvador / BA.
Ainda em Salvador, Maria Emília Regina e Erica Checcucci observam como as possibilidades de expressão cultural nas Festas de Largo da capital da Bahia – através da produção das barracas de comidas e bebidas – são estrategicamente apropriadas pelas normas que visam a sua padronização. Estrategicamente, porque visam a ampla atuação do poder público na organização e controle das Festas, conduzindo a sua exploração comercial, e restringindo cada vez mais a participação dos chamados “barraqueiros” na composição do evento. Diferentes marcos regulatórios vão interferir no que é entendido pelas autoras como “sistemas dinâmicos instáveis”: as Festas de Largo de Salvador. Elas analisam especialmente os marcos ocorridos entre 1989 e 2018 e tecem uma crítica propositiva no que concerne ao engessamento padronizador provocado pela regulamentação na produção dos “artefatos culturais”, como são entendidas as barracas que se constituem no principal elemento do cenário das Festas de Largo. Assim, constroem “uma narrativa histórica das intervenções municipais (eventos) nas Festas de Largo, com vistas a entender a perda da expressão artística na construção das barracas”.
Em outra região do cone sul da América Latina, percorremos com Sabastián Godoy as ruas da cidade portuária de Rosário, na Argentina, e topamos com uma série de repertórios de ação artística ativadas naquele espaço. Voltando à década de 1980 e 1990, Godoy apresenta a formação de grupos de artivistas – ARTE&VIDA – que se engajaram em manifestações e insurgências que provocaram intensas transformações na vida urbana. Passamos a conhecer o coletivo Arte en la Kalle que ocupava, com murgas e performances carnavalescas, as marchas do dia 24 de Março – evento fúnebre que se preocupa em lembrar a Ditadura Militar. Lemos o ressoar dos grupos de murga argentina e suas provocações sonoras como os Los Bichicome y Caídos del Puente. Deparamos com as criações circense e as ocupações da cultura punk no Galpón Okupa. E, por fim, a articulação entre três grupos com outros participantes, tais como os organismos e militantes de agrupação “Hijos e Hijas por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio (HIJOS)”, vizinhos de bairro e advogados cujo objetivo era “poder alertar y ofrecer herramientas de defensa a los menores de edad, las principales víctimas del incremento de la violencia policial. El colectivo de artistas ideó una suerte de “campaña publicitaria”. Os desvios subjetivos narrados pelo autor, lembram os traços de desordenação das produções juvenis intermináveis nas metrópoles comunicacionais, anotadas por Massimo Canevacci em “Culturas Extremas: Mutações juvenis nos corpos das metrópoles” (2018). Por outra via de interpretação, Godoy reconstitui as desordens das revoltas ressentidas a partir das espacialidades tramadas entre, o que ele chama de: a performática, a contecimentação e a paisagem do eventual. Essa composição se materializam, seguindo suas observações, como uma série de possibilidades tramadas entre os corpos, as representações, os imaginários, as subjetividades, os objetos e as relações espaciais que transitam e transformam as dinâmicas no espaço.
A proposta lançada na chamada do dossiê foi ganhando corpo à medida que recebíamos as provocações de autoras / es de diferentes experiências de ArteCidades. As escolhas para integrar o material final demandou tempo, dedicação e a contribuição de nossas / os colaboradoras / es. Após construirmos o diálogo entre os artigos e suas / seus respectivas / os autoras / es, convidamos o artista João Costa para desafiarmos as linguagens convencionais das revistas acadêmicas e produzirmos, estimulados pelas provocações que surgiram no dossiê, um outro material gráfico que pudesse circular e divulgar por outros meios essa arte coletiva. Por isso, além da versão online disponível no site da Revista Urbana, temos uma versão impressa inspirada no formato de FANZINE – uma pequena revista produzida de forma livre e alternativa, criada (na década de 1970) nos meios urbanos por pessoas que não dispunham de recursos técnicos e financeiros para divulgarem suas artes, mas que, seguindo a filosofia do “faça você mesmo”, difundida nos meios underground, criaram táticas para disseminarem seus pensamentos. Partindo dessas ideias, assumimos uma forma que dialogasse com o conteúdo e que tornasse possível a circulação desse material para além das redes da internet. Assim, brindamos nossas / os leitoras / es com uma versão que pode ser baixada e impressa para o formato de FANZINE. Nosso desejo é que possamos usar essas ARTES para ocupar nossas CIDADES, como também usar as CIDADES para compor nossas ARTES.
Este percurso entre diferentes ArteCidades pretende-se apenas o começo ou o pedaço de um amplo território experienciado por essas pessoas que buscam arte na cidade, ou a cidade na arte. Que continuemos percorrendo, mesmo que imageticamente, as nossas ArteCidades, nos colocando disponíveis às suas interpelações estéticas, éticas, poéticas, políticas.
Parte desta edição da Revista Urbana foi feita no contexto da pandemia do coronavírus [2020], agravado pelo descaso do poder público federal e por seu aguçado desejo de morte. Por isso, dedicamos essa ação coletiva às vidas humanas que anseiam por arte e por condições de vida urbana. Que o pós-pandemia seja contaminado de sensibilidade às diversas formas de expressão da vida na ArteCidade.
João Augusto Neves – Universidade Estadual de Campinas. E-mail: prof.joaoneves@gmail.com
Maria Isabel Costa Menezes da Rocha – Universidade Estadual de Campinas. E-mail: bel.cmr@gmail.com
NEVES, João Augusto; ROCHA, Maria Isabel Costa Menezes da. Editorial. Urbana. Campinas, v.11, n.3, set / dez, 2019. Acessar publicação original [DR]
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